Os objectos de Brízio estão vivos

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Fernando Brízio Daniel Rocha

No mundo de Fernando Brízio, os objectos não se limitam a estar ali, à nossa volta, parados, silenciosos.

Eles mexem-se discretamente, mudam, transformam-se, provocam-nos.

E, às vezes, se não estão eles próprios em movimento, evocam um gesto - como se o movimento tivesse acontecido momentos antes de nós olharmos.

Brízio está no meio de um certo caos de objectos, caixas cheias de livros, papéis e sacos, no atelier que lhe foi cedido para preparar a exposição sobre a sua obra, no âmbito da bienal ExperimentaDesign, no antigo Convento da Trindade, em Lisboa.

Chamou-lhe Desenho Habitado, nome que, confessa, roubou à artista plástica Helena Almeida.

"Não consigo deitar coisas fora. Fui sempre acumulando", explica o designer de 43 anos, que na sexta-feira às 16h dará uma conferência sobre o seu trabalho no Cinema S. Jorge, na capital.

Agora que lhe pediram que olhasse para o seu percurso desde 1993 e o contasse numa exposição teve de ir vasculhar nas caixas e encontrou coisas que ajudam a explicar a forma como olha para os objectos. Ou melhor, para o mundo - porque, no fundo, é isso que lhe interessa. "Gosto de objectos, edifícios, ruas, jardins, gosto de aprender, gosto de imensas coisas." Nesse processo de vasculhar na tralha acumulada encontrou, por exemplo, uma perna de um banco. Andava à procura de uma ideia e tinha pensado em martelar muitos pregos, cobrindo o banco com as cabecinhas pequeninas.

"Claramente não estava a resultar." E, então, na mesma perna aparece o desenho de uma pata de porco. "É quase o momento em que desistes de uma ideia e descobres outra." Nasceria daí o banco Pata Negra (de 2004), a concretização de uma ideia que andava pela cabeça de Brízio desde o dia em que, numa festa, ficara fascinado com uma perna de presunto particularmente bonita que um amigo tinha levado. Agora, olhando para trás, consegue reconstituir o processo que o levou dessa primeira ideia na festa até ao Pata Negra.

"Fundir animais com objectos era uma coisa em que eu já tinha pensado, tem muito a ver com o que o Bordalo Pinheiro faz. Foi quando surgiu o convite para reinterpretar um banco tradicional português que, a certa altura, lembrei-me que podia ser uma oportunidade. Andei à procura de uma pata bonita e usei-a como modelo." Avança pelo meio das caixas e encontra umas bóias de nível. "Para mim são fascinantes", diz, pegando numa. "Houve uma altura em que vi umas bóias japonesas numa loja no Rossio." Tentou aplicá-las em várias coisas - nos galheteiros em lata, por exemplo, porque são opacos e não se consegue ver o interior.

A ideia não resultou, mas acabou por voltar, quando uma empresa italiana lhe pediu para fazer um humidificador em porcelana.

Procura no computador uma pequena animação que mostra o resultado - o humidificador tem pendurada no exterior uma bola preta que, com o sistema inspirado nas bóias de nível, vai subindo pelo objecto acima, à medida que a água no interior diminui. Quando não há água, a bola chega ao cimo e instala-se na boca do humidificador, fechando-o. Podemos imaginar uns amigos a visitar-nos e a perguntar, com um ar ligeiramente apreensivo: "Aquela bola tem estado a mexer-se, é mesmo assim?" É a isto que Brízio se refere quando diz que gosta de fazer objectos que "podem tirar-nos o tapete porque não estamos à espera que aquilo aconteça".

Desconcertantes, portanto. Como aquele aparador preto que tem em cima um pano do pó que se mexe sozinho (através de um sistema de íman) quando abrimos as portas, como se uma pessoa invisível tivesse resolvido começar a limpar o pó.

As peças mais famosas de Fernando Brízio são provavelmente os vestidos que se podem colorir com canetas Giotto que se enfiam nos bolsos e vão criando manchas (Renewable Clothing), ou as jarras com o mesmo sistema, em que as canetas aparecem espetadas (Painting with Giotto). Conta que, por causa das cores que invadem os seus objectos, lhe perguntam se a cor é para ele muito importante. Não, não é. Nem sequer os materiais.

"Quando escolho um, é por ser a melhor forma de mostrar aquela ideia naquele momento."

Tocados pelos objectos

O que é mais importante é mesmo a ideia de que os objectos nos podem tocar de uma forma "mais primordial, que faz parte de outra esfera do humano, que não é cultural". E lembra-se do lenço que a filha não largava quando era pequena. "São objectos que nos condicionam emocionalmente, que são âncoras de conforto." Podem-nos tocar "eventualmente, pelo humor, pelo inesperado", mas Brízio nunca pensa: "Vou aqui fazer uma coisa para ter graça." Vai atrás de uma ideia que, por algum motivo, o prende. "Só me interessa se for tocado por aquilo. E, se conseguir manter essa intensidade no objecto, isso produz um efeito parecido depois [em quem o vê]." Muitos destes objectos movem-se ou transformam-se aos nossos olhos.

Há o quadro que vai mudando de cor ("funciona com o sistema dos galos de Barcelos ou das Nossas Senhoras, alterando-se com a humidade"), as jarras que se pintam sozinhas, a porta que parece deixar riscos de lápis na parede de cada vez que se abre ou fecha.

Depois há outros em que o gesto já aconteceu. Como este projecto de sinalética para um hotel, que Brízio mostra agora no computador: é como se alguém tivesse pegado num molho de lápis de uma cor e tivesse traçado uma série de riscos que conduzem ao quarto, cujo número da porta é feito com lápis espetados.

"Não me interessa o movimento pelo movimento, mas fascina-me o gesto.

Interessa-me mostrar um gesto." Em alguns casos esse gesto ficou congelado num objecto - como o Water Container, com a garrafa virada de cabeça para baixo e enfiada no copo, como se alguém tivesse acabado de a despejar.

Mas, noutros casos, Brízio vai mais longe e dá o salto para o movimento puro. Acontece nos filmezinhos que vão estar também na exposição.

Buster Keaton e Hulot

Entre Buster Keaton (uma referência assumida, especialmente na cena de The High-Sign em que o actor pinta na parede um cabide que depois serve para pendurar um chapéu real) e o Monsieur Hulot de Jacques Tati, às voltas com um mundo em que os objectos estão vivos, Brízio brinca consigo próprio no filme em que entra despenteado para o meio de uma árvore de ramos pendurados, e sai do outro lado, penteadíssimo. Ou quando põe o jacaré da Lacoste a comer um pedaço da camisola.

Ou ainda quando mostra a ideia de um chapéu-de-chuva que estaria pendurado num cabo, no meio de uma praça e que poderia ser utilizado por quem a atravessasse, sem necessidade de ocupar as mãos. "É quase um chapéu público." O mundo da imaginação de Brízio não parece ter limites, embora ele diga que tem "preconceitos de designer": "Às vezes não faço muitas coisas, porque acho que as pessoas não vão conseguir usar." Desde os tempos do curso de Design da Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, nos anos de 1990, que a questão de onde situar o seu trabalho se coloca.

"Havia quem dissesse: 'Tu és um artista, não és um designer.' Mas no prato trincado, por exemplo, a dentada não impede que seja usado ou fabricado industrialmente.

Quando assumes que és designer e que fazes objectos para serem produzidos em massa, fazes uma escolha", diz Brízio. E, no entanto, sentiu-se sempre numa fronteira.

"Nos anos 90 em Portugal, em relação ao design não se via nada, era um vazio. As referências eram mais da arquitectura e das artes plásticas, que no final dos anos 80 começaram a ter uma enorme mediatização." Ele andava à procura de um caminho, qualquer coisa "que não se confinasse à forma, ao estilo, ao luxo". No curso tentava resolver "problemas que tinham a ver com a performance do objecto", mas sentia que faltava "a questão emocional, afectiva, a ideia do objecto como plataforma de comunicação, de criação de significado".

Quando saiu da faculdade, não estando em nenhuma empresa, começou a fazer os objectos que podia realizar com pouco dinheiro.

"Interessava-me fazer objectos próximos das pessoas, que fazem companhia, podem dizer coisas, provocar emoções, ser assunto de conversa. Não queria fazer objectos silenciosos ou discretos." Foi seguindo a imaginação e os objectos foram nascendo e habitando o mundo. "Nós vivemos num mundo desenhado", gosta de dizer. E, de repente, lembra-se de um desenho animado da sua infância, o Lápis Mágico, que Vasco Granja mostrava na RTP.

Era a história de um menino que tinha um lápis mágico com o qual desenhava as coisas de que precisava. E elas tornavam-se realidade.

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