Há qualquer coisa de peculiar em ver “O Barão” a chegar às salas em Outubro de 2011, em pleno movimento da indignação com o capitalismo e frustração com a democracia participativa: é que o Barão do novo filme de Edgar Pêra - uma criação de estarrecer de um Nuno Melo que nunca teremos visto tão certeiro no cinema - é um aristocrata decadente de uma província em decomposição, que reina com mão de ferro num ermo recôndito onde a sua megalomania se pode espraiar a seu bel-prazer.
“Aqui quem manda sou eu!”, diz o Barão, criação do escritor Branquinho da Fonseca que Pêra situa num Portugal com laivos de “Mittel-Europa” intemporal, gótico e atrasado, misto de superstição e paganismo. O filme já estava pronto antes da crise da dívida (anda a circular por festivais, internacionais e nacionais, desde o início do ano) mas o olhar impiedoso que lança sobre um Portugal paroquial, corrupto, mesquinho, conservador, orgulhosamente parolo (e talvez não tão perdido no tempo como isso) é certeiro no momento que vivemos.
A alegoria do Barão como metáfora salazarista pode ser óbvia, mas é inegável. O que já é mais surpreendente é que essa alegoria seja embrulhada no preto-e-branco contrastado de um filme de terror da RKO dos anos 1950 filmado em estúdio por um Guy Maddin hiper-activo, com Nuno Melo a tornar o Barão numa espécie de Bela Lugosi-Drácula-Nosferatu-Salazar e Marcos Barbosa como o seu Renfield inspector das escolas que não gosta que lhe dêem cabo do sossego.
Mas provavelmente seria pedir demasiado a Edgar Pêra que esta sua quarta incursão pela ficção narrativa fosse uma coisa certinha e convencional: o cineasta é conhecido por uma fervilhante experimentação formal e visual que, combinada com o singular universo “luso-ciberpunk-faça-você-mesmo” explorado por Pêra desde os anos 1980, muitas vezes perdia o espectador. A dúvida nunca foi se Pêra era capaz de contar uma história de modo acessível, era se o queria fazer - e é bom podermos dizer que “O Barão” responde positivamente a essa pergunta.
É um encontro feliz entre a linearidade narrativa e o experimentalismo formal, sob a capa de um filme simultaneamente hiper-romântico e hiper-expressionista que invoca os grandes momentos do cinema de terror clássico de Hollywood (até na ideia de rodar em estúdio com um elenco reduzido) mas assume alegremente a sua condição de homenagem/pastiche/“derivado”. O tom hipnótico, quase alucinatório, desta visita do Inspector das Escolas ao Castelo do Barão exige a estilização formal que Pêra se delicia a dar-lhe, resultando no filme mais aberto e mais acessível do seu autor, mesmo que só os cinéfilos mais cinéfilos consigam abranger tudo o que aqui se joga.
Não faz mal: para quem quiser penetrar no Castelo do Barão e estiver disposto a perdoar alguns excessos e algumas redundâncias sem as quais o filme não perderia muito, está aqui um dos mais singulares e estimulantes filmes portugueses de 2011, e isto num ano onde a média da produção está a ser bem superior ao habitual.