Kurt Vile, cowboy alienado

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Jeans rasgados, botas, sempre a enrolar cigarros: Kurt Vile parece ter saído de uma banda country dos anos 70 SHAWN BLACKBILL

Kurt Vile não é daqui nem de agora. Depois de "Smoke Ring For My Halo", lançado no início do ano, acaba de editar o EP "So Outta Reach". Dois objectos que fazem dele uma das personagens de 2011. Apanhámo-lo em Paredes de Coura - mas não muito acordado. João Bonifácio

A coisa passou-se assim: desde que saiu "Smoke Ring For My Halo", o terceiro e mais recente LP de Kurt Vile, que andámos a tentar entrevistá-lo. Houve horas marcadas para chamadas telefónicas que ele nunca atendeu. Da editora diziam: "Ele não gosta de acordar cedo, vamos marcar para mais tarde", e nada. Umas boas semanas assim até chegarmos à conclusão fatal: ou o homem está morto ou o karma não quer.

Mas então veio a notícia de que Vile, descrito como o maior dorminhoco do mundo ocidental, estaria no festival Paredes de Coura e parecia que o karma queria. Por isso, quando à hora da entrevista demos por nós perdidos no meio da serra, houve muito palavrão a sair do nosso automóvel: o karma não queria.

Um par de horas (e um final em rali) depois, entrámos num camarim abafado para dar com Kurt Vile sentado de cabeça caída num estado de entorpecimento assinalável. Depois de meses de perseguição tínhamos finalmente a entrevista procurada, havia um disco para ser discutido, um novo EP, "So Outta Reach", na altura em processo de parto e que chegou às lojas há um par de semanas. Parecia que o karma tinha querido, mas não muito.

Kurt Vile é lento e tem o tom de voz de quem acabou de ingerir dois comprimidos de Oxycontin. Na realidade, o homem que vemos é assustadoramente próximo do que imaginamos ao ouvir "Smoke Ring For My Halo", um disco de folk assombrada, em que dedilhados meticulosos embalam melodias lânguidas, enquanto uma nevóa de ópio encobre as guitarras.

Herdeiro das atmosferas dos Rain Parade e das melodias mais tristes de Gram Parsons, "Smoke Ring For My Halo" tem algo de encantado, uma espécie de tristeza sem agressão, que embala e conforta - e transformou Vile num nome obrigatório em 2011.

Ele tenta dar a ideia de que o seu êxito é coisa do acaso, mas não finge humildade. Está orgulhoso do que fez, ainda que esse orgulho não lhe ponha um sorriso na cada (ou o faça parecer mais acordado): "Sabes, eu editei muita coisa em pouco tempo [três discos a solo desde 2008], mas isso não seria possível se não tivesse composto muita coisa para o baú antes de começar a gravar. E ainda vou gravar coisas mais antigas".

Isto é uma forma de Vile dizer que está sempre a compor (pelo menos quando não está a dormir). Exemplifique-se com "Baby"s arms", o tema que abre o disco por entre dedilhados, pandeiretas e muito fumo: é uma canção perfeita, a mais ouvida deste disco, a que se põe quando se quer converter alguém a Vile. Um tipo normal afiançaria que "Baby"s arms" tinha sido composto de propósito para abrir o álbum, para unir todo um conceito, etc. Vile é um pouco mais terra-a-terra: "Para ser sincero, essa canção existia mesmo antes de assinar pela Matador".

Vile já fez dois discos pela Matador, o que significa que tinha deixado a canção fora do anterior "Childish Prodigy". "São só canções. Não é preciso um grande conceito. Encaixam aqui, não encaixam ali. Estão prontas ou não estão prontas. Não me sento a pensar: esta canção vai ser maravilhosa, tenho mesmo de a acabar para este disco. Ela se quiser ser acabada faz por isso". A maior parte das canções do disco já tinha três anos, dIz Vile, acrescentando ter andado "a trabalhar nelas de forma irregular". "Mais para o fim escrevi novas canções". Arriscamos: para ter material no mesmo registo? "Não, porque me apeteceu".

Pode chamar-se muita coisa a Vile, mas certamente não se pode chamar-lhe exagerado. Se se pergunta se há um tema no disco (raparigas, estar irritado com o mundo, coisas assim), ele encolhe os ombros, dá uma passa, pergunta se queremos uma cerveja (não, obrigado), um suminho (não, tudo ok), fruta (chega, pára com isso) e depois, muito a custo, como se só falasse por obrigação contratual, lá diz que "é um disco introvertido e pessoal", mas que não sabe bem sobre o quê, talvez "sobre coisas que não se podem explicar de forma clara sem uma melodia, porque as palavras não são suficientes e às vezes percebe-se o que um tipo está a dizer só pela melodia".

O passado não acaba

Vile é sobretudo um alienado que quer estar sossegado com a sua guitarra, aparentemente a única coisa que o preocupa desde que nasceu. Bem, isto é injusto, porque "antes da guitarra houve o trompete e depois o banjo aos nove anos". Sejamos honestos: a guitarra só apareceu na vida de Vile "aos 14". E depois ele "não quis outra coisa".

Parece saído de uma banda country dos anos 70: jeans rasgados, botas, t-shirt branca, sempre a enrolar cigarros. É visível que o prazer dele é estar com os seus "mates", fazer "umas jams, you know", ou estar sozinho com "as coisas estranhas" que acontecem na sua cabeça. A guitarra "põe o mundo à distância", diz ele, e bate certo com o que vemos: ele não é daqui, não é de hoje, não é desta confusão. Ele ouve "folk, blues, gospel" porque "a vantagem do passado é que não acaba". "Podemos olhar para o Neil Young como exemplo, para o Dylan. Podemos ir ouvir discos dos Fleetwood Mac ou dos Ramones. Podemos passar uma tarde a ouvir os Velvet ou os Swell Maps". Mas o seu grande amor é Charlie Patton. "Desde muito cedo que o ouço com atenção. Foi ele que me ensinou que a personalidade toda de uma canção ou de um estilo de tocar estava nos erros", diz com, podíamos jurar, verdadeiro entusiasmo.

Num pequeno momento de arroubo, cospe na mão que o alimenta quando diz que "os hipsters que lêem a Pitchfork não sabem quem é o Charlie Patton". Mas, redime-se, "muitos fãs mais novos irão à procura de saber quem ele", o que o deixa "contente": "É sempre assim que os antigos são redescobertos. E enquanto um miúdo descobrir o Charlie Patton tudo estará bem no mundo das guitarras".

Um lado psicadélico

Há uma canção em que Vile canta que quer trabalhar mas também quer passar o dia sem fazer nada - o que é muito country dos anos 70 - e a frase parece replicar a sua escassa biografia. Nascido em Filadélfia, Vile nunca se importou muito com a escola. Quando a largou não ficou preocupado com o futuro: "Sempre achei que era suficientemente esperto para me safar". Teve uma série de empregos, um dos quais, aparentemente, como condutor de camiões. Nunca esteve muito interessado em nada do que fez: "Eram só formas de ganhar dinheiro para poder fazer música".

Quando se fala da música propriamente dita, ele até parece um rapaz que passa os dias acordado. Inclusive é capaz de dizer como compõe: "Primeiro vem sempre a guitarra, percebes? Estás ali a brincar e surge uma sequência de acordes, um dedilhado. E não consegues largar a guitarra até aquilo funcionar. Só depois vêm a melodia e as palavras. É na guitarra que começa tudo".

Embalado, perde algum tempo a descrever o disco, coisa que no início da conversa parecia impossível. Vile diz que "há ali um lado psicadélico", o que é acertado, e admite ter querido "qualquer coisa que descrentrasse das melodias". "Há muitos efeitos que tornam o som sujo. Não me apetecia ter um som muito limpo, muito claro porque gosto quando as melodias saem de uma névoa", continua. Isto é o universo dele: falar de dedos nas seis cordas, de afinações, de bluesmen antigos, de singles country obscuros, dos amigos dos Deerhunter e por aí fora.

Saímos dali com ele a perguntar "Não queres mesmo beber nada?" e a pensar que também há algo de psicadélico e descentrado em Kurt Vile. Mas nunca ninguém disse que ser certinho era uma qualidade.

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