Na cabeça das mulheres que abandonam os seus bebés

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Daniel Rocha

Podem ser adolescentes sem preparação ou mães sem dinheiro para cuidar de um filho. São mulheres alteradas, mas também são mulheres normais em circunstâncias extraordinárias

Nem consumo de estupefacientes ou álcool, nem cadastro de maus tratos ou abusos. Até ao momento em que abandonou o seu filho recém-nascido à porta de um prédio, em Vilar do Pinheiro, Vila do Conde, a história desta mulher chega a entediar de tão comum: nasce numa família de seis irmãos, frequenta a escola até ao 9.º ano de escolaridade, conhece um rapaz, apaixona-se, casa-se, tem três filhos - agora quatro.

Podíamos ser nós. Podia ser a nossa vizinha do lado. Ou, no caso, a empregada da lavandaria onde deixamos a roupa. Ela, 30 anos de idade, trabalha numa. O marido, com o 6.º ano de escolaridade, é motorista de longo curso. Casa comprada a crédito, prestações ao banco em dia, o quotidiano dos filhos - com sete anos e quatro anos de idade e o terceiro com 18 meses - organizado em função das deslocações de e para a escola ou a ama.

O parto desde quarto bebé - cuja tutela provisória foi ontem entregue a uma tia materna, com possibilidade de contacto com a mãe - desencadeou-se em casa, na sexta-feira da semana passada, à noite. No sábado de manhã, o bebé foi largado em Vilar do Pinheiro à porta de um prédio, numa zona que a mãe conhecia bem. Estava dentro de uma caixa de plástico, embrulhado num cobertor, o cordão umbilical preso com fio dental. A seu lado, um biberão e uma caixa de leite em pó a que tinha sido retirado o código de barras. Foi descoberto algumas horas depois, encaminhado para o hospital onde foi baptizado como Afonso. Enquanto isso, a mãe conta à irmã o que fizera e é esta que a acompanha a uma advogada que a aconselha a apresentar-se na PSP. Quando chega à esquadra de Matosinhos, já vai decidida a recuperar o recém-nascido.

Assim, à primeira pergunta - que mulheres são que estas titubeiam num amor que se convencionou como inato, infinito e incondicional? -, a resposta dos especialistas é: podíamos ser nós. Basta que uma série de factores se conjuguem para criar um quadro depressivo ou propício, por exemplo, a uma psicose puerperal. É uma perturbação rara, mas que pode mergulhar a mulher num delírio que a faz acreditar que o bebé não nasceu ou que foi trocado ou que está morto ou defeituoso e que, no limite, pode levá-la a matá-lo. "É um quadro psicótico, em que a mulher se desinsere da realidade e entra em total negação", diz a psicóloga Bárbara Figueiredo, autora de uma tese sobre depressões pós-parto, para especificar que tais psicoses são precipitadas pelas "extremamente severas alterações hormonais que se seguem ao parto".

Neste caso não se poderá falar de psicose puerperal. Porque a perturbação desta mulher, residente no concelho da Maia, ocorreu ainda durante a gravidez - que ela escondeu até ao fim. Da irmã, mãe de dois filhos, que assume agora a tutela provisória da criança. Do marido, que a profissão faz ausentar durante períodos largos. Das colegas de trabalho. Dos avós do bebé. "Ela continuou a trabalhar, dizia às pessoas que estava a ficar gorda, porque tinha muita vontade de comer", revela a sua advogada, Alexandra Sá, admitindo que a sua cliente não tivesse recuperado de uma depressão pós-parto que a acompanharia desde o nascimento do último filho. "Já na altura a família a pressionara por ser o terceiro, perguntando-lhe se não seriam já filhos suficientes..."

Acresce que o pai desta mulher - que, ainda segundo a advogada, era a sua figura tutelar - morreu repentinamente há cinco meses. "Era ele que ia buscar os miúdos à escola ou à ama e a sua morte foi um acontecimento traumático, até pelo carácter repentino. Aliás, ela estava de luto quando se apercebeu que estava grávida e creio que isso desencadeou uma espiral de sentimentos que a fizeram perder o discernimento."

Pode um luto determinar uma atitude destas? "A morte é sempre relevante no decurso de uma gravidez, mas por si só não funciona como explicação para o que aconteceu", ensaia Bárbara Figueiredo, para quem "o mais provável é que, do ponto de vista psicológico, ela própria não tenha aceitado aquela gravidez". No limite, "algumas mulheres chegam a acreditar que não estão grávidas, apesar das evidências todas, e, portanto, quando o bebé nasce, sentem-no como uma intromissão".

Sobre os bebés abandonados na via pública - como naquele outro caso, há duas semanas, em que o bebé foi deixado dentro de um saco plástico e envolvo num roupão ao pé do Cemitério de Prado Repouso, no Porto - não há estatísticas oficiais. Mas há números que nos podem ajudar a perceber a dimensão do fenómeno. Por exemplo, no Hospital Amadora-Sintra, onde se realizam em média quatro mil partos por ano, houve, no ano passado, 14 casos de abandono e mais três de bebés dados para adopção. "Em 2009, tivemos 16 casos de abandono de recém-nascidos e, este ano, vamos em 12", conta Paulo Barbosa, porta-voz daquele hospital.

À Polícia Judiciária chegam os casos mais graves. Aqueles em que a mãe vai ao ponto de matar o seu recém-nascido. Em 2010, foram sete os bebés mortos pelas mães durante ou logo após o parto. No ano anterior tinham sido seis, aponta a PJ, que contabiliza 31 recém-nascidos mortos pelas mães nos últimos cinco anos. Quando se procura desenhar um perfil destas mulheres, os traços apontam nas direcções mais díspares: podem ser adolescentes impreparadas, mulheres a braços com um bebé fruto de uma relação clandestina ou adúltera, ou mães irrepreensíveis de outras crianças; quase todas sem quaisquer antecedentes criminais. Denominador comum: a existência de perturbação mental, induzida ou agudizada pelo parto.

Quando um destes casos é notícia, o lado mais monstruoso sobressai. "Todos nos identificamos rapidamente com o bebé, que supomos ser o lado mais frágil, mas também porque temos dificuldade em imaginar o sentimento de mal-estar que se passa na cabeça de uma mãe para assassinar ou abandonar o seu filho", diz Bárbara Figueiredo. São casos que questionam o mito do "instinto maternal", o tal do amor "inato, infinito e incondicional", acrescenta Fátima Mota, assessora da área social da Fundação Bissaya Barreto.

Tribunais benevolentes

Neste caso concreto, a pergunta que importa é: pode uma mulher que abandonou o seu bebé ser uma boa mãe para ele? "Tanto pode que ela fez, num ou dois dias, aquilo que a maior parte das mães demora nove meses a fazer, ou seja, construiu uma relação com aquele bebé e é isso que faz com que, contra tudo o que tinha feito até aí, o queira recuperar. Porque até então, e tendo ela negado a gravidez, aquele bebé não era uma realidade. E terá sido por isso que, quando ele nasceu, a primeira coisa em que pensou foi em fazê-lo desaparecer", responde Bárbara Figueiredo. Já Fernando Almeida, presidente da Sociedade Portuguesa de Psiquiatria e Psicologia da Justiça, aproveita para separar as águas. "Um caso de uma mãe que fez uma depressão grave, mas que reúne condições que a tornam capaz de cuidar do bebé, uma vez suprimida essa depressão, é diferente de alguém, por exemplo, com historial de toxicodependência ou alcoolismo."

Para Bárbara Figueiredo, o arrependimento - aliado ao facto de o bebé ter sido abandonado num local frequentado, com leite e protegido contra uma eventual hipotermia - deverá pesar a seu favor perante o tribunal. É perante este que responderá pelo crime de abandono, o qual, nos termos do artigo 138.º do Código Penal, é punível com pena de prisão de dois a cinco anos. "Mesmo considerando que o abandono, ou o infanticídio ocorreu sob a influência perturbadora do parto, esse facto não exclui a responsabilidade penal", explica o procurador Rui do Carmo.

Na prática, e se olharmos para a jurisprudência portuguesa em casos bem mais graves do que este, em que ocorre a morte, por vezes violenta, do bebé, a regra é os tribunais aplicarem penas suspensas. Recuemos a 2008. Em Fevereiro desse ano, Adelaide Silva, uma escriturária de 37 anos, residente em Vila Nova de Gaia, sufocou o bebé acabado de nascer na casa de banho de sua casa, tapando-lhe o nariz e a boca até este deixar de respirar. De seguida, meteu-o num saco de plástico que guardou no congelador durante seis dias. Um ano depois, o tribunal condenou-a a quatro anos de prisão com pena suspensa, na condição de ter acompanhamento psiquiátrico e do Instituto de Reinserção Social.

"Os tribunais têm sido bastante benevolentes, porque entendem que os comportamentos das mulheres estão condicionados por algo que é delas, mas que não se inscreve numa situação normal", congratula-se Alexandra Sá. O director da Faculdade de Psicologia da Universidade Lusófona, Carlos Poiares, aplaude a tradicional benevolência dos tribunais portugueses. "Na maioria dos casos, abandonar um filho, fora de um quadro patológico severo, é uma auto-amputação e não se passa impunemente pela mesma"

Para Bárbara Figueiredo, estas mulheres precisam de ajuda mais do que de castigo. "Sem dúvida que na história da relação desta mulher com o filho vai estar presente o facto de ela o ter abandonado. Isso precisa de ser compreendido e ela precisa de ser desculpabilizada para perceber melhor o que se passou", sustenta, para considerar que a legislação portuguesa é "algo inconsistente": considera a "influência perturbadora do parto", mas, apesar disso, "sugere pena de prisão, em vez de tratamento".

Legislações variam

Em países como o Reino Unido, Alemanha e Nova Zelândia a legislação estabelece à partida que todas as mães que matam filhos sofrem de uma perturbação mental grave. Ao contrário, nos Estados Unidos "não é legalmente reconhecido um estatuto especial à mulher filicida, sendo o acto considerado uma forma de homicídio como outra qualquer", como escreve Bárbara Figueiredo, no artigo científico Filicídio: incidência e factores associados, que assinou em 2006, juntamente com Ana Cristina Freire, e onde se conclui: "A reacção da comunidade perante o infanticídio mudou como uma montanha-russa ao longo dos últimos 450 anos; começou por ser indulgente, depois severa e novamente indulgente. A tendência actual indica que a apreciação está a mudar na direcção da severidade."

Em Portugal, reacende-se de quando em vez a discussão em torno da possibilidade de vir a ser recuperada a "roda dos expostos", que funcionava nos conventos e onde era usual mulheres depositarem os filhos. Itália fê-lo. O Hospital Policlínico Casilino, em Roma, tem à entrada uma cabina munida de sensores térmicos e de peso que fazem soar o alarme sempre que ali é deixado um bebé. Fátima Mota preferia que por cá fossem desenvolvidas "medidas de prevenção primária". Ao mesmo tempo, "haverá que qualificar e olhar de forma mais positiva os pais que dão o seu consentimento para a adopção de filhos, que têm consciência de não querer ou não poder cuidar".

Carlos Poiares defende que seria melhor "criar consultas pós-natal, nas quais, sem risco de qualquer sanção penal, as mães possam expor o seu caso e serem apoiadas e acompanhadas psicossocialmente".

Porque muitas das mulheres que abandonam os bebés fazem-no por se sentirem encurraladas ou em situação de "cidadania deficitária", Carlos Poiares desvia o dedo acusador das mães: "Não basta que um governo, uma autarquia, um departamento ou uma ONG subsidiem o leite por três ou seis meses, ou fraldas. É necessário reprogramar os sujeitos em risco - o que não passa apenas por subsídios, mas por trabalhar os e com os sujeitos."

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