O filme perdido de "Sangue do meu Sangue"

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Rita Blanco na rodagem de "Sangue do Meu Sangue" numa casa do Bairro do Padre Cruz, Lisboa

Por trás da longa-metragem de João Canijo, estreada ontem, está a promessa não-concretizada de uma obra paralela, um fantasma que assombra as várias cabeças do filme. Pedro Borges, produtor, revela as dificuldades que impediram a sua concretização. Francisco Valente

Enquanto corpo vivo, "Sangue do meu Sangue" é um palco para a expressão das várias histórias de um lar, no Bairro do Padre Cruz, em Lisboa. É um trabalho de encenação com os actores - Rita Blanco, Anabela Moreira, Cleia Almeida, Marcello Urgeghe, Beatriz Batarda, Nuno Lopes, Rafael Morais, Francisco Tavares ou Teresa Madruga - que oferece uma possibilidade de ficção poucas vezes vista no cinema ou na televisão portugueses. Pares de personagens, entre casais de mãe e filha, namorados e amantes, tias e sobrinhos, juntos na mesma casa, discutem e vivem os seus enredos em paralelo, e às vezes nos mesmos enquadramentos, para espanto dos sentidos do espectador. Os caminhos cruzados e portas abertas da narrativa apontam a força viva de um filme para várias e simultâneas direcções. "Sangue do meu Sangue" é um filme único por permanecer em ebulição. Mas o que funciona como um dos seus nervos de acção teria sido, inicialmente, o mote para uma segunda longa-metragem: uma obra paralela que acompanhasse os tempos da acção das personagens fora-de-campo nos planos da versão agora estreada. Como o realizador explicou, numa entrevista a este jornal, seriam dois filmes diferentes: "cada um mostraria uma coisa e esconderia outra, os dois juntos mostravam a totalidade, que ainda era uma outra coisa." A sua concretização teria sido o culminar do método de Canijo, algo vindo de um longo trabalho de criação mútua com os seus actores.

As ambições e a passividade

Pedro Borges, produtor, relata a estratégia que iria ao encontro das ambições do realizador. "O projecto consistia em rodar dois filmes num só, isso implicava mais tempo de rodagem e dinheiro. Além dos financiamentos tradicionais do ICA [Instituto do Cinema e do Audiovisual] e dos correspondentes 20 por cento da RTP, havia a intenção de recorrer aos investimentos do FICA [Fundo de Investimento para o Cinema e Audiovisual]", diz ao Ípsilon. "O orçamento inicial, neste conceito, era de 1 milhão e 300 mil euros. Sabíamos que tínhamos 750 mil do ICA, que podíamos nós investir uma parte e também conseguir outras coisas." Mas, segundo o produtor, "era fundamental ter um investimento do FICA e outro mais substancial da RTP para além do que era feito ao abrigo do protocolo, porque a RTP tinha vindo, recentemente, a fazer esse tipo de acordos de co-produção." Durante a montagem de "Sangue do meu Sangue", Canijo respondeu à dinâmica de possibilidades do seu trabalho e montou uma versão de 190 minutos, outra de 140 (ambas estreadas agora em sala), assim como uma versão de série de TV, pois "o filme passou a ter a possibilidade de uma estrutura em três partes", afirma Borges.

Contudo, as ambições criativas esbarraram na passividade das instituições. Exceptuando o apoio particular da Câmara Municipal de Lisboa, devido à presença de um bairro municipal da cidade, o produtor relata que "a certa altura, percebemos que não podíamos correr um risco tão grande sem respostas. A da RTP arrastou-se, e quanto ao FICA, nem José António Pinto Ribeiro, nem Gabriela Canavilhas [ex-Ministros da Cultura nos mandatos de José Sócrates], nem, aparentemente, Francisco José Viegas [actual Secretário de Estado da Cultura] conseguem resolver o seu imbróglio." A produtora do filme espera há 2 anos pela concretização de um apoio. "Neste momento, o filme tem um buraco de 150 mil euros", diz Borges. "Nem do FICA, nem da RTP, para a produção da série, desistiremos, porque o FICA não foi oficialmente encerrado e a RTP nunca nos respondeu a dizer que não estava interessada." As filmagens avançaram sem se concretizar, contudo, a realização do segundo filme. Para o produtor, era todo o projecto que estava em causa. "Nos termos das 7 semanas de rodagem e das pessoas envolvidas, foi tudo resolvido. E quando se olha para o filme, percebe-se que foi feito o que devia ter sido feito." O contrário seria sabotar a progressão criativa de um autor em afirmação. "O essencial estava em correr riscos controlados: o João Canijo estava numa fase do seu trabalho que tinha levar até ao fim com as condições mínimas", diz-nos Borges.

Na esquizofrenia do apoio cultural em Portugal, as frustrações que caem sobre os profissionais dificultam a sobrevivência e divulgação digna do seu trabalho. Para Borges, "um realizador tem um projecto desta dimensão e actores com notoriedade, mas sentamo-nos com a televisão de serviço público e temos uma parede de indiferença." Do mesmo modo, "é frustrante ir ter com responsáveis do FICA e ter um nível de conversa absolutamente aterrador. As pessoas não dão valor ao que é feito e vai durar muitos anos." A própria incerteza em que o cinema português vive pelas indecisões de altas entidades não favorece o interesse de outros pares. "A Ministra Canavilhas levou 17 meses a elaborar a Lei do Cinema, e quando o Governo apresentou a demissão, o projecto de lei estava pronto há 4 meses. Até lá, não foi capaz de o levar a Conselho de Ministros", afirma Borges. Um vazio legal que não facilita o interesse de privados na criação da cultura portuguesa. "Em Portugal, a lei do mecenato não funcionou e as grandes empresas não têm qualquer relação com o apoio à cultura." O produtor evoca um exemplo recente, comparando-o a outro de um parceiro da língua portuguesa. "O João Canijo está a desenvolver o projecto de um documentário para o qual pedimos centenas de litros de gasolina. Para a Galp, isso é uma coisa inexistente, e mesmo assim, a resposta é "não"." Por outro lado, "a brasileira Petrobrás investe todos os anos no cinema, basta ver um filme brasileiro ou ir a um festival." Um exemplo de sucesso na valorização da produção nacional que desfaz os preconceitos existentes. "Toda a cultura foi subsidiada durante séculos e é por isso que existe", afirma o produtor. "Não é na altura da crise que a cultura deve ser a primeira a ser sacrificada, é o contrário." E na sua opinião, "num tempo de desânimo e frustração, é o que dá orgulho aos portugueses e o que vai ficar que devia ser mais apoiado."

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