A luta pelo pensamento do design continuaA luta pelo pensamento do design continua

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Miguel Manso

O designer italiano Enzo Mari é um provocador. Os seus discursos inflamados, com tom de comício, são famosos: o design está moribundo e irrita-o que os seus colegas não tenham dado por issoO designer italiano Enzo Mari é um provocador. Os seus discursos inflamados, com tom de comício, são famosos: o design está moribundo e irrita-o que os seus colegas não tenham dado por isso.

Foi o dia do julgamento do design contemporâneo. Não é uma metáfora por a conferência do histórico designer italiano Enzo Mari ter acontecido numa das salas do antigo Tribunal da Boa-Hora e ele estar sentado na cadeira do juiz com as suas imponentes barbas e cabelos brancos em contraste com umas sobrancelhas muito negras. Mari, do alto dos seus mais de 70 anos, que a Experimenta Design trouxe para as Conferências de Lisboa, falou sem contemplações.

Com uma assistência muito nova à sua frente, que encheu a sala num sábado de manhã, o designer disse que se biologicamente os jovens têm a vida nas mãos, "do ponto de vista do conhecimento têm nas mãos merda". Mari usa facilmente adjectivos como "idiotas", "estúpidos", "ignorantes", "delinquentes". Gosta, especialmente, de fazer afirmações de modo "terrorista" quando estão presente colegas designers, disse numa entrevista a seguir à conferência. "Costumo dizer coisas muito duras."

"O que é um designer?", "Por que lhe põem uma etiqueta de designer na testa?" seriam perguntas recorrentes ao longo das duas horas que a sua intervenção durou e em que o moderador Hans Ulrich Obrist, um dos mais conhecidos críticos da actualidade, teve alguma dificuldade em pô-lo a falar sobre o tema: design do-it-yourself, ele que inventou nos anos 60 um conceito chamado "autoprojectação". "Todos os dias toda a gente faz operações de projecto. O projecto é um processo de pensamento infinito. Mais do que o objecto realizado, não é tão importante o resultado - mesmo em relação àqueles objectos que a sociedade diz que são bonitos ou engraçados -, porque o verdadeiro projecto está no pensamento. Luto pelo direito ao pensamento." Mas essa luta, gritou várias vezes, devia ser de toda a gente.

Umas das várias histórias que se contam sobre o designer é que levou um ano inteiro a pensar um cinzeiro (esta está no site do Design Museum, em Londres, e os próprios dizem que parece mais uma anedota). Lá estava sempre o desafio do cinzeiro, entre outros projectos, e finalmente surgiu um objecto único, elegante, muito elogiado pelos seus colegas. A verdade é que foi um desastre de vendas e que deixou como única herança dois maços de cigarros por dia para Mari.

"A cultura ocidental nasceu na Grécia. Essa cultura não é esta especulação mafiosa, isso é uma degradação. Eu sei que os artistas gregos tinham interlocutores, os do Renascimento também. Quem foram os interlocutores dos designers nos últimos 100 anos? Foram os gabinetes de publicidade das empresas. As multinacionais servem-se da qualidade do projecto como elemento para produzir mais dinheiro. Se for horrível, mas produzir dinheiro, é bom."

Enzo Mari começou a trabalhar em 1956, quando abriu um estúdio em Milão. No ano seguinte, fez o seu primeiro projecto para a Danese, um puzzle de madeira para crianças, chamado 16 Animais, com cobras, girafas e camelos entrelaçados e que no conjunto formam um rectângulo. Para a mesma empresa, é famoso também a sua jarra reversível em plástico, o Vaso Modelo 3087, com um cone central e que podia ser virada ao contrário (alguns críticos de design dizem que conseguiu pôr o público a olhar para o plástico de forma diferente). Mari disse na conferência que quando começou a trabalhar era muito ingénuo. "Éramos todos de esquerda e acreditávamos que o projecto ia mudar o mundo. A ilusão foi desaparecendo até finais dos anos 60. Os melhores projectos foram falhanços autênticos do ponto de vista de vendas."

Hoje, esses objectos estão nos museus, estão publicados em livros. "Eu ganhei a batalha. São produzidos 40, 50 anos depois. Eu não sei se sou bom, procurei sê-lo, que é uma coisa diferente." Enzo Mari quer que os objectos sejam justos e não contem mentiras. "Sou bom, porque estou acima do monte de lixo. Não fiz coisas muito complexas. São sempre coisas simples." Os seus mestres vêm da escultura clássica (Fídias), da pintura antiga (Piero della Francesca, Miguel Ângelo, Caravaggio), mas também da literatura (Flaubert) e da música (Bach). "Não é preciso copiá-los. Não é um neoclassicismo estúpido, porque essas sociedades morreram. Percebe-se o nível mais elevado da beleza. Sabem quantos críticos de arte moderna conhecem a arte antiga? Quase nenhum."

Foi por esta altura que o moderador, que tem um livro de entrevistas com Mari, tentou que o designer falasse da sua ligação ao mundo da arte nos anos 50 e 60 - "inspiraste gerações e muitos grupos te citaram como influência". Enzo Mari preferiu continuar com as suas provocações: falou de próteses (a primeira foi a bolsa e sublinhou que isso não era um elogio à indústria da moda) e como os arquitectos-vedeta, que acham que têm de inventar uma linguagem, são "idiotas, ignorantes". "Eu nunca tive ideias. O que faço? Fiz todos esses objectos como se fossem obras de arte, para que apontassem para coisas diferentes. Estou contente com a minha vida. Eu vivo no luxo, porque, apesar das coisas que digo, as pessoas respeitam-me e isso é o maior luxo."

Mais recentemente, Mari fez um projecto para a empresa japonesa Muji e redesenhou a cadeira Thonet, mas disse que "já fez tudo e que é tudo um grande tédio". Por que razão ainda lhe pedem uma cadeira? "Eu já fiz 25. Conheço mais de um milhão de cadeiras. Já vi tudo. Todos os anos são apresentadas dez mil cadeiras assinadas." Do que é que estamos a falar quando falamos de design?, perguntou. Se formos a Creta, ver a cerâmica no museu arqueológico da capital, podemos contar 300 chávenas. "Idiotas. O que é que ainda querem projectar? É só masturbação."

Um projecto perfeito devia durar mil anos. Mas, agora, são feitos para durar seis meses. Mari voltou a gritar e, indignado, deu vários murros na mesa do antigo tribunal. O designer estava ao ataque e isso não é mais uma imagem. "Vamos fazer uma guerra. Têm que aprender a usar bem a espingarda contra um alvo. Quais são as vossas armas? Alguns dos designers conseguem ser quase bons e os outros são delinquentes."

Obrist recentrou a palestra no tema e perguntou-lhe pelos exercícios de autoprojectação, uma das investigações de Mari nos anos 60, inspirada no movimento Arte Programada de que fez parte, que quis resgatar o utilizador do seu papel passivo. "A autoprojectação é uma das tentativas que fiz e falhei. Fali."

Mari explica o contexto político da autoprojectação, o Maio de 68. Por causa da idade reduzida da assistência, explica o que era o movimento estudantil. "Tinha já quase 40 anos. Fui o único projectista que fiz ocupações. Era comunista. Tive uma infância pobre que me fez querer dialogar com o mundo." Mas os seus amigos revolucionários queriam camas com pés de mármore e um candeeiro de vidro de Murano em cima. "Todos tinham mau gosto. Tive uma ideia: se puser as pessoas simples a fazer uma coisa para si, alguma coisa vão aprender. Comecei pelo martelo. Em todas as casas há um martelo e pregos. A cultura técnica necessária é a de um carpinteiro." As pessoas tinham que seguir uma série de instruções e fazer a sua mobília com as técnicas mais simples de carpintaria. "Os meus colegas que foram ver a exposição disseram que eu era fascista porque obrigava as pessoas a trabalhar." A autoprojectação durou três anos e Mari, que gosta mais de contar histórias de falhanços do que de sucessos, ainda conta o episódio de alguém que lhe pediu um dos seus modelos da autoprojectação "em estilo rústico" para uma casa na Áustria. "E depois descubro que me tomaram como modelo. Os artistas ainda vá que não vá, mas os designers..." Disse que está farto de ver exposições inspiradas na autoprojectação com coisas incómodas, sem sentido. "É o opróbrio do ensino que pretende ser técnico."

Mari comentou ainda a intervenção do seu jovem colega belga Thomas Lommée, que com o seu projecto OpenStructures na Internet explora a possibilidade de toda a gente fazer design para toda a gente, através de um modelo de construção modular. "É preciso ter cuidado com os que se aproximam mas não têm objectivos críticos, com aqueles que se focam apenas nos resultados."

Era a Thomas Lommée que voltaria ainda numa conversa com o P2 e com o designer português Filipe Alarcão, que trabalhou vários anos em Itália e que a nosso pedido aceitou estar presente na entrevista (Alarcão tem neste momento uma exposição no Mude - Museu do Design e da Moda, em Lisboa). "Eu prezo o que Thomas está a fazer, sinto o que disse ao Thomas, mas aquilo que ele quer fazer tem muito de ingénuo." Enzo Mari explicou que também já foi ingénuo como o jovem designer belga. "Eu tentei fazer esse tipo de projecto." Mas sublinhou que fez muito mais do que a autoprojectação e que não foi através dela que tentou explicar ao mundo o que era o design e a indústria. "Quando estás a construir um móvel, tens que ter a certeza de que as juntas estão bem feitas. Se vão comprar uma mesa, verifiquem se a perna está bem fixa. É um primeiro passo... Esse é o objectivo da autoprojectação." Um exercício para tentar sensibilizar as pessoas. "Eu trabalho para compreender, não para fazer. Isso é a coisa mais importante da minha vida. Toda a gente sabe o que é o design mas na realidade ninguém sabe." A autoprojectação aconteceu num momento em que havia muitas pessoas que pensavam como ele. "Agora não, há 20 anos de Berlusconi. Se não foi possível nessa altura..." E não, não é possível um renascimento da autoprojectação, responde, impaciente, a uma pergunta nossa.

Com a indústria, a dificuldade do design é fazer coisas que custam pouco, "mas que devem parecer coisas de luxo". Qual é o custo disto?, pergunta Enzo Mari a si próprio. "Para poder obter estes custos, precisa de operários ignorantes, porque a instrução custa, e pensar faz perder tempo. E o público também deve ser completamente ignorante para que o produto seja vendível." Há design de preço baixo porque se rouba no projecto, rouba-se no objecto (é sempre um pouco mais pequeno), "mas o verdadeiro roubo é o sangue das pessoas, quando os objectos são feitos na China, com um operário chinês que ganha meio euro ao dia".

Enzo Mari parte para o projecto com um nível de utopia de 100%. Quando explica aos empresários o que quer fazer, fala já só de 50%, porque não existem as condições para que a sociedade possa aceitar 100% de utopia. "Trabalhei com alguns empresários que não aceitavam esses 50% mas apenas 5%. Mas, às vezes, mesmo partindo dessa base, foi possível fazer um belo projecto. Em termos de competência técnica, eu sou muito combativo, muito determinado." E partindo de uma base de 5% é possível chegar aos 100% de utopia?, quis saber o designer Filipe Alarcão. "Não, é quase impossível. Desde que existe um mercado global, isso deixou de ser possível."

O melhor designer que Enzo Mari conhece é um velho camponês, da sua idade, que decide plantar um bosque de castanheiros. Ele sabe que esse castanheiro só vai dar castanhas 20 anos depois e que não vai comer essas castanhas.

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