Uma criança não sofre por ter duas mães ou dois pais

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Este especialista em Direitos Humanos e orientação sexual tem acompanhado vários casos de discriminação de homossexuais que lutam pelo direito à adopção. Esteve em Lisboa a propósito da conferência Famílias no Plural, da ILGA.

Em Portugal é permitido o casamento entre pessoas do mesmo sexo, mas estes casais não podem adoptar crianças. Uma coisa faz sentido sem a outra?

Não. O único país a fazer o mesmo foi a Bélgica, em 2003, e essa excepção acabou em 2006. O casamento entre pessoas do mesmo sexo é permitido em dez países e Portugal é o único onde esses casais não podem adoptar uma criança em conjunto. A razão para este tipo de excepção é um compromisso político. Há um preconceito social muito forte da maioria heterossexual contra minorias lésbicas e gays educarem crianças. Acha-se que eles vão fazer mal às crianças, que as crianças vão sofrer, quando estudos científicos demonstram que não é, de todo, o caso. Uma criança que viva com uma mãe lésbica e a sua parceira ou um pai gay e o seu parceiro só tem um pai legal, de acordo com a lei portuguesa. Por que não permitir ao parceiro adoptar? É para o melhor interesse da criança permitir que o segundo adopte e se torne no segundo pai legal.

É apenas uma questão de tempo para que isto seja permitido em Portugal?

Absolutamente. Espero que seja ainda mais rápido do que foi na Bélgica. Porque não podemos ter famílias de duas mães e famílias de dois pais na lei portuguesa? Diria que a objecção é claramente psicológica. Sim, é algo novo uma criança ter duas mães ou dois pais, mas as pessoas têm de se habituar. E, uma vez ocorrida a mudança, dizem: "Por que é que isto era um problema? Por que demorou tanto tempo?" Há 11 anos, o casamento entre pessoas do mesmo sexo não existia. Hoje existe em sete países na Europa, dez no mundo. E em cada país a vida continua. A diferença é que há uma minoria mais feliz porque as suas vidas são mais fáceis.

Quão longe pode ir o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) neste assunto? Um país pode ser obrigado a ter leis que garantam estes direitos?

Neste momento, há um caso pendente no TEDH envolvendo a França, onde apenas pessoas casadas de sexos diferentes podem adoptar as crianças uma da outra. O caso envolve duas mulheres lésbicas que tiveram uma criança por inseminação artificial na Bélgica. A criança nasceu em França e só tem uma mãe legal. O argumento é que existe discriminação, directa ou indirecta, com base na orientação sexual. Se o tribunal considerar que há uma violação, o princípio aplicar-se-á a Portugal também.

Falta um consenso europeu?

É um factor importante nas decisões do tribunal. Se há uma tendência forte na direcção da mudança, isso influenciará o tribunal. A alteração da lei em Portugal foi uma decisão voluntária que fez dele um dos países mais avançados na Europa. É provável que, no futuro, o TEDH decida que o casamento é um direito e isso vai significar que todos os países terão de permitir o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Mas vai demorar algum tempo.

Foi ouvido como especialista no caso de Karen Atala, no Chile, semelhante a um caso português muito mediatizado nos anos 1990.

Sim. O caso João Mota versus Portugal foi o primeiro sobre parentalidade lésbica e gay levado ao TEDH, em 1999, e foi estabelecido o princípio de que a orientação sexual não deve ser tratada como um factor negativo [para obter a custódia de um filho de um casamento homossexual anterior]. Em 2008, com o caso E.B. versus França, esse mesmo princípio foi alargado à adopção. O Tribunal Interamericano dos Direitos Humanos [para a América Latina e Caribe] nunca tinha tido casos de direitos LGBT até Agosto último. O caso é idêntico e acho que há uma boa oportunidade de a decisão ser semelhante à do caso João Mota versus Portugal. Pode dizer-se que um caso português beneficiou toda a Europa e agora pode beneficiar pelo menos 20 países, na América Latina e Caribe.

claudia.sobral@publico.pt

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