Estocolmo no café ou no manicómio
O quarto texto do poeta (talvez já possamos acrescentar: e dramaturgo) Daniel Jonas para o Teatro Bruto é mais um encontro no quarto escuro. Chama-se "Estocolmo", mas não estamos na capital sueca: fomos raptados e estamos em nenhures. Inês Nadais
O homem que Elsa (Rute Pimenta) acredita "do fundo do coração" ser um estranho (Pedro Mendonça) fuma cigarros como se estivesse ali desde sempre, mas ali é logo uma incógnita (não estamos certamente em Estocolmo, como o título da peça sugere, e isto que começa por ser um café onde ela quer pedir um chá não está longe de poder ser um manicómio em hora de visita, ou um lugar incerto dentro de uma cabeça doente), e sempre é palavra que nunca existe quando se perdeu a memória. O quarto texto de Daniel Jonas a ir parar às mãos do Teatro Bruto (depois de "Nenhures", "Reféns" e "Still Frank") podia aliás ter o mesmo título que dois dos anteriores - o único sítio onde podemos ter absoluta certeza de estar é nenhures, diante de uma mulher e de um homem que o tempo tornou reféns um do outro (e para sempre, embora esta seja a tal palavra proibida).
"Estocolmo", que o Teatro Bruto estreou ontem no Teatro Carlos Alberto, Porto, é então um lugar mental, imaginado a partir da "síndrome homónima que diz respeito à perversa simpatia que se instala numa vítima de sequestro perante o seu raptor", explica o autor da peça, o poeta (talvez já pudéssemos acrescentar: e dramaturgo) Daniel Jonas, em texto incluído no programa do espectáculo. Jonas escreveu "Estocolmo" como poderia ter escrito "Lima" (que é "o topónimo sindromático inverso, isto é, o da simpatia do sequestrador pela sua presa"), porque o sítio onde isto se passa, como já percebemos, é relativo. Tal como é sempre "relativa" a culpa dentro de um casal, e a posição (dominante, dominada) que cada um ocupa, sublinha Ana Luena, a encenadora do espectáculo: "As pessoas estão em constante transformação e as relações também. Vejo este texto como estilhaços de uma relação em que as coisas estão sempre a mudar, embora a dependência se mantenha. O rapto aqui é metafórico: é um rapto emocional".
Um rapto, portanto - falta sabermos quem é o raptor e quem é o refém, mas essa é a viagem de "Estocolmo". Elsa parece refém - da encenação que ela própria construiu, da memória que não tem do marido que agora está ali à frente ainda que ela acredite "do fundo do coração" que o homem com quem marcou encontro no café, ou no manicómio em hora de visita, é um estranho. Mas o verdadeiro refém é esse homem, Onírio, obrigado a ser "sempre o que ela quer que ele seja", a cumprir as marcações que ela definiu e o texto que ela escreveu (as peças de Daniel Jonas para o Bruto são sempre este teatro dentro do teatro) para cada encontro no café, para cada hora de visita. "A Elsa monta a cena. Já sabe que ele vai retomar o diálogo", continua Luena.
E então recomeça tudo:
- Conte-me a sua história, gostaria de a ouvir.
- Não tenho história.
- Não tem passado?
- Sim, mas sem futuro.
- O presente, então.
- É envenenado.
Ao longo de uma hora, o presente envenenado de Onírio é este jogo interminável, que imaginamos repetir-se diariamente, talvez há milhares de anos, na expectativa de "que o vento mude, [de] que as noites aqueçam, [de] que tudo se torne mais claro". Na cabeça de Elsa, porque ele ainda sabe de que terra é (é de Estocolmo, e ela é de Lima): "Estive casado com uma mulher, quer dizer ainda estou mas é como se não estivesse. Ela não sabe, ela nem disso sabe (...). É como se me tivesse deixado: esqueceu-me e eu vivo nesse esquecimento (...). É duro amar um raptor".
Nenhum lugar, outro tempo
É aqui, algures (ou melhor: nenhures) entre Lima e Estocolmo, que o Teatro Bruto encerra o ciclo dedicado à temática do monstro e da monstruosidade - um ciclo iniciado com o mesmo Daniel Jonas ("Reféns"), em 2009, e que incluiu ainda, em 2010, "Cratera, as crianças com segredos", de valter hugo mãe, e "Still Frank", onde o Teatro Bruto trabalhou pela primeira vez com Peixe, o guitarrista (ex-Ornatos Violeta) que faz a banda sonora da nova peça. "Propusemos ao Daniel Jonas que desta vez se focasse no modo como uma relação entre duas pessoas se pode tornar um monstro", esclarece Ana Luena. Como sempre, a versão inicial do texto foi testada na sala de ensaios e alterada em função das intuições cénicas do Teatro Bruto. Não foi, nunca é, "um trabalho fácil": "Encenar os textos do Daniel Jonas é muito difícil, mas também é muito desafiador. Sempre que chega um texto, pergunto: e agora? Mas as ideias que ele aborda são muito próximas das ideias que me interessam como criadora - e as personagens são mais veículos das questões filosóficas e discursivas que estão em causa do que propriamente protagonistas de acontecimentos, o que torna os textos muito ricos e, ao mesmo tempo, dá a sensação de que tudo o que ali está é de outro tempo. Não é a nossa língua que estas personagens falam. Isso atrai-nos imenso, e eu acho que permite cena", diz a encenadora de "Estocolmo".No limite, a relação do Teatro Bruto com Daniel Jonas também é um bocado como a relação que vemos encenada em "Estocolmo": "Também nós deixamos de saber quem é raptor e quem é o refém. Somos reféns do texto do Daniel Jonas, mas o Daniel Jonas também é refém da nossa encenação".
Ver agenda de espectáculos pág. 34.