Ajuda já chega ao interior da Somália mas a fome ainda mata

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O desespero de uma mulher que fugiu da fome e procurou refúgio em Mogadíscio FEISAL OMAR/REUTERS

Cruz Vermelha tem em marcha operação de socorro, depois de negociações com a al-Shabab. Mas guerra não permite optimismos

Esta semana chegaram boas notícias: a Cruz Vermelha começou a distribuir ajuda alimentar a um milhão de famílias afectadas pela fome que têm estado inacessíveis, por viverem em regiões da Somália sob controlo dos islamistas da al-Shabab. As Nações Unidas calculam em 750 mil o número de pessoas em perigo de vida.

Camiões com alimentos saídos nos últimos dias das zonas costeiras terão começado a chegar ao interior, no início de uma operação que a Cruz Vermelha Internacional classificou como a maior do género que alguma vez montou. O envio da ajuda só foi possível, segundo a BBC, depois de complexas negociações com al-Shabab, organização ligada à Al-Qaeda, que há dois anos baniu organizações humanitárias da Somália.

Para além da operação de ajuda alimentar de emergência, que deve prolongar-se por três meses, a Cruz Vermelha, que tem como crédito uma presença de vinte anos no país, prepara-se para fornecer perto de um quarto de milhão de sementes a agricultores. A ideia é que, com a aproximação das chuvas, a maior seca na região em 60 anos possa em breve ser coisa do passado.

"Se tudo correr bem, esperamos que estes agricultores possam ter algumas colheitas até ao fim do ano", disse à estação britânica Geoff Loane, um porta-voz da organização.

Apesar de já antes da operação da Cruz Vermelha a ajuda ter começado a chegar a uma parte das vítimas da seca que atinge o Corno de África, principalmente a Somália, a situação continua a ser "extremamente crítica". Um diagnóstico do gabinete de coordenação de Assuntos Humanitários das Nações Unidas (OCHA), divulgado há cerca de uma semana, confirmava a particular gravidade da situação na Somália: 750 mil pessoas em perigo de vida e níveis alarmantes de mortalidade infantil. Isto apesar de, nas últimas semanas, terem já começado a distribuição de alimentos a 1,85 milhões de pessoas - quase metade dos cerca de quatro milhões que estão em situação de necessidade no país.

"Centenas de milhares de somalis continuam longe das suas casas, à procura de comida e de segurança", alertou a Cruz Vermelha, antes de ter anunciado a operação nas zonas controladas pela al-Shabab, a meio da semana.

O ponto de situação feito pela OCHA inclui outro dado muito preocupante: a taxa de mortalidade infantil na Somália está calculada em 15,4 por dia em cada dez mil. Nos campos de refugiados somalis na Etiópia e no Quénia registou-se, porém, um progresso devido à resposta dos governos e agências humanitárias: em Julho morriam diariamente quatro a cinco crianças em cada dez mil, agora a média é de 1,1.

456 mil em Dadaad

Um responsável da UNICEF, organização das Nações Unidas para a infância, calcula que apenas sete mil de 160 mil crianças em situação de malnutrição aguda estejam a ser alimentadas na Somália. Um relatório da unidade de análise de segurança alimentar da OCHA admitia há dias que a situação se deteriorasse no Sul e que a declaração de fome feita pelas Nações Unidas para seis regiões se pudesse alargar a outras zonas.

O ACNUR (Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados) está muito preocupado com a situação na zona da cidade de Dholey, ponto de passagem de milhares de pessoas que procuram chegar a Dadaad, no Quénia, onde se situam os maiores campos de refugiados do mundo. Concebidos para acolher 90 mil pessoas, são a casa de 456 mil, maioritariamente somalis, empurrados por uma guerra que se prolonga há 20 anos e depois pelos efeitos da seca.

O fluxo de refugiados somalis em direcção aos países vizinhos, para onde se deslocaram nos últimos meses mais de 140 mil, não pára. As Nações Unidas calculam que o número de entradas no Quénia é da ordem das 1100 pessoas por dia e que no caso da Etiópia oscila entre as 200 e as 300. Este último país tornou-se também nas últimas semanas porto de abrigo para sudaneses que fogem da violência.

As chamadas de atenção sobre o que se passa naquela região africana - além da Somália, também populações do Quénia, da Etiópia e do Djibuti estão a ser afectadas pela fome, num total de 13,3 milhões de pessoas - têm-se repetido mas sem grandes consequências práticas. Dezenas de milhares de pessoas morreram de fome na região, nos últimos meses. A meio da semana, o Papa Bento XVI renovou o seu apelo à "ajuda concreta".

Conduta criminosa

No caso da Somália, o quadro de insegurança e violência condiciona o auxílio. "O regresso dos combates entre grupos armados rivais agrava a situação humanitária já de si muito grave", declarou Adrian Edwards, porta-voz do ACNUR, citado pela AFP na terça-feira, dia em que mais de sete dezenas de pessoas foram mortas num atentado suicida em Mogadíscio, a capital da Somália.

A ameaça de "numerosos" outros atentados, que se seguiu, é tudo menos tranquilizadora. Consciente do efeito que pode ter, o primeiro-ministro somali, Abdiweli Mohamed Ali, apelou aos membros das agências humanitárias para que não deixem o país. Ontem, o alto-comissário do ACNUR, António Guterres, respondeu-lhe, garantindo que o trabalho vai continuar e apelando a todas as partes na Somália a deixarem as organizações humanitárias ter acesso a todas as regiões do país.

Matt Bryden, coordenador de um grupo das Nações Unidas que acompanha a situação na Somália e a Eritreia, não tem dúvidas de que se a situação de fome na Somália é explicada pela ausência de chuva, deve-se também, em grande medida, à actuação humana.

"É tempo de o Tribunal Penal Internacional se envolver na Somália, ou de ser criado um tribunal especial internacional para desmantelar a cultura de morte e impunidade", escreveu num relatório para o Enough, um projecto do Center for American Progress destinado a prevenir genocídios e crimes contra a humanidade

"A fome na Somália é menos um sintoma do conflito ou do clima do que da insensível e criminosa conduta humana - incluindo crimes contra a humanidade que requerem consequências ancoradas na justiça internacional."

Bryden não poupa o governo federal de transição, por saque de ajuda destinada à população faminta, mas é particularmente crítico do modo como os islamistas têm lidado com a situação. "Em última instância, é a ideologia retorcida da al-Shabab, os seus métodos repressivos, a indiferença para com o sofrimento do seu próprio povo que estão por trás da catástrofe."

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