“As gomas são um direito, sem gomas nada feito”
O arranque da primeira manifestação nacional pós-troika, “contra o empobrecimento e as injustiças”, está agendado para as três da tarde, mas há ainda autocarros a chegarem de Vila Franca de Xira e do Barreiro a essa hora. “Programa de agressão, com a luta dizemos não”.
É esta a tónica do discurso que ao longo da marcha é desferido contra o memorando assinado entre a troika internacional (Banco Central Europeu, Comissão Europeia e FMI) e a troika nacional (PSD, CDS e PS) e que se pode ler em autocolantes cedidos pela CGTP, que organiza o protesto.
Imediatamente atrás da carrinha que transporta o concerto ambulante dos Homens da Luta – que resgata o slogan pós-revolucionário “a cantiga é uma arma” e que chega a contar com a colaboração de Vitorino em Venham Mais Cinco, de Zeca Afonso – uma linha de jovens da Intersindical, por sua vez, lembra ao que vem com cartazes ao alto: “Tomemos nas nossas mãos os destinos das nossas vidas”.
A organização oferece bonés aos manifestantes, em tarde quente. A encabeçar o desfile estão seis Globetrotters da empresa de camionagem TNC. O buzinão dos camiões ressoa ao longo de todo percurso, do Saldanha aos Restauradores. É um sinal de protesto “em defesa dos postos de trabalho”, em nome da “viabilização” da empresa, dizem os representantes da empresa presentes.
São camiões com gente dentro, como Carlos Martins, que trabalha na companhia há 11 anos. “Só queria que me deixassem trabalhar para ganhar o pão de cada dia”, desabafa. Martins não recebe salário há dois meses, mas também não está despedido. E é este impasse que Paulo Guerreiro, trabalhador há nove anos na TNC, diz que não se pode perpetuar. Guerreiro acredita que a presença dos trabalhadores na manifestação sensibilize o Governo.
À margem da manifestação, em frente a uma das portas de acesso ao Galerias Saldanha Residence, está Irene, 40 anos. Fez uma pausa no seu trabalho como lojista para fumar um cigarro, enquanto os Homens da Luta cantam, ao megafone, Luta assim não dá. Garante que se não estivesse a trabalhar, “provavelmente” estaria na manifestação e que entende o protesto como “uma forma de expressar um bocadinho a instabilidade que se vive neste momento”. Não é o facto de trabalhar ao sábado que a incomoda. O que preocupa Irene é a incerteza, “as coisas que ainda não temos a certeza que virão”. Considera que os salários, em Portugal, estão muito aquém dos restantes países da União Europeia e que, “diga-se o que se disser”, o sector público goza de uma maior protecção social do que o sector privado.
A dada altura, a Liberdade segundo Sérgio Godinho, que só existe quando houver “a paz, o pão, habitação, saúde, educação” e que se ouve nas colunas, está espelhada e espalhada por centenas de faixas que os manifestantes empunham. Na assistência – porque, como nas procissões, as manifestações também têm a sua plateia residente – uma mulher comenta que acha “engraçado” que cada grupo que ali acorreu dê voz às suas “pequenas preocupações” locais.
Há um grupo de utentes de transportes públicos que clama pela qualidade dos serviços de mobilidade, reprovando “o aumento dos preços” decidido pelo Governo. Há ainda quem chame a atenção para a “calamidade nas vinhas na região de Setúbal” ou para a discordância com o fecho da Linha do Oeste. “Por uma aposentação digna”, lê-se num cartaz erguido por um colectivo de reformados. A habitação que Sérgio Godinho evoca é lembrada por um grupo do Bairro da Rosa, que se bate “por uma lei de rendas com critérios sociais”. Depois existem as causas nacionais, da reprovação dos aumentos na taxação da energia e a recusa das eventuais privatizações nos sectores da água e dos correios.
Profissionais da área da cultura de Évora estão também presentes com cartazes a defender que “o mundo não está condenado à barbárie”. José Russo, actor no Centro Dramático de Évora, afirma que “a cultura tem sido o parente pobre dos orçamentos” e lamenta que não seja vista como “um parceiro de todos os sectores, transversal”. Deslocou-se a Lisboa para dizer “não” à precariedade e ao desemprego e à perda de identidade cultural. Num cartaz empunhado por um colega pode-se ler que “o Estado não pode demitir-se do apoio a um serviço público na área da cultura”.
Também do Alentejo, de Vendas Novas, veio uma excursão de pessoas que se dizem contra o fecho das urgências. João Sá, 55, vem especialmente representar uma “luta muito antiga da população” desta cidade, a manutenção da abertura das urgências 24 horas por dia. Porém, reforça o também sindicalista, a sua luta é mais vasta. João diz que o Governo está a promover a “facilidade da entidade patronal em despedir, em vez de criar postos de trabalho”. Quanto à consequência da manifestação, está ciente das críticas – “Eles irão dizer que é o mesmo do costume”. João acredita, porém, que o Governo não ficará indiferente e que se vai aperceber que “os trabalhadores não estão a dormir”. Sá acredita, no entanto, que “os portugueses ainda não caíram na real” e que Portugal poderia prescindir da
troika, caso colocasse “a agricultura e a indústria a trabalhar”.
Ao largo da estátua de Marquês Pombal, à espera da cabeça do desfile, Alfredo Fernandes, 82, reformado, ergue uma bandeira portuguesa, “porque não é filiado em partido nenhum”. Fernandes acredita que o país está a perder a identidade e a soberania, mas defende que se “tem de lutar por elas”. O discurso de Fernandes é de pessimismo e de incógnita: “Estamos a andar excessivamente para trás em termos económicos, com a perda de salários e de assistência [social]. Não percebo bem porquê. O mundo não devia andar para trás, devia andar para a frente”. Andar para a frente, no entender de Fernandes, é “os povos melhorarem a sua qualidade de vida”, mas não acredita que a recuperação aconteça no “seu tempo”.
Em contraste com o tom amargo do homem que ergue a bandeira de Portugal, há quem rime esperança com mudança, e há ainda um cartaz escrito e colorido por Miguel, de sete anos. De um lado escreveu: “As gomas são um direito, sem gomas nada feito”. Do outro: “Quero que todos os meninos brinquem, estudem e sejam felizes”. A um passo, há quem partidarize as responsabilidades do “estado da arte” em Portugal: “Governo PSD e CDS, lacaios do capital” e “As Troikas matam a agricultura”. E há ainda quem defenda, como o movimento Ruptura/FER, que “como na Grécia”, Portugal deve seguir para a greve geral.
Pela Avenida da Liberdade há professores que se passeiam de preto, a declararem que "a educação está de luto". Ana Gabriela, 28 anos, professora de Educação Visual e Tecnológica, sindicalizada, dá aulas desde 2006 e fez o caminho Setúbal-Lisboa com a irmã, professora desempregada, para “lutar pelos direitos da profissão e para acompanhar a luta de todos os portugueses”. Neste ano Ana ficou colocada por “oferta de escola” em Oeiras e vive a incerteza de não saber se no final do mês continua a leccionar. Na Avenida da Liberdade, veio contestar a falta de “seriedade” nos concursos, recordando que trabalha na escola durante o dia e num call center à noite para “poder sustentar a família”. O aumento do IVA é uma das outras preocupações apontadas pela professora “precária” que “também influencia a [sua] vida”.
Ao cair da tarde, perante uma Praça dos Restauradores repleta de manifestantes, em tom inflamado, Carvalho da Silva, o líder da central sindical que comemorou neste sábado 41 anos, faz a avaliação dos cem dias de Governo de Passos Coelho e recorda a mais recente entrevista de Cavaco Silva, para assinalar que “não pode haver complacência com políticas neoliberais ou neoconservadoras” perpetradas pelo actual executivo e defendidas pelo Presidente da República.
No primeiro manifesto popular após a assinatura do acordo das troikas, o sindicalista pede “esperança no futuro”, apela que o caminho não deve ser o da recessão, mas o do crescimento económico e do combate à fraude e evasão fiscal, anunciando que “a luta vai prosseguir com maior amplitude”, em acções de luta entre 20 e 27 de Outubro por todo o país. Carvalho da Silva exortou ainda os presentes para que, “perante as dificuldades”, não se isolem. “Não há democracia se o Estado social for destruído.”