Soprador de folhas
De nada valeu lastimar a posteriori. Atravessar uma nuvem de poeira é uma decisão positivamente obtusa, pneumologicamente irresponsável e oftalmologicamente desastrosa. Deixo de fora o palatoso reino da otorrino-laringologia, apenas para não sobrecarregar o leitor com as sequelas clínicas da minha sandice.
Quando desci do carro, identifiquei logo o ruído da máquina, aquela que os antigos varredores de rua agora usam, com o motor nas costas e um longo tubo na mão. Os sopradores de folhas - assim chamados - anunciam-se a centenas de metros, para martírio auditivo de quem os opera, a poucos centímetros da fonte.
O angustiante barulho, dilacerador da harmonia social e da paz colectiva, é apenas uma das facetas desta brilhante invenção tecnológica, que aposentou a inócua vassoura, em favor do terrorismo ambiental.
Diligente, o funcionário camarário aplicava a potência máxima ao equipamento, apontando-o para as folhas de plátano que o Outono e a gravidade trouxeram ao chão. Subjugadas pela força daquele jacto pneumático, a ramagem obedecia em conformidade, acumulando-se junto ao passeio, para posterior recolha.
Descrita desta forma, a operação até parece eficaz. Mas vocês não viram a nuvem de pó que o soprador levantava - o que não seria de surpreender, dada as elementares leis da física. As folhas, mais pesadas, ficam no chão, mas as poeiras, quase tão leves quanto o ar, entram em suspensão imediata.
Para azar dos meus resquícios atléticos, aquela bola crescente de poluição atmosférica antepôs-se entre o ponto onde eu estava e a porta de acesso ao complexo das piscinas. E foi neste momento que, em aparente cãibra mental, decidi avançar. Cheguei ao balneário com os pulmões convulsos, o nariz irritado e os olhos a arder. Antes de começar a nadar, já me sentia fisicamente exaurido.
Enquanto convalescia a flutuar sobre a água, pus-me a imaginar que raio de inventor foi aquele que, ao elaborar uma máquina para substituir a vassoura, esqueceu-se da poeirada que a mesma iria causar. Mais tarde, vim a saber que o assunto é polémico já há algum tempo. Nos Estados Unidos, são relativamente antigas as campanhas contra os sopradores de folhas, militarmente alcunhados de "bazucas de poluição".
Na sua munição, conta-se o poder de arruinar tímpanos, com níveis sonoros superiores a 80 decibéis, de emitir tantos poluentes numa hora como um carro a rodar 560 quilómetros e de espalhar partículas, dejectos de animais, pesticidas, resíduos de automóveis, que antes estavam quietinhos sobre o asfalto e o passeio.
Como tudo na arte de acusar, estes argumentos valem o que valem, sabe-se lá quem fez essas contas. Com base, porém, no meu próprio faro - testado ao limite nesse dia fatídico - não tenho dúvidas de que os sopradores de folhas são uma das piores inovações da história da higiene urbana. Para solucionar um problema que antes se resolvia com saudáveis vassouradas, criou-se um monstro que ruge alto, cospe poeira, devora combustível e dejecta fumos tóxicos. Limpar, neste caso, é sinónimo de conspurcar - dois opostos que se anulam, em benefício da carteira do fabricante do equipamento.
Não é à toa que em muitas cidades norte-americanas os sopradores de sujeira foram já liminarmente banidos. Por cá, folgo em saber que a sua eliminação, embora pontual, consta das medidas para conter a poluição do ar em Lisboa.
Mas não no meu concelho, onde praticar desporto, naquele dia, foi antecedido de uma experiência pulmonar inesquecível, mentalmente reforçada pela camada de poeira que jazia sobre os automóveis quando saí da piscina.
Por favor, acabem lá com isso, devolvam as máquinas e ressuscitem a vassoura. Só vos fica bem.
Jornalista
rgarcia@publico.pt