A ambição do mundo perfeito

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Caleidoscópio de Olafur Eliasson. À esquerda, Narcissus Garden, de Yayoi Kusama

Inhotim é como o mundo não é. Cem hectares com 500 obras de arte, 4200 espécies botânicas e dezenas de projectos sociais. Fica em Minas Gerais, interior do Brasil, e todos os dias está maior. Como um projecto megalómano mudou a vida de uma região.

Difícil acreditar que possa haver outro lugar como este. E tudo em Inhotim parece ter sido pensado para isso, ser como nada foi ou será, a recriação do paraíso pelo homem, de certa forma o contrário da natureza, do acaso ou dos deuses. Uma reserva com centenas de obras de arte contemporânea, milhares de espécies botânicas e intervenção social em volta, numa escala inédita.

Pensado por um milionário brasileiro em 1980, apresentado ao mundo em 2004, aberto ao público em 2006, está hoje com 30 mil visitantes por mês, ou seja mil por dia.

E cresce diariamente.

Algumas das novidades recentes são as galerias, pavilhões ou espaços ao ar livre inteiramente dedicados a artistas como Matthew Barney, Miguel Rio Branco, Hélio Oiticica, Chris Burden e Doug Aitken.

Isto, num espólio de 500 obras que já abrange Cildo Meireles, Dan Graham, Janet Cardiff, Anish Kapoor, Larry Clark, Lygia Clark, Lothar Baumgarten, Nuno Ramos, Steve McQueen, Vik Muniz, Waltercio Caldas, William Kentridge ou Zhang Huan, artistas de 30 países, incluindo os portugueses João Maria Gusmão & Pedro Paiva.

Durante os três dias que o P2 demorou a ver os cem hectares visitáveis - pensem em 140 campos de futebol -, uma nova megagaleria colectiva estava em obras e previam-se novos pavilhões para artistas como Gerhard Richter, Olafur Eliasson, Tunga, ou Lygia Pape.

As esculturas ao ar livre até podem ver-se durante um piquenique, mas alguns filmes e instalações sonoras levam horas. Há lagos, pontes, alamedas, colinas, bosques, e entre tudo isto, espalhadas, dezenas de obras e de galerias, individuais e colectivas.

Três dias, pelo menos.

O vizinho Brumadinho

Partindo de Belo Horizonte, capital mineira, são 60 quilómetros até Brumadinho, a povoação vizinha de Inhotim, de onde vem a maioria dos funcionários e estagiários que trabalham no parque.

É gente interiorana, como se diz por aqui. Vivia das minas, agora vive cada vez mais de Inhotim.

Por exemplo, Thais, 18 anos, guardiã das 500 esferas de aço inoxidável que flutuam, levíssimas, no jardim aquático por cima da biblioteca-teatro-café. A cada brisa, movem-se entre flores e nenúfares, e fazem mover toda a paisagem nelas reflectida, céu, árvores e gente. A autora, a japonesa Yayoi Kusama, chamou-lhe Narcissus Garden, e parece impossível não sermos levados pela nossa própria imagem multiplicada em centenas de esferas, tinindo e vogando pela água.

"É uma obra muito legal", comenta Thais, brilhante no nariz, jeans, ténis, rabo-de-cavalo. Fez toda a escola em Brumadinho, hesita em cursar psicologia na faculdade, há oito meses que aqui trabalha.

Recebeu uma formação inicial e depois começou a rodar pelas obras a cada 15 dias. A ideia é que todos os estagiários aprendam coisas diferentes sobre os artistas e as paisagens. "A gente passa por todas. A que eu mais gostei foi a do Chris Burden, talvez por causa da paisagem. Fica bem afastada." Uma floresta de vigas de ferro. Lá iremos.

Não há um percurso definido para percorrer Inhotim. Cada visitante segue o mapa como entender. As esferas neste tecto da biblioteca são apenas um dos princípios naturais porque estão no extremo sul do parque, com vista para um dos lagos e algumas das 1500 espécies de palmeiras.

"O meu irmão também trabalha aqui", diz Thais. "É segurança."

Subindo para norte, um trilho de lajes leva ao grande lago central.

Na margem de lá, as cores vibrantes do que parecem paredes de Legos mas são esculturas de Hélio Oiticica. Na margem de cá, o pavilhão transparente de Dan Graham com vidros que aumentam e encolhem, e onde cisnes e patos gostam de se instalar ao poente. E debaixo das árvores, em recantos inesperados, os bancos de Hugo França, designer brasileiro que só trabalha com árvores derrubadas, velhas canoas ou outras madeiras mortas, aproveitando as formas originais.

Ao todo, há 98 bancos destes em Inhotim, nenhum igual a outro.

Virando agora à esquerda, um trilho leva à Galeria Praça, uma das que reúnem varios artistas. Linhas rectas em betão, com um pátio central rodeado de palmeiras. A luz vai mudando à medida que o sol se desvia das nuvens e isso altera radicalmente a percepção, a começar pelas duas paredes pintadas com um dégradé de cinzentos, uma na vertical, outra na horizontal, criação do paulista Iran do Espírito Santo. Depois duas portas giratórias conduzem às salas interiores.

Numa delas está uma das experiências mais fascinantes de Inhotim, Forty part motet, concebida em 2001 pela canadiana Janet Cardiff, que geralmente trabalha com instalações de som. Neste caso, gravou cada cantor do Coro de Salisbury com um microfone separado e pôs 40 altifalantes a reproduzirem 40 pistas. Então, se estivermos ao centro, ouvimos um coro; se estivermos junto a um altifalante ouvimos só uma voz; e se caminharmos, vamos de voz em voz, exactamente como se caminhássemos à volta dos cantores. Cada voz é uma presença autónoma e o nosso próprio movimento é que a distancia ou aproxima das outras, até à fusão. Quem diz voz, diz tosse, sussurro, batida no microfone, fungadela, riso, vestígios de uma presença física individual.

O visitante fecha os olhos e fica a ouvir esta música do século XVI como só pode ser ouvida no século XXI, enquanto as filhas de Brumadinho sorriem à entrada, com as suas peles caboclas, os seus cabelos negros, o seu acne, um trio de estagiárias, 18, 19, e 20 anos.

Na mesma galeria vale ainda a pena não perder Swoon, da americana Janine Antoni, uma instalação para sentir a dor de um pas de deux do Lago dos Cisnes. Primeiro, através de uma respiração ofegante no vazio, como se a música tivesse sido apagada. Depois, através das pernas e pés que se movimentam por trás de uma cortina vermelha e não parecem humanos, mas pescoços e bicos de ave. Não há cara, nem identidade, só esforço.

E lá fora, um par misto de monitores a cuidar das actividades integradas na Semana dos Museus, ele com 23, Adrião, ela com 25, Marina, ambos estudantes de artes plásticas.

Para estar aqui, Adrião vem desde Belo Horizonte de segunda a sexta, num dos três autocarros que trazem funcionários para Inhotim. Sai de casa às 7h30, volta às 19h, e ainda vai para as aulas, curso nocturno. "Quero ficar aqui um tempo, mais por experiência, por pesquisa. Mas tenho os meus projectos pessoais, pintura, fotografia, instalação, vídeo..."

Bem adiante, numa sala que faz parte dos programas educativos, Camila, 25 anos, estagiária de Meio-Ambiente, conta como as palmeiras chegaram em camiões enormes, muitas delas já crescidas. Estuda Ecologia em Belo Horizonte, trabalha aqui três vezes por semana.

É a filosofia do parque: não só fazer desta região um cruzamento inédito entre arte e natureza, como fazer disso um emprego.

Pelas 15h30 as sombras já se estendem à nossa frente. Anoitece cedo no hemisfério sul. E eis que, num dos carrinhos eléctricos que se usam para alguns percursos internos, passa agora, cabelo e barba branca, ao volante, Bernardo Paz, o homem que ambicionou tudo isto. Sendo um sucesso, Inhotim não escapa a ser controverso, e Paz é a origem tanto do sucesso como da controvérsia: investigações do Ministério Público por fugas ao fisco nos negócios de mineração e siderurgia que o enriqueceram. O gabinete de comunicação de Inhotim disse ao P2 que "o pagamento da dívida já está em negociação e deverá ser feito ainda este ano".

Paz tem projectos aqui para um teatro, um centro de convenções, lojas, restaurantes com cozinha de autor, como a do chef paulista Alex Atala, e 10 pousadas que deverão ajudar às despesas de Inhotim. O que ele está a fazer ao volante deste carrinho é passear uma convidada. Continua a ter casa numa área do parque. Há 30 anos que aqui anda, toda a gente o conhece. Foi comprando hectares como foi comprando arte. Ao longo de três dias, o P2 não encontrará quem o critique, desde o interior de Inhotim às povoações das redondezas. O milionário trouxe emprego e trouxe o mundo, ou seja, riqueza. A região não é mal-agradecida.

Ao contrário de um museu, em Inhotim não estamos hermeticamente protegidos, e a Galeria Cildo Meireles oferece mesmo algum risco físico.

Inteiramente dedicada a um dos nomes mais internacionais da arte brasileira, apresenta várias salas-instalação, como aquela em que tudo é vermelho, da roupa ao pimento (verdadeiro) no frigorífico, como mostra Jessica, 19 anos, monitora e estudante nocturna, vinda de Brumadinho.

Daí se sai por um rasto de tinta vermelha que termina numa escuridão vertiginosa, em que o chão parece acabar a qualquer momento. Mas o risco real não está aí, está na última sala, um armazém onde Meireles ergueu vários tipos de barreiras em metal, vidro, plástico, pano, madeira ou arame farpado: cortinas, grades, muros, persianas, redes, cercas. Quem vier de havaianas não pode entrar no recinto e circular, mas quem estiver de sapatos fechados terá a experiência completa: caminhar em cima de cacos grossos de vidro, que rangem e se partem à medida que avançamos. Ou seja, vamos modificando a obra, ela desfaz-se sob os nossos pés, e se cairmos, vamo-nos magoar. Há um elemento à margem, um aquário cheio de peixinhos de prata, e há um elemento central, uma bola feita de celofane enrolado em torno de si próprio. O conjunto é tão poderoso que evoca a memória mais desolada do século XX.

Entretanto lá fora a tarde segue, bucólica, dourada, coberta de erva macia.

Como formigas num mapa

A próxima galeria é na verdade uma casinha que parece, e é, uma casinha da fazenda original. Quando entramos, não há nada, chão, paredes, tecto, tudo vazio. Mas se olharmos melhor para o tecto, vamos ver em contraluz as bolinhas de esferovite que são a obra da mineira Rivane Neuenschwander. Uma ventoinha fá-las mover, alterando continuamente o desenho por cima de nós, como formigas alterando um mapa.

À porta está uma cara quase de índio com rabo-de-cavalo, Luan, 20 anos, há três em Inhotim. "Só a Vale [empresa de mineração] é maior empregadora que Inhotim. Infelizmente ainda é maior. É bom para os pais de família mas totalmente errado para o meio-ambiente." Luan é um puro descendente da colonização, tataravós portugueses e índios. "A tataravó de minha avó foi pega ao laço para casar."

Agora o neto dá explicações sobre Rivane Neuenschwander e outros artistas contemporâneos a uma portuguesa leiga. "A minha galeria favorita é a da Adriana Varejão, por causa da arquitectura e da paisagem. Muito legal."

Fica ao cimo deste trilho, lá onde o parque parece dar lugar ao bosque e se abrem dois espelhos de água com uma passagem ao meio. Cá fora há um banco de azulejos com desenhos de plantas alucinogéneas, e depois a azulejaria prossegue lá dentro, memória colonial, também ela, rasgada e quebrada como acontece frequentamente na obra de Varejão (que foi casada com Bernardo Paz, e este ano bateu um recorde na Christie"s de Londres ao vender uma obra que se tornou a mais cara de um artista brasileiro vivo).

O poente apanha-nos entre o segundo e o terceiro andar. Uma jovem monitora vem dizer que a galeria fechou. Fecham todas às quatro e meia, mais meia-hora para os visitantes deixarem o parque, funcionários em autocarros, e às cinco Inhotim está deserto.

Para passar a noite, a solução mais perto é uma pousada em Brumadinho. Outra forma de renda para os habitantes locais: alojar e alimentar os visitantes. As pousadas previstas não serão para o bolso de todos, e Brumadinho continuará a ganhar.

Sem portões

Quatro quilómetros na manhã seguinte e estamos de volta. O mundo perfeito não terá portões, muros ou grades, e Inhotim também não. A estrada simplesmente bifurca, a erva torna-se muito cuidada, as palmeiras luxuriantes. Ontem era uma quinta-feira, portanto hoje é véspera de fim-de-semana. Haverá mais gente, grupos de escolas, sempre muitos, mas nunca tantos que se perca o sossego.

Íamos na escada para o terceiro andar de Adriana Varejão, que aliás é um terraço com um grande banco de azulejos, agora mostrando pássaros da Amazónia. Caminhámos das entranhas para o céu, e, prodígio da arquitectura, cá em cima é como se em volta não houvesse nada senão a natureza.

Mas para baixo, à direita, está por exemplo o pavilhão de Valeska Soares. Então descemos o trilho e vamos por uma passagem à beira de um lago. Tudo é jovem, saudável e limpo, utopia e não natureza, lajes polidas, saibro intocado, plantas viçosas - e de repente uma cabana de madeira octogonal com um espelho em cada face.

Na verdade, não exactamente octogonal. E quando mais uma moça de Brumadinho nos abre a porta, mergulhamos num mundo nocturno em que um par parece dançar The Look of Love de Burt Bacharach, mas é só uma projecção. Tudo nos foge, o par e nós próprios, multiplicados ao infinito por um jogo de espelhos em que nunca saberemos o que é real, fantasmas de nós próprios.

Depois a moça de Brumadinho volta a abrir a porta e cá fora é manhã, os pássaros cantam, as flores balançam, os cisnes vogam.

Podemos agora apanhar um carrinho eléctrico que trepa a uma das colinas, até à floresta de vigas de Chris Burden, a obra favorita de Thais, lembram-se?

Não é uma metáfora, é exactamente uma pequena floresta de 71 vigas de ferro largadas por um guindaste de 45 metros numa poça de cimento fresca, formando linhas oblíquas ao acaso. Corpos cravados na terra, enferrujando ao sol, expostos a tudo. Dependendo da luz, parecem cor de ferrugem ou silhuetas contra um abismo verde.

O carrinho eléctrico pode depois deixar-nos no Galpão Cardiff, e de novo teremos a experiência das instalações de Janet Cardiff. Uma orquestra formada por colunas de som, água a cair, uma porta a bater, uma narrativa, música, cada instrumento espalhado pelo espaço, como se os homens tivessem desaparecido, substituídos por colunas. E o rapaz de Brumadinho, guardião do espaço, com o seu rádio na mão.

Descendo, há que não perder o caleidoscópio de Olafur Eliasson, abrindo e fechando a paisagem, estilhaçando-a. Isto, antes de subir a mais uma colina e mergulhar nas Cosmococas de Hélio Oiticica.

São cinco salas, uma por cada Cosmococa, cada uma com a ficha técnica à porta, e o único ingrediente comum a todas é mesmo a cocaína com que Oiticica desenhou linhas por cima de imagens de Luis Buñuel (Cosmococa 1), Yoko Ono (Cosmococa 2), Marylin (Cosmococa 3), John Cage (Cosmococa 4) e Jimi Hendrix (Cosmococa 5). Todos estes ícones são projectados na parede, com bandas sonoras diferentes, e meios diferentes de relaxar para os ver-ouvir. Podem ser colchões, balões, redes de pano ou mesmo, no caso de Cage, uma piscina (há toalhas para as pessoas se secarem depois).

A Galeria Cosmococa foi toda ela pensada para abrigar este conjunto de Hélio Oiticica que até agora muita gente simplesmente não vira.

E entram bandos de jovens, deitam-se nas redes com Hendrix, molham o pé com Cage.

Goiaba, o nativo

Pergunte-se aos jovens de Brumadinho por um mais-velho, e eles falarão no Sr. Goiaba. Por isso é que o P2 continua sentado com o Sr. Goiaba a esta hora da noite, em Brumadinho. Está com 71 anos, e há 48 que trabalha em Inhotim, ou seja, ainda Inhotim era uma fazenda. Mais, nasceu lá.

"Nasci naquela casa onde agora está a Rivane." Rivane Neuenschwander, a tal casa vazia com as bolinhas de esferovite no tecto. "É a casa mais antiga que está de pé. Éramos nove irmãos lá. Era uma fazenda da mineração. O meu pai trabalhava na mineração. Chamava-se Castorino Rodrigues Soares. Minha mãe, Maria José Pinto de Lima. Meu pai era de ascendência índia, puri, escuro, com o cabelo todo lisinho, preto. Aos 10 anos saí para ir trabalhar para uma família de japoneses aqui em Minas, fazendo horta, legumes. Comecei a aprender muito de comércio, vendia para eles, no Mercado Central de Belo Horizonte."

Ficou 14 anos com essa família, até aprendeu japonês. "Tupico um pouco! Quero dizer que entendo um pouco!" Aos 24 voltou para trabalhar na mineração, transporte, máquinas pesadas. "Fiquei 25 anos, 10 meses e 25 dias na mineração." Até que nos anos 80 "o minério já estava pouco" e o milionário Bernardo Paz comprou o terreno. "Ele foi passar um dia lá e ficou encantado com aquilo. Encontrou comigo, viu aquela árvore enorme, o Tamboril, falou: "Gostei disso e vou cuidar disso.""

Goiaba ficou a morar lá, trabalhando como administrador. "Já começámos a plantar grama, algumas árvores, palmeiras. Quando vieram as anolinas, ou pés-de-elefante, o Burle Marx veio para explicar como é que ia plantar elas."

Roberto Burle Marx, o mais célebre paisagista brasileiro. "Ele gostava de um uísqui, falava rápido, era artista. Muito falante, muito brincalhão. Conviveu com a gente, vinha, voltava para o Rio. Eu fui no sítio dele lá no Rio [bem além da Barra da Tijuca, junto às praias de Grumari]. A casa era de soalho, você pisava, fazia barulho. E ele todo sujo de tinta, pintando quadro e tomando uísqui."

As sugestões de Burle Marx vieram a influenciar o desenvolvimento paisagístico de Inhotim. "No princípio foi ele que deu orientação." Goiaba perdeu a conta às palmeiras entretanto plantadas. "Muitas mil, muitas mesmo." À medida que Bernardo ia expandindo o parque. "Eu tinha um terreno divisando com ele e vendi. Aí, ele foi comprando de outros. Morei lá até 1994, depois construí minha casa aqui para ficar mais fácil os meus filhos estudarem."

Hoje, toda a família trabalha para Inhotim. "Eu, minha esposa Maria das Graças que mexe com orquídeas, o meu filho Lúcio que é gestor, a minha filha Lucineia que trabalha na biblioteca, e minha nora Luciana nos projectos sociais. E o meu genro é o motorista do Bernardo. Minha família está toda lá dentro."

Goiaba diz sempre "Bernardo" e não "seu Bernardo", como os mais jovens.

"O Bernardo é muito corajoso, pensa muito no trabalhador, no operário. As condições são óptimas, o salário é bom, a alimentação muito boa, pagamento em dia, plano de saúde, ele dá muita oportunidade para a pessoa subir lá dentro. Acho que ninguém tem nada que reclamar dele."

Só no jardim trabalham 80 jardineiros. "Formar o jardim é fácil, mas cuidar dele... Cortar grama dá trabalho, limpar dá trabalho..." E a arte no meio disso, Goiaba liga? "Aquilo é coisa muito importante. A gente é que não tem o conteúdo de conhecer muito, que a gente não estudou. Hoje eu queria ser mais novo para mim ter conhecimento."

De artistas, conheceu por exemplo Tunga, que é "um homem rápido, rápido" (e em 2012 deverá ter um pavilhão seu em Inhotim) e Cildo Meireles, que "também é esperto". Foi aos Estados Unidos fazer um curso sindical, para defender os trabalhadores rodoviários. Teve uma oferta de emprego num jardim americano, mas não quis.

E como é mesmo o seu nome de facto? "José de Assis Pinto. Mas aqui quase ninguém me conhece pelo nome. Eu tenho orgulho desse apelido [alcunha]. Goiaba, só sou eu aqui."

Foi ele que escolheu o lugar para a casa de Bernardo, cercado de eucaliptos e barrancos. E agora está a trabalhar com o departamento de projectos sociais e educativos, levantando as memórias dos habitantes antigos.

Nilson, o quilombola

Choveu durante a noite. Sábado amanhece com nevoeiro. São 7h20 e o taxista Toninho avança para o quilombo Sapé. Um quilombo é um antigo refúgio de escravos, o lugar para onde eles fugiam. Hoje, muitos funcionam como comunidades descendentes de escravos, reconhecidos oficialmente.

"Lá no Sapé é tudo negro da época da escravidão", resume Toninho. Atravessamos terras de cultivo, alface, couve, tomate, quiabo, laranja, milho. "Mas o forte é minério. Vai tudo lá para o Japão. Por isso é que a terra é dessa cor." Vermelha, com poeira vermelha cobrindo tudo.

"Depois de Aranha vamos pegar estrada de chão. Vamos passar Coronel Ourico, Marinhos, e depois Sapé." Estrada de chão é estrada de terra. E olha aí o comboio de minério passando, como uma cobra interminável. "São 135 vagões. Vai para o Rio de Janeiro, daí para o navio e do navio para o Japão", explica Toninho. Sabe do que fala porque trabalhou 24 anos a encher os vagões de minério. "Agora é que estou dando uma descansada, porque o minério acaba com a gente. Uma semana trabalha de dia, outra de noite, 12 horas por dia para ganhar 250 reais..."

Agora está com 46 anos, tem duas filhas a trabalhar em Inhotim. "Nunca ouvi falar mal de Bernardo Paz. Está gerando emprego. A gente está precisando de emprego, e o cara chega lá e já é colocado. O pagamento deles é em dia, nunca teve problema."

Passamos caminhos verdes, gado de corte para açougues, arraialzinhos, como aqui se chamam os povoados.

Entramos na estrada de terra. A partir daqui são 13 quilómetros até Sapé, entre plantações de laranja. "Isso vai distância longe... De um lado e do outro." O sol já acabou com a neblina. O dia ficou azul. E Sapé aparece no cimo da colina.

Toninho pára o carro no largo da Igreja, onde um homem negro está a fazer uma casa de barro e paus.

"Isso é pau-a-pique", esclarece o homem, Nilson José dos Santos. "Primeiro finco os paus, depois o barro, que seca natural ao sol, e a coberta de sapé, que é um capim. Por isso é que deu o nome aqui, porque as casas dos refugiados eram de sapé." E resistentes. "Como pode ver, teve um temporal esta noite e não entrou água nenhuma aqui. A água bate e escorre."

Não é para Nilson morar, a casa. "A gente "tá fazendo isto para a comunidade, para colocar artesanato. Eu sou o presidente da associação de moradores."

Cerca de 32 famílias, umas 120 pessoas ao todo, descendentes de escravos. "Fugiam para aqui. Uma tia minha que morreu com uns 90 e tantos anos contava que a avó vinha de uma fazenda aqui perto, de Casa Grande. O trabalho era pesado e eles queriam se livrar. Tinha os capitães do mato, que iam atrás deles, e, se os apanhassem, batiam-lhes e voltavam com eles à fazenda de novo. Dormiam amarrados, trabalhavam amarrados..."

O quilombo era a única hipótese de liberdade. E hoje os tetranetos são quilombolas, moradores de quilombo, reconhecidos pelo governo federal. "Pelo menos temos a certeza de que ninguém invade o local, que ninguém vem perturbar nós, que este lugar é nosso", diz Nilson. "Isto foi de herança, de avô para pai, cade um tem os seus pedaços. Já não está cem por cento negro, porque aquele moço lá é moreno [mulato] e os filhos dele foram casando [fora]."

Antigamente só casavam entre si, agora não. Por exemplo, Nilson tem três filhos, e o que está em São Paulo "casou com uma mulher de lá loura". Só falta ela vir cá. "Tenho uma filha em Belo Horizonte casada com um negro, e outra filha casada com um moreno. Todos casaram fora."

Então, com a gente saindo, o quilombo vai acabar? "Por isso que estamos pensando em montar coisas aqui para o pessoal não sair. O Inhotim está ajudando a gente a construir uma estufa com plantas raras que eles vão trazer. Acho que a ideia é do Bernardo e da Roseni [responsável pelo sector Inclusão e Cidadania, de Inhotim]. Porque tem muita gente daqui que trabalha em Inhotim, sai todo o dia com o ónibus. Uns 10 saem daqui e depois o ónibus vai apanhando outros pelo caminho." Outra forma de fixar gente à terra. "Pelo menos os jovens já vão aprender a trabalhar com plantas e se vão acostumando a ficar."

A estufa já está a ser preparada ao fundo da ladeira. "Falta fazer a cobertura e as prateleiras. Por intermédio de Inhotim, as mulheres começaram a fazer aqui também colares e tem planos de fazer costuras [roupas]." Nilson é um entusiasta do parque. "É das melhores coisas que aconteceu. Antes, a história de Brumadinho estava esquecida. Mudou a nossa vida, porque só em termos de emprego são mais de 300 pessoas, só isso já é uma coisa incrível. E todo o mundo que trabalha lá só fala bem. Tenho uma prima que trabalha em casa de Bernardo já tem dez anos. Não é a toa que fica lá. Não existe ninguém que fale mal de Inhotim, tanto do Bernardo como da direcção."

Passa um vizinho estendendo a mão, Maurílio José da Silva, 72 anos. Vai descer por uma calçada, na direcção de onde há-de existir a estufa. É coisa nova em Sapé, a calçada. "Tem uns três anos. Foi pessoal de Inhotim que ajudou a gente a fazer."

À porta de uma casa, dois garotos e uma garota apanham sol, os três negros e esguios, os três com nomes importados: Emerson, Michael, Michelle. A mãe de Michelle trabalha em Inhotim.

Amanhã é a festa de São Benedito, a maior do ano em Sapé, comunidade inteiramente católica. O neto de Nilson vai ser o rei.

Tríptico e fim

Regresso a Inhotim para o percurso final.

Pó de mármore transportado lentamente através de uma passarela, obra da paulista Laura Vinci inspirada no poema A Máquina do Mundo do mineiro Carlos Drummond de Andrade ("E como eu palmilhasse vagamenteuma estrada de Minas, pedregosa...").

O pavilhão de Doug Aitken que ambiciona trazer ao de cima o som da terra através de um furo de 200 metros com microfones dentro: vento longínquo, algo que treme como antes de uma erupção, som que é quase só a memória de ter havido som.

A trilha pelo bosque que leva ao pavilhão de Matthew Barney, meteoro espelhado no meio da vegetação, absorvendo tudo em volta, e surpreendentemente transparente e luminoso no interior, onde um tractor verdadeiro arranca uma árvore falsa.

E finalmente a galeria de Miguel Rio Branco: as prostitutas do Pelourinho de São Salvador em fotografia, e depois em filme; a sala com as telas onde ondulam tubarões, projectados como se estivéssemos debaixo de água, convivendo com corpos e rostos ao fundo; e a sala do tríptico onde se vão sucedendo e conjugando centenas de imagens projectadas, com a paisagem recorrente de um deserto que é uma fronteira mortal.

As galerias já vão fechar. Estudantes de todo o Brasil desaguam no átrio de saída. E daqui a nada, os tetranetos de escravos, os filhos de imigrantes, moradores de Brumadinho e arredores, vão correr para os ónibus, até amanhã.

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