O que comem os confrades quando se juntam?

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Desta vez, em Guimarães, para festejar os 25 anos da confraria mais antiga do país, comeram-se papas de sarrabulho com rojões. Mas para Alexandra Prado Coelho (texto) e Paulo Pimenta (fotos) a novidade foi a Sopa do Vidreiro, que veio da Marinha Grande, trazida por uma confraria jovem, que quer recuperar a cultura dos homens do vidro

Dir-se-ia que tínhamos entrado no cenário de O Nome da Rosa, ou qualquer outro romance passado na Idade Média. Homens e mulheres vestidos com longos capotes, com o peito carregado de medalhas, e chapéus de abas redondas atravessavam os corredores de pedra do Paço dos Duques de Bragança, em Guimarães. Alguns carregavam estandartes.

Mas não se tratava de um ajuntamento de tropas para uma qualquer batalha. Estávamos ali por causa de uma cerimónia gastronómica: o Grande Capítulo da mais antiga confraria gastronómica portuguesa, a Panela do Lume, que comemorou 25 anos de existência.

Chegámos no sábado, já a meio da festa, que começara na véspera, e já tivera missa e desfile das confrarias. Naquela altura estavam todos reunidos na capela do Paço, numa cerimónia em que Gonçalo dos Reis Torgal, o fundador da confraria, entregou vários prémios dedicados às artes e entronizou novos confrades.

Um dos prémios entregues pela Confraria foi baptizado com o nome de David Lopes Ramos, jornalista e crítico gastronómico do PÚBLICO, desaparecido este ano - e será entregue todos os anos a um restaurante que a confraria queira distinguir pela sua qualidade (este ano foi o Líder, do Porto).

Mas vamos falar da comida, que é, afinal, o que traz aqui toda esta gente. Apesar de se assumir como defensora de toda a gastronomia tradicional portuguesa, a Confraria da Panela ao Lume tinha que escolher uma ementa e decidiu festejar os 25 anos com o prato em torno do qual se fundou: as papas de sarrabulho com rojões.

E se os rojões e as papas são bem conhecidos, sobretudo no norte, a novidade foi um outro prato, vindo da Marinha Grande: a Sopa do Vidreiro. Os confrades desta sopa distinguiam-se dos outros pelo traje - as calças de zuarte azul-escuro, a camisa de estamanhinha cinzenta, as alpergatas azuis, a boina basca, e um lenço ao pescoço.

É a roupa típica dos vidreiros, explica-nos Aires Rodrigues, o fundador em 1976, juntamente com Carmelinda Pereira, do Partido Operário de Unidade Socialista (POUS), e hoje grande conselheiro da Confraria da Sopa do Vidreiro. "Esta era tradicionalmente, desde pelo menos meados do século XIX a sopa dos operários vidreiros ao longo de toda a sua vida de trabalho. É feita à base de bacalhau, que era um produto barato na época, pão rijo, sobras de broa de milho, batatas, ovo escalfado e salsa. Isto permitia repor as energias e os sais minerais despendidos com o trabalho à boca do forno."

Foi por isso que quando começou a trabalhar, aos 12 anos, Fernando Esperança, que é agora o Grão-Mestre da confraria, ouviu o médico dar-lhe o mesmo conselho que dava a todos os vidreiros: "Come sopa de bacalhau." "Eu, na altura, era miúdo e não gostava muito", confessa. O sabor do alho e do bacalhau pareciam-lhe muito fortes. Mas depois foi-se habituando e ao fim de poucos anos já fazia como os outros e levava de casa o tacho com a sopa.

"Os vidreiros punham os tachos junto às arcas de recozimento do vidro e eles mantinham-se quentes", explica Aires Rodrigues. Noutros casos, os filhos iam à fábrica levar aos pais o cesto com a refeição: a sopa, uma laranja, e um pouco de vinho, que era colocado "num frasco feito pelo próprio vidreiro, com um formato especial que permitia segurá-lo na mesma mão em que tinham o tacho da sopa."

Depois, com o passar dos anos, os hábitos alimentares foram-se alterando e a própria indústria vidreira foi entrando em crise. A confraria pretende agora não só fazer renascer a tradição da sopa - que nas casas particulares foi sempre mantida, mas que não existia nos restaurantes da Marinha Grande - como, sublinhou Fernando Esperança, "homenagear uma classe social que está hoje talvez a um décimo do que era ainda no terceiro quartel do século XX".

Há já alguns restaurantes da Marinha Grande a servir a sopa do vidreiro, mas se for preciso indicar um, então Aires Rodrigues aconselha o Rojão, na Amieira, onde às segundas-feiras há sempre este prato. Mas, atenção, um prato desta sopa tem umas 1500 calorias, avisam os confrades. O ideal será ficar por aqui ou fazer como os vidreiros e comer, quanto muito, uma laranja.

Não foi o que aconteceu no almoço do Grande Capítulo da Panela ao Lume, servido pelo Restaurante Torres, de Guimarães. É que depois da Sopa do Vidreiro (esta cozinhada pela confraria vinda da Marinha Grande) chegaram os rojões com as papas de sarrabulho. Mas, sendo isto uma confraria gastronómica, não há como recusar, e lá continuámos a refeição. Que, aliás, tinha já começado com uma série de entradas, entre as quais a morcela de Burgos, iguaria tradicional defendida pela Confraria da Morcilla Burgensis.

Atravessamos a sala para ir à mesa onde estão reunidos os confrades da morcela e ouvir as explicações de Mari Carmen, que já viu a mãe fazer a morcela de Burgos exactamente como a avó fazia. E, num espanhol muito rápido, repete o dito popular de que aquela deve ser "sosa, grasosa e picosa", ou seja, insonsa, gorda e picante.

Feita de arroz, sangue de porco, cebola e gordura do porco, deve levar ainda sal e um pouco de pimentão-doce e picante. Enche-se depois a tripa do porco, mas não demasiado porque o arroz vai inchar com a cozedura e tem que caber. Come-se depois frita, ou cozida, ou ainda em pratos típicos como o guisado que em Burgos se chama "olla podrida", com feijão branco, carne de porco, chouriço, morcela, ovos, salsa, alho e pão ralado.

E já que se fala de pratos leves, ouçamos agora Maria Luisa Corzo, a orgulhosa presidente da Confraria Doña Gontrodo, de Oviedo, com a sua boina cheia de medalhas. E entramos novamente nos tempos medievais com a história desta confraria apenas de mulheres, que pretende homenagear a gastronomia de Oviedo. Um exemplo é essa refeição completa baptizada como Desarme, com a qual, diz-se, no tempo das invasões napoleónicas, as freiras de um convento terão posto as tropas francesas a dormir, conseguindo assim tirar as armas aos homens. Estes, depois de um prato de grão-de-bico com bacalhau e espinafres, outro de tripas, sobremesa de arroz doce e casadielles (pastel típico das Astúrias, feito de farinha aromatizada com anis, recheado com nozes e açúcar, frito e coberto de açúcar), e de uns bons copos de vinho, não deram por nada e ficaram literalmente desarmados.

Mas há por aqui outra confraria só de mulheres. Esta é portuguesa, de Vagos, chama-se As Saínhas, existe há quatro anos, e promove o redenho (o véu do porco, ou seja, a membrana que envolve os intestinos), cozinhado durante umas duas horas na própria gordura até ficar seco e estaladiço (é então chamado saínhas). Também este era um petisco caído em desuso e agora, contam, sorridentes, Annette, Isabel, Manuela e Catarina, está a ser recuperado por alguns restaurantes de Vagos.

As confrarias gastronómicas estão na moda - basta olhar em redor e todos os dias nascem irmandades em torno dos produtos mais extraordinários e inesperados. Folclore à parte, alguns destes grupos têm feito um trabalho importante na recuperação de tradições gastronómicas (mas não só, também culturais: a cultura do vidreiro da Marinha Grande pode ser um bom exemplo). E mantêm-se vigilantes para que os restaurantes que servem estes pratos não se afastem das receitas originais.

No final da refeição em Guimarães, Reis Torgal elogiou as papas de sarrabulho, mas deixou uma advertência: é que os rojões (que vinham acompanhados por castanhas) deveriam vir com batatas alouradas. "É fundamental", disse. Tradição é tradição - e uma confraria nunca está distraída.

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