O rei que refundou Portugal

Desde os cronistas seus contemporâneos a poetas como Camões e Pessoa, D. Dinis foi sempre associado ao seu trisavô, o rei fundador D. Afonso Henriques. Um inventou Portugal como país independente, o outro transformou-o no embrião de um estado moderno. O rei-poeta pôs-nos a escrever em português.

Na noite escreve um seu Cantar de Amigo/ O plantador de naus a haver (...)" Lêem-se estes versos de Pessoa e a imagem que nos vem à cabeça é a de um inspirado vate romântico, escrevendo noite fora, à luz das velas, como se fora um Lord Byron no seu palazzo Mocenigo. Um rei-poeta visionário, que, sonhando já com as naus dos Descobrimentos, teria mandado plantar o pinhal de Leiria para garantir que não faltaria madeira para os barcos quando soasse a hora da expansão marítima.

O que importava ao autor da Mensagem era, claro, o mito de D. Dinis, e não o D. Dinis da historiografia moderna ou dos estudos literários. Esse não foi decerto um poeta romântico, nem faria a menor ideia de que "inspiração" pudesse ter outro significado que não o de encher o peito de ar. E se lhe chamaram "O Lavrador", o certo é que também não mandou plantar o pinhal de Leiria, embora tenha zelado pela sua conservação.

No entanto, talvez seja dom da grande poesia escrever, como o Outro, direito por linhas tortas. E Fernando Pessoa terá alguma razão em sugerir que esse Portugal que iria lançar-se, no início do século XV, à descoberta de novos mundos, era, em alguma medida, um país que só começou efectivamente a existir no reinado dionisino. E que ficou a dever a este monarca da primeira dinastia algumas medidas concretas que iriam depois revelar-se cruciais, como a criação de uma verdadeira marinha de guerra e o avisado convite ao experiente genovês Emanuele Pessagno, vulgo Manuel Pessanha, para que a organizasse e dirigisse.

A D. Dinis se deve também a salvação dos templários portugueses, para os quais fez expressamente criar a ordem militar de Cristo, que mais tarde, sob o grão-mestrado do Infante D. Henrique, iria ter um papel instrumental nos Descobrimentos. É tentador pensar que o rei-poeta, se não fora a infeliz circunstância de estar morto há um século, teria gostado de ver a cruz vermelha desta ordem estampada nos panos dessas primeiras caravelas que se fizeram a mares desconhecidos.

Regressando ainda um momento à Mensagem, note-se que não é decerto por acaso que o único rei português que nela figura anterior a D. Dinis é justamente Afonso Henriques, o fundador. E já Camões, n"Os Lusíadas, apresentara assim o sexto rei da primeira dinastia: "Eis depois vem Dinis, que bem parece/ Do bravo Afonso estirpe nobre e di[g]na." Na sua recente biografia do monarca, escrita para a colecção de biografias dos reis de Portugal editada pelo Círculo de Leitores e pela Temas e Debates, José Augusto de Sotto Mayor Pizarro mostra como esta associação entre o primeiro rei e o seu trineto já vem dos primeiros cronistas de D. Dinis, incluindo o seu filho bastardo D. Pedro, conde de Barcelos, que, na Crónica Geral de Espanha, redigida em 1344, lembrava que este era "muito nobre e muito grandioso e descendia do nobre sangue d"el rei Dom Afonso Henriques". E Frei Francisco Brandão, em meados do século XVII, escreve que as obras de D. Dinis são "dignas de um Príncipe capaz de ser o primeiro, e não o sucessor em qualquer Monarquia".

A própria duração do seu reinado, que se estendeu por 46 anos, só tem paralelo, na primeira dinastia, com os 57 anos que governou Afonso Henriques. E o mínimo que se pode dizer é que D. Dinis não desperdiçou esse meio século de vida activa.

Fez tudo quanto quis

Um breve inventário dos seus feitos mais relevantes teria de incluir coisas tão diversas como o estabelecimento definitivo das fronteiras portuguesas no Tratado de Alcanices, a resolução do conflito que opunha Portugal à Santa Sé desde o tempo de Afonso III, a desvinculação das ordens militares portuguesas de qualquer obediência a Castela, a fundação da primeira universidade portuguesa e a instituição do português como língua oficial da corte, a já referida reorganização da marinha de guerra, o estímulo ao povoamento através da criação de largas dezenas de novos concelhos, uma profunda remodelação do sistema de administração da justiça, o cerceamento do poder da grande nobreza e a perseguição dos abusos senhoriais, a promoção do comércio externo e, sobretudo, interno, com a criação de um sem-número de feiras e mercados, o incentivo da agricultura, da pesca e da mineração, a estabilização da moeda portuguesa e, para abreviarmos o rol, a construção e renovação de castelos e outras estruturas defensivas ao longo de toda a fronteira. Afazeres que ainda lhe deixaram tempo para ser o mais prestigiado e prolífico trovador da sua geração, escrevendo e musicando quase centena e meia de poemas.

Se este catálogo, que não pretende de todo ser exaustivo, basta para dar razão ao historiador e gramático Duarte Nunes de Leão, que, no século XVI, salientou "as muitas utilidades que a seu reino causou" D. Dinis, o que nele é mais significativo não é tanto a sua extensão e variedade, mas o facto de todas estas reformas se articularem entre si e obedecerem a uma inequívoca e deliberada estratégia, à qual José Mattoso chamou "política de nacionalização". Apesar de ter tido a tarefa facilitada pelas muitas reformas que seu pai já empreendera no mesmo sentido, D. Dinis herdou, ainda assim, um país semifeudal, que conseguiu transformar no esboço de um Estado moderno. Nesse sentido, foi, de facto, "o Pai da Pátria", como o cognominou o mesmo Duarte Nunes de Leão, que, curiosamente, viria a defender a anexação de Portugal por Castela na crise sucessória provocada pela morte de D. Sebastião.

Esta imagem de D. Dinis como refundador do país não se desvaneceu na historiografia contemporânea, que encontra boas razões para confirmar o juízo dos antigos cronistas e a intuição dos poetas. Se existe algum diferendo entre os autores actuais, é na extensão do mérito que cabe ao seu antecessor, D. Afonso III. José Augusto Pizarro vê uma grande continuidade nos reinados de D. Afonso III, D. Dinis e D. Afonso IV, e reconhece que muitas das políticas de D. Dinis foram lançadas no reinado do pai, que estabilizou as finanças régias, outorgou um grande número de forais e começou a afrontar os privilégios da nobreza senhorial e do poder eclesiástico. Mas distingue a governação de D. Dinis pela nitidez com que estas e muitas outras políticas vão ser coordenadas e postas ao serviço de um projecto sistemático de centralização do poder e de libertação do país de quaisquer tutelas externas. Ou seja, da criação de uma identidade nacional, de um genuíno Estado-nação.

Ao velho e verdadeiro dito popular que afirma que "El-rei D. Dinis fez tudo quanto quis", seria justo acrescentar que o monarca também mostrou sempre saber muito bem o que queria fazer.

Um ruivo com bons dentes

D. Dinis, já vai sendo tempo de o dizer, nasceu a 9 de Outubro de 1261, em Lisboa, filho de Afonso III de Portugal e de Beatriz de Castela, uma filha natural de Afonso X, o Sábio, cujo interesse pelas letras o neto iria herdar. E a primeira circunstância a assinalar na sua biografia é esse estranho nome que lhe deram, esse afrancesado "Dinis", que se destaca, como uma singularidade, da mão-cheia de Afonsos e Sanchos que o antecedeu. S. Dinis, celebrado justamente a 9 de Outubro, era o patrono da família real francesa, e, explica José Augusto Pizarro, os nomes de Afonso e Sancho estavam fora de questão. O primeiro por não existir, em Portugal, a tradição de monarcas consecutivos com o mesmo nome, o segundo, que seria a opção óbvia, porque não convinha evocar Sancho II, a quem D. Afonso III, pai de D. Dinis, apeara do trono.

Sabe-se pouco acerca da infância e primeira adolescência do príncipe, mas conhecem-se os nomes dos aios encarregados da sua educação, entre os quais se contou Lourenço Gonçalves Magro, mais um elo que o liga ao fundador do reino, já que este seu tutor era descendente do célebre Egas Moniz. O pupilo seria mais tarde confiado aos cuidados do meirinho-mor de Afonso III, Nuno Martins de Chacim, que D. Dinis depois nomearia para o cargo de mordomo-mor, o mais prestigiado da corte.

Da aparência física do monarca, sabemos hoje alguma coisa. Mais, na verdade, do que souberam os cronistas dos séculos XVI e XVII, que, não fazendo a menor ideia de qual seria o seu aspecto, arriscaram pintá-lo de cabelos pretos e "porte majestoso". No final dos anos 30 do século passado, quando se procedia a um restauro na igreja do antigo mosteiro de Odivelas, onde o monarca quis ser sepultado, o seu túmulo foi acidentalmente aberto. Ficámos assim a saber que era um homem baixo - media 1,65m - e que tinha um rosto estreito. E era ruivo. Outra singularidade, que poderá ser, segundo Pizarro, herança genética do imperador Frederico, o Barba Ruiva, trisavô da mãe de D. Dinis.

Que o monarca tinha tido uma vida longa - morreu aos 63 anos - e que, mesmo em idade avançada, gozava ainda de boa saúde, não era novidade. Aos 60 anos, ainda montava a cavalo e caçava. Mais extraordinário, todavia, é ter morrido com a dentadura completa e com todos os dentes em bom estado, façanha invulgar mesmo nos dias de hoje. Na Europa do século XIV, um sexagenário sem um único cabelo branco - é o que garantem os investigadores que analisaram os seus restos mortais - e ostentando uma dentição perfeita devia ser quase um prodígio, e é por isso desconcertante que o seu filho D. Pedro, nas muitas páginas que dedicou ao pai, não tenha feito qualquer alusão à aparência física de D. Dinis.

Conflitos domésticos

Não será possível resumir aqui todos os aspectos do reinado de D. Afonso III que condicionaram o do seu filho, mas há um episódio que convém recordar para se perceber as intensas movimentações diplomáticas que D. Dinis irá empreender junto da Santa Sé logo que sobe ao trono, bem como os seus esforços iniciais para apaziguar o clero português. Quando D. Afonso III se casou com Beatriz de Castela, em 1253, era ainda casado com Matilde de Bolonha. Esta situação de bigamia levou o pontífice Alexandre IV a lançar um interdito papal sobre o país, que durará até 1262. D. Dinis, que nascera no ano anterior, era pois, aos olhos da Santa Sé, um filho ilegítimo. O segundo casamento de Afonso III é depois reconhecido por Urbano IV, mas o monarca prosseguirá a sua política de afrontamento aos privilégios do clero e virá a ser excomungado pelo Papa Clemente IV. Em 1276, Gregório X publica a bula De regno Portugaliae, que ameaçava o país com um novo interdito e confirmava a excomunhão de D. Afonso III.

Quando D. Dinis, por volta dos seus 16 anos, começa a assistir aos encontros em que se discutiam os negócios do reino, o conflito com a Igreja, que levara já muitos bispos a abandonar o país, está na ordem do dia. Irá tentar resolvê-lo logo que sobe ao trono.

Em 1278, D. Afonso III associa formalmente o filho à governação e concede-lhe casa, inventariando a lista de cavaleiros que a ela ficariam adjudicados e atribuindo a D. Dinis um rendimento anual de 40 mil libras. O rei já antes dotara o seu segundo filho, o infante D. Afonso, nascido em 1263, com os senhorios de Portalegre, Arronches e Vide. Um gesto de protecção paternal que poderá ter contribuído para os conflitos que D. Dinis virá a ter com este seu irmão mais novo.

D. Afonso III morre a 16 de Fevereiro de 1279 e o seu testamento mostra-o arrependido do longo confronto que mantivera com o clero. D. Dinis cinge a coroa de Portugal. Tem apenas 17 anos. A sua mãe ainda terá tentado liderar uma espécie de conselho de regência, mas o filho desiludiu-a rapidamente de quaisquer veleidades de ingerência na governação. O conflito com D. Beatriz leva mesmo à intervenção de Afonso X, que terá tentado encontrar-se com o neto em Badajoz, encontro que D. Dinis rejeitou. Raras vezes, aliás, terá posto o pé fora de Portugal, mas, em compensação, poucos reis terão percorrido tantas vezes o seu país de lés a lés. Os seus itinerários, sobretudo no início do reinado, são elucidativos. Veja-se, por exemplo, o ano de 1280. Em Janeiro estava em Santarém, seguindo-se um hiato documental que não permite verificar por onde andou até Julho, quando aparece no Minho e se instala em Braga. Nos meses seguintes percorreu a Beira Baixa e Trás-os-Montes, parando em Lamego, Sernancelhe e em várias outras terras. No final de Outubro está já em Montemor-o-Novo. E passa o final do ano no Alentejo, visitando Estremoz, Elvas, Alandroal e Juromenha.

Agostinho da Silva, que sonhava com uma espécie de regresso utópico ao Portugal dionisino, diz que "o rei andava pelo país, de concelho em concelho", e que Portugal era então "uma nação sem capital". Era-o de facto, embora tenha sido justamente com D. Dinis que Lisboa, cidade pela qual irá mostrar, ao longo dos anos, uma crescente preferência, começa a afirmar-se como centro político e administrativo do país.

Descontadas breves escaramuças com Castela, ditadas por razões de oportunidade e que resultaram em acréscimos territoriais para Portugal, D. Dinis foi um rei reconhecidamente amante da paz, que se concentrou na organização interna do reino. Curiosamente, só não conseguiu evitar conflitos na esfera familiar. Além deste diferendo com a mãe, que acabaria por se reunir, em Sevilha, ao seu pai Afonso X, viu-se obrigado a pegar por três vezes em armas contra o seu irmão D. Afonso, e não conseguiu evitar, no final da vida, que os conflitos que o opunham ao seu filho, o futuro D. Afonso IV, redundassem numa guerra civil. Até com a sua piedosa consorte, Isabel de Aragão, a Rainha Santa, teve sérios desentendimentos.

Uma chuva de forais

Mal chega ao trono, D. Dinis começa a tratar do seu casamento com D. Isabel, filha de Pedro III de Aragão e irmã do futuro Jaime II, que herdará a coroa em 1291. Uma aliança previdente, já que Aragão era então uma pedra-chave no equilíbrio dos poderes peninsulares. Cabeça de uma espécie de confederação ao estilo medieval, incluía o condado de Barcelona (ou seja, a Catalunha) e os reinos de Saragoça, Maiorca, Valência e Sicília.

As núpcias com D. Isabel celebram-se, por procuração, em 1281. D. Dinis começa nesse mesmo ano a tentar resolver os diferendos com a Igreja, promovendo na Guarda uma reunião com os bispos portugueses. Sabendo jogar habilmente com os curtos pontificados da época - no tempo de vida do rei, salienta José Augusto Pizarro, sentaram-se nada menos do que 15 sucessivos papas na cadeira de S. Pedro -, não só conseguirá pacificar os conflitos com a Santa Sé, mas alcançará mesmo, em 1289, a assinatura de uma Concordata, que lhe irá permitir resolver internamente os problemas com o clero, sem a constante intromissão de Roma. Começa por proteger os padres e frades de alguns abusos do poder senhorial, mas não tardará a retirar-lhes privilégios, interditando as instituições religiosas de herdarem bens de raiz e proibindo a venda de propriedades a eclesiásticos.

No ano de 1281, o terceiro do reinado, assiste-se ainda ao primeiro conflito entre D. Dinis e o seu irmão Afonso. Além dos territórios que recebera do pai, o infante tinha a tenência da Guarda e era uma das principais figuras do reino. As relações entre os irmãos pareciam ser amigáveis, e o que terá desencadeado a discórdia foi o facto de D. Afonso ter decidido fortificar o seu senhorio de Vide, medida encarada por D. Dinis como uma afronta à sua autoridade. O monarca cercou Vide e o irmão refugiou-se em Sevilha, de onde mandou emissários para negociar a paz, que acabou por ser ratificada no início do ano seguinte. D. Afonso não foi patrimonialmente penalizado, e até passou a receber uma generosa renda anual, mas comprometia-se a ser fiel ao irmão e a prestar-lhe vassalagem. Não tardou muito a faltar à promessa, como adiante veremos.

Nos anos seguintes, D. Dinis prossegue o afã legislador de seu pai, publicando várias leis. A mais relevante, nesta primeira fase, será a das Apelações, de 1282, que retirava poderes à administração senhorial da justiça, determinando que qualquer súbdito poderia apelar directamente ao tribunal régio. Aposta também no povoamento do reino, que tinha ainda vastas zonas praticamente desabitadas, sobretudo no Algarve, cuja conquista se concluíra no tempo de Afonso III e que só em 1268 passara a integrar formalmente o território português. O ritmo de concessão de forais é, já desde os primeiros anos da governação, impressionante: Aljezur em 1280; Castro Marim, Oriola e Paredes em 1282; Cacela em 1283; Póvoa da Veiga, Nozelos, Favaios e Sanceriz em 1284; Almodôvar, Rebordãos, Valverde, Vila de Rei e Torre de Moncorvo em 1285; e, para não irmos mais longe, Valbom, Lagoaça, Vila Flor, Porches, Vila Franca e Miranda do Douro em 1286.

Fama do rei chegou a Dante

Enquanto promovia o povoamento e estimulava o comércio com a criação de feiras e mercados, ia também dando passos seguros no sentido de limitar o poder da aristocracia senhorial. Logo em 1283, revoga todas as doações que fizera desde que subira ao trono, alegando que as fizera quando era "de pequena idade", em tempos que "não devem valer". E no ano seguinte ordena as primeiras Inquirições Gerais do seu reinado, destinadas a averiguar os abusos da nobreza. É também nesta época que cria um novo tipo de funcionário régio, o "contador", que irá melhorar o controle das finanças régias.

Enriquecer os cofres reais era fulcral para o seu projecto de centralização política, jurídica e administrativa, desde logo porque este implicava a criação de uma robusta burocracia régia, cujos funcionários, no século XIII como no actual, não trabalhavam de graça. Esta sua estratégia de estabilização financeira da Coroa parece ter dado frutos. Tanto quanto se sabe, e ao contrário do que sucedera em reinados anteriores, a moeda portuguesa nunca sofreu qualquer desvalorização durante o seu reinado. E o tesouro régio estava suficientemente bem recheado para que tenha podido emprestar, em 1303, a avultada soma de um milhão de maravedis a Fernando IV de Castela, a quem concederia novo empréstimo poucos anos depois. A fama da sua riqueza chegou mesmo aos ouvidos de Dante, que a ela alude na Divina Comédia.

Como era de prever, a nobreza foi-se ressentindo das sucessivas medidas que afectavam os seus privilégios e corrigiam os seus abusos, e a facção mais descontente terá passado a contar, a partir de certa altura, com o apoio do infante D. Afonso. Em 1287, este voltou a afrontar o irmão, agora apoiando adversários de Sancho IV de Castela, com quem D. Dinis mantinha boas relações. O rei foi guerreá-lo a Arronches, juntamente com Sancho IV, e Afonso voltou a ser derrotado. Desta vez pagou o preço, tendo sido forçado a trocar Arronches, um importante senhorio fronteiriço, por Armamar. Nos anos seguintes, D. Dinis irá ordenar ou negociar diversas trocas de terras, com diferentes proprietários, e sempre no sentido de reforçar os territórios régios na fronteira e evitar a concorrência senhorial a sul do Tejo.

Outros aspectos da sua política de nacionalização vão também começando a tornar-se mais nítidos. Em 1288, no mesmo ano em que ouve, nas Cortes de Guimarães, os protestos dos nobres contra as ingerências régias, pede à Santa Sé que o autorize a fundar uma universidade e consegue que esta permita a autonomização da Ordem do Hospital em Portugal, que até aí respondia perante o provincial de Castela. Mas a sua mais relevante vitória nas relações com a Igreja dá-se no ano seguinte, quando o Papa ratifica o acordo que D. Dinis firmara anteriormente com os bispos portugueses. O documento ficou conhecido como a Concordata dos 40 Artigos.

Um poeta coroado

Se D. Dinis foi em muitos domínios um continuador do pai, é indiscutível mérito seu ter percebido que a promoção da língua e o investimento na instrução eram instrumentos fundamentais para consolidar uma identidade nacional. Autorizada a fundação de uma universidade, em 1290, instala-a em Lisboa, donde depois a transferirá, em 1308, para Coimbra. Entre outras vantagens, este Estudo Geral, como então se chamava, iria fornecer à burocracia régia funcionários devidamente instruídos e competentes. Em 1296, promulga outra medida fundamental: a adopção do português em toda a documentação régia.

Mais enigmático, apesar do precedente de Afonso X, cuja obra literária certamente conhecia, é o facto de D. Dinis se ter tornado não apenas um trovador, mas, provavelmente, o mais respeitado da sua geração. O seu pai tivera decerto trovadores rondando a corte, mas ele próprio nunca deu mostras de se interessar pela poesia. É com D. Dinis que a lírica galego-portuguesa, um fenómeno que nasce e se desenvolve na cultura aristocrática, e que já então entrara na sua fase declinante, vai ser assumida pela corte. O medievalista José Carlos Miranda lembra que D. Dinis tinha atrás de si um século de poesia trovadoresca e vê-o como um poeta menos interessado em inovar do que em lidar com esse passado. Um passado que o rei sentiria como ameaçador, já que se confundia, argumenta o investigador, com a própria cultura senhorial. Daí que D. Dinis vá produzir uma poesia de contenção e que recusa quaisquer rupturas, já que são esses, afirma ainda José Carlos Miranda, "os princípios que quer ver seguidos, nas relações sociais, pelos seus súbditos".

É claro que este enquadramento da poesia de D. Dinis numa estratégia de controle da cultura aristocrática não invalida o seu talento pessoal, ainda que alguns dos seus poemas mais justamente apreciados sejam, o que era comum na época, variações de outros autores, como a belíssima cantiga Levantou-s"a velida, construída a partir de uma não menos notável composição de Pero Meogo.

Em 1990, um investigador americano, Harvey Sharrer, descobriu na Torre do Tombo um fragmento de um cancioneiro, possivelmente redigido ainda em vida de D. Dinis, onde sete das suas trovas aparecem acompanhadas da respectiva notação musical. Um achado extraordinário, já que constitui, a par do chamado Pergaminho Vindel (com algumas cantigas de amigo do galego Martim Codax), o único manuscrito conhecido com música composta para poesia profana galego-portuguesa.

Guerra com Castela

Regressando à biografia de D. Dinis, na qual é difícil encaixar cronologicamente a sua produção poética, cujas datas se desconhecem, o próximo acontecimento a assinalar é o nascimento, em 1290, da sua filha Constança, a que se seguiu, logo no ano seguinte, o do infante D. Afonso, futuro Afonso IV. São os únicos filhos que teve com Isabel de Aragão, e nasceram ambos quando já estava casado há quase uma década. Como elemento de comparação, note-se que Afonso III teve, em nove anos, outros tantos filhos de Beatriz de Castela.

José Augusto Pizarro, usando embora uma formulação bastante mais elegante, deduz que D. Dinis e a sua piedosa esposa não se dariam muito bem na cama. E observa que D. Isabel dispôs de muito mais tempo livre do que qualquer uma das anteriores rainhas consortes portuguesas, que passavam a vida grávidas, o que pode explicar que também tenha tido uma invulgar intervenção política e diplomática, quer afrontando as pretensões do irmão do marido, D. Afonso, quer intermediando, mais tarde, o conflito do rei com o seu filho, quer ainda na copiosa correspondência que travou com o seu irmão Jaime II de Aragão.

Antes de se casar, D. Dinis já tivera três filhos naturais, aos quais se somariam vários outros depois do casamento. Protegeu-os a todos, deu alguns a criar à própria rainha, e concedeu-lhes os mais importantes cargos da corte.

Os que tiveram um papel mais relevante são provavelmente D. Pedro Afonso, que veio a ser conde de Barcelos e é considerado o último trovador da península, e, sobretudo, D. Afonso Sanches, a quem cumulou de tais benesses que o herdeiro do trono, D. Afonso, chegou a recear que D. Dinis ponderasse afastá-lo da sucessão em favor deste seu meio-irmão.

Desde o início do reinado, e descontadas as escaramuças entre D. Dinis e o irmão, o país estivera sempre em paz. Mas a morte de Sancho IV, em 1295, deixando um filho menor e não reconhecido pela Igreja, Fernando IV, vai levar Portugal à guerra com Castela. D. Dinis apoia as pretensões ao trono de um irmão do falecido rei, provavelmente menos por convicção do que pela necessidade de encontrar um pretexto para travar uma guerra que se adivinhava proveitosa.

Acossada em diversas frentes, incluindo a de Aragão, com Jaime II a defender o seu próprio candidato à sucessão de Sancho IV, Castela assina, em Setembro de 1297, o célebre Tratado de Alcanices, pelo qual se acordava o casamento de D. Constança com Fernando IV e o do futuro Afonso IV com D. Beatriz, irmã do rei castelhano. Castela cedia a Portugal, em troco de Arouche, Aracena e de alguns outros lugares pouco relevantes, Campo Maior, Ouguela, Olivença e S. Félix dos Galegos, e entregava ainda as terras de Riba-Côa, que incluíam, entre outras, as povoações fortificadas de Almeida, Castelo Melhor, Castelo Rodrigo, Monforte e Sabugal. A actual fronteira de Portugal foi traçada em Alcanices.

Um problema de partilhas

Acordada a paz com Castela, os conflitos que D. Dinis ainda irá ter de enfrentar na segunda metade do seu reinado serão internos. Em 1299, o seu irmão D. Afonso volta a desafiá-lo, e, sugere Pizarro, a perspectiva do enfrentamento terá inquietado D. Dinis o suficiente para o levar a fazer o seu primeiro testamento, no qual manifesta o desejo de ser enterrado no mosteiro de Alcobaça, cujo Claustro do Silêncio mandara construir. Mais tarde, no entanto, mudará de ideias e deixará instruções para que o sepultem no mosteiro de Odivelas, que fundara em 1295.

Cercado em Portalegre e novamente derrotado, D. Afonso exila-se em Castela, com autorização do rei, a quem cede Portalegre e Marvão, recebendo, em troca, Sintra e Ourém.

As sucessivas desavenças de D. Dinis com o irmão foram breves e fáceis de resolver, mas não acontecerá o mesmo com o conflito que o vai opor ao futuro Afonso IV. A guerra civil propriamente dita só rebentará em 1319, mas as suas raízes são muito anteriores e prendem-se com o poder que o rei foi outorgando aos seus filhos bastardos, em detrimento das principais famílias da nobreza senhorial e do seu próprio herdeiro.

Se a tensão entre o monarca e a aristocracia, irritada com as sucessivas Inquirições de que era alvo, vinha crescendo desde o início do reinado, a situação agravou-se radicalmente quando a justiça real chamou a si a resolução da herança do conde de Barcelos. D. Dinis criara em 1298 o primeiro condado português, fazendo conde de Barcelos o seu mordomo-mor, João Afonso Telo, senhor de Albuquerque, que tivera intervenção determinante na preparação do Tratado de Alcanices. Quando este morreu, em 1304, o direito ao seu legado patrimonial foi disputado pelos seus dois genros: D. Martim Gil, mordomo-mor do infante D. Afonso, e Afonso Sanches, o protegido filho bastardo de D. Dinis. Crê-se que Martim Gil, que recebeu o título mas se sentiu prejudicado, terá aproveitado a sua posição junto do herdeiro do trono para o instigar contra o seu meio irmão, no que provavelmente terá sido secundado pela rainha, interessada em defender os interesses do filho.

Quando a Corte divulga finalmente a sua decisão definitiva sobre a herança, em 1312, o favorecimento de Afonso Sanches é notório. Martim Gil, agastado, exila-se em Castela. E o terceiro conde, D. Pedro Afonso, não tarda a seguir-lhe o exemplo, já que, sendo embora filho bastardo de D. Dinis, como o próprio Afonso Sanches, dera o seu apoio ao futuro D. Afonso IV.

As relações entre pai e filho deterioravam-se rapidamente e eram o espelho do crescente descontentamento da nobreza, que via as velhas famílias portuguesas irem perdendo terreno para uma nova aristocracia directamente ligada à corte e encabeçada pelos filhos naturais do monarca.

A guerra civil

Em meados de 1319, o infante D. Afonso deixa a Corte com a sua mulher, D. Beatriz, com quem se casara em 1309, e, à revelia do pai, vai a Castela encontrar-se com a rainha Maria de Molina. Esta envia cartas ao monarca português, sugerindo-lhe que confie ao filho a justiça do reino, o que, evidentemente, D. Dinis rejeita. Começam as primeiras escaramuças entre partidários do rei e do seu herdeiro. Pai e filho trocam recriminações públicas. O infante diz que Afonso Sanches o tentou envenenar e acusa D. Dinis de pretender afastá-lo do trono, afirmando que o rei já teria mesmo pedido ao Papa a legitimação do seu filho bastardo.

O assassinato, por partidários de D. Afonso, do bispo de Évora, Geraldo Domingues, que já em 1317 ameaçara de excomunhão os que incitassem o infante à revolta, atiça ainda mais os ânimos. Após vários reencontros entre ambas as facções, D. Afonso decide-se a guerrear abertamente o pai. Em meados de 1321, leva a mulher e o filho, o futuro rei D. Pedro, que nascera no ano anterior, para Alcanices, e regressa a Portugal, onde conseguirá tomar várias cidades. Deve ter tido o apoio mais ou menos declarado da mãe, porque D. Dinis desterra a rainha D. Isabel para Alenquer e priva-a de todos os seus rendimentos.

No final do ano, D. Afonso ocupa Coimbra. E nos primeiros meses de 1322 apossa-se dos castelos de Montemor-o-Velho e da Feira e avança até ao Porto, onde se encontra com D. Pedro, conde de Barcelos, que deixara o exílio de Castela para auxiliar o infante. Daí partem a cercar Guimarães, que, no entanto, não conseguem tomar.

Segue-se o contra-ataque de D. Dinis, que começa por recuperar Leiria, partindo depois para Coimbra. Informado de que o rei cercara a cidade, D. Afonso deixa Guimarães e vai ao seu encontro, preparado para um confronto decisivo com o pai. A batalha parecia inevitável, mas acaba por ser evitada pela intermediação da rainha e do conde D. Pedro, que persuadem os dois contendores a negociar a paz. D. Dinis cede ao filho o senhorio de Coimbra e vários dos castelos que este já tomara, reabilitando ainda o conde D. Pedro, a quem devolve todos os bens.

Mas a trégua dura pouco e o conflito volta a reacender-se mais do que uma vez até que se chega, finalmente, a uma paz definitiva em Fevereiro de 1324. D. Dinis cede e, para sossegar de vez os receios do herdeiro, destitui o seu bem-amado Afonso Sanches do cargo de mordomo-mor e exila-o nas suas propriedades de Albuquerque.

A relativa vitória do infante foi também o triunfo da velha aristocracia senhorial. José Mattoso estudou as listas de partidários das duas facções e concluiu que todos os membros da alta nobreza envolvidos no conflito estiveram, sem excepção, do lado do infante D. Afonso.

Se o final do reinado de D. Dinis foi penoso e lhe trouxe grandes amarguras, a sua decisão de transigir com os desejos do filho assegurou-lhe, pelo menos, o derradeiro consolo de morrer em paz e reconciliado com a família mais chegada. Morreu em Santarém, no dia 7 de Janeiro de 1325, tendo a seu lado a rainha, o infante e o conde D. Pedro.

Iniciava-se o reinado de Afonso IV, que, por ironia do destino, também iria ver o seu filho e herdeiro, D. Pedro, declarar-lhe guerra, após o assassinato de Inês de Castro. E também Afonso IV acabaria por ceder às pretensões do filho.

luis.miguel.queiros@publico.pt

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