Na rota da civilização Maia
A civilização Maia deixou um legado impressionante de arte e saber espalhado pela América Central e sul do México. Embrenhado na selva e na arquitectura pré-colombiana, Filipe Morato Gomes (texto e fotos) encetou uma jornada terrestre ao encontro de quatro dos mais significativos sítios arqueológicos da região - Copán, Tikal, Palenque e Chitzén Itza
Viajar pela América Central é um deleite. Não há, felizmente, um gringo trail tão vincado que faça os viajantes percorrerem todos os mesmos trajectos, como carneiros pseudo-independentes da ditadura dos guias de viagem. Porque, na metade norte da América Central e no sul do México, as possibilidades são tantas quanto os interesses particulares de cada um - surf ao longo da costa do Pacífico, praia e mergulho na costa atlântica, cidades de arquitectura colonial bem dispersas, selva em locais remotos como La Moskitia ou El Petén - e os itinerários reflectem essa diversidade.
Ora, para os amantes de história ou arqueologia, o "problema" é ainda mais delicioso: os vestígios das civilizações pré-colombianas são tantos, tão apelativos e tão dispersos - dos actuais México e Belize, passando pela Guatemala, El Salvador e Honduras - que o mais difícil é escolher o que visitar. Literalmente. E, em alguns casos, lá chegar.
Esta é, pois, apenas uma entre muitas possíveis rotas pelo legado Maia na região, percorrendo quatro dos mais importantes e visitáveis locais arqueológicos da civilização Maia até agora descobertos, todos protegidos pela UNESCO com a classificação de Património Mundial, todos diferentes entre si. Comecei pelas artísticas ruínas de Copán.
Copán, Honduras
Sentia o corpo moído após uma longa jornada em transportes rodoviários desde a Cidade da Guatemala. Copán Ruinas fica do outro lado da fronteira, já em território hondurenho, longe de quase tudo, mas, afortunadamente, o quebranto foi de pouca dura: uma vez apeado em Copán Ruinas, fui imediatamente invadido por um agradável estado de feliz relaxamento.
Viajava há já algumas semanas pela América Central e as ruas estreitas e empedradas colina acima, o ar pitoresco, as muitas pousadas e hotéis anunciando quartos a bom preço, bares e restaurantes apregoando pequenos-almoços tradicionais e europeus, comida italiana e happy hours ao fim da tarde, as agências de viagens porta-sim-porta-não tratando de oferecer mil e uma formas de preencher os dias com passeios a cavalo à finca El Cisne ou banhos nas fontes geotérmicas de Agua Caliente, tudo contribuía para que os viajantes se sentissem dentro da sua zona de conforto, "em casa". E isso nem sempre é coisa ruim.
Copán Ruinas vive da sua proximidade geográfica com as importantes e homónimas ruínas Maia, assinaladas pelo explorador espanhol Diego García de Palacio por volta de 1570 e actualmente classificadas como Património Mundial pela UNESCO. Copán Ruinas soube aproveitar os benefícios do turismo associado a esse precioso legado histórico para se desenvolver de forma razoavelmente ordeira e elegante, e sem menosprezo para com o quotidiano local. Durante todo o tempo em que chamei casa a Copán Ruinas, a cidade fervilhava de vida, com epicentro no velhinho mercado situado em pleno Parque Central.
Constatei com expectável naturalidade que a omnipresente praça "Central", coração de quase todos os povoados americanos de influência hispânica, era o local mais movimentado de Copán Ruínas. Ora, como parques, praças e esplanadas são quase sempre sítios perfeitos para assentar arraiais durante um par de horas a observar e deixar o tempo fluir, segui o instinto e deixei-me ficar.
Sentei-me por alguns momentos a observar o bulício à porta do mercado: viam-se homens com os seus chapéus-panamá, aspecto rude e machete na mão, mulheres carregando as compras, muita gente sentada em conversas e coscuvilhices, dias que passam inexoravelmente devagar. À minha presença, os homens sorriam. As mulheres do mercado envergonhavam-se. Um polícia metia conversa. Um grupo trajado de calças e colete castanho, camisa branca e um proeminente laço vermelho atado ao pescoço exibia a sua arte musical perante o enfado de alguns, habituados ao mesmo show diário dos mariachis locais. µ
± Ao fim da tarde, instalaram-se inúmeras bancas de comida na praça e nas ruelas adjacentes. Vendiam frango frito com batatas fritas, espetadas de carne na brasa com tortilhas, chouriço de frango na brasa com salada e pasta de feijão, e eram muito frequentadas pelos habitantes locais. Os forasteiros eram naturalmente bem-vindos, e chamamento assim não se recusa, especialmente após cirandar pelas ruínas Maia das redondezas - o sítio arqueológico de Copán -, o propósito maior de qualquer viagem à cidade de Copán Ruínas.
Não é de espantar que assim seja. É certo que a imponência de Copán não é comparável à de Palenque, não tem pirâmides tão altas e tão profundamente embrenhadas na selva como Tikal, nem tampouco possui as atenções mediáticas de Chitzén Itza, mas a tranquilidade do local dada a relativa ausência do turismo massificado e, acima de tudo, os hieróglifos e as magníficas esculturas produzidas na antiga cidade Maia de Copán - muitas das quais expostas no excelente Museu da Escultura, adjacente ao sítio arqueológico - valem, por si só, o esforço e tempo necessários para a visitar.
A entrada no complexo fez-se na companhia de barulhentas araras multicoloridas até ao primeiro vislumbre da Grande Praça, centro nevrálgico da cidade histórica. Um pouco para sul, era impossível não reparar no imenso campo verdejante com grandes bancadas de pedra laterais construído para o juego de pelota, um desporto de cariz não apenas recreativo e frequentemente associado a aspectos rituais das civilizações pré-colombianas.
E havia ainda o Pátio dos Jaguares, o Templo das Inscrições e, naturalmente, os 62 degraus da admirável Escadaria dos Hieróglifos, cujas inscrições formam um dos maiores textos hieroglíficos conhecidos da era Maia. Uma excelente introdução, com nota artística de qualidade, ao que resta de uma das mais fascinantes civilizações da história da Humanidade, antes de rumar às assombrosas pirâmides na selva de Tikal.
Tikal, Guatemala
O advento do turismo independente tem destas coisas. Apesar da distância, a minúscula ilha de Flores, localizada no interior do remoto lago Petén Itza, porta de acesso ao sítio arqueológico de Tikal, é hoje facilmente acessível a partir de Copán Ruínas. Há carrinhas privadas a unir as duas localidades, e elas são a solução perfeita para a escassez de transportes públicos. Foi precisamente assim que cheguei à ilha de Flores.
Não se pode dizer que Flores seja um lugar extraordinariamente atraente, mas a presença das águas do lago em muito contribui para a tornar uma localidade agradável, despretensiosa e até com algum charme. Na verdade, porém, ninguém vem a Flores para visitar Flores. Nem Susie e Veronique, duas jovens amigas holandesas em viagem pela América Central. Chegaram à pousada onde me havia instalado mesmo a tempo de me acompanharem num improvisado jantar de aniversário, num restaurante barato nas margens do lago. Iam, como todos os que chegam a Flores, visitar o Parque Nacional de Tikal e as homónimas ruínas. Optaram por fazê-lo com um guia, em grupo; eu, sozinho. Mas todos haveríamos de acordar antes das cinco da madrugada para uma das mais extraordinárias experiências das nossas viagens.
A cidade pré-colombiana de Tikal está visceralmente embrenhada na selva. Há macacos e tucanos e uma orquestra de barulhos provenientes de seres vivos que não se vêem. Monumentais templos e pirâmides com declives perigosos espraiam-se ao longo de vários hectares de densa floresta tropical. Os longos percursos entre eles são efectuados sob a protecção de árvores como as ceiba, género que pode atingir 70 metros de altura e que os Maia consideravam ser a "Árvore Sagrada da Vida" - o eixo do mundo. Mas alguns edifícios são tão altos que se sobrepõem à copa das árvores, permitindo vistas absolutamente deslumbrantes do seu topo.
Subi ao chamado Templo IV por uma periclitante escada de madeira e, lá do alto, via-se um imenso manto verde até onde céu e terra se unem no horizonte, pontilhado, aqui e ali, pelos cumes dos edifícios mais emblemáticos, como os que dominam a Grande Praça. A cidade era, de facto, imponente. Estima-se que possam ter vivido em Tikal quase 90.000 habitantes. Há registos de centenas de edifícios construídos, boa parte dos quais ainda por resgatar ao abraço dos tempos. Entre eles, templos, pirâmides, palácios, residências, edifícios administrativos e campos de jogos.
Percorri os trilhos que levam à Praça dos Sete Templos debaixo de nuvens carregadas e uma chuva miudinha. Brumas que vieram acrescentar uma aura de mistério à exploração de Tikal. Calmamente, cheguei à Grande Praça e subi ao chamado Templo II. Lá em baixo, defronte do majestoso Templo do Grande Jaguar - ou Templo I -, uma mulher de longos cabelos pretos estava sentada no relvado, imóvel, silenciosa, contemplativa. Teria trinta e alguns anos, um bonito sorriso e sotaque porteño. Aproximei-me, e ali ficámos, debaixo da chuva miudinha, contemplando a grandiosidade e génio da arquitectura Maia, praticamente em silêncio - que há momentos em que as palavras estão a mais. µ
± Despedimo-nos sem nos termos verdadeiramente conhecido, e é precisamente assim que gosto de recordar Tikal: um local belo, tranquilo e misterioso, sobre o qual objectivamente pouco sabemos, mas que me proporcionou uma experiência mágica e irrepetível. Admiração e respeito são duas palavras que assentam bem ao que sinto por Tikal. Palenque não haveria de ser menos fascinante.
Palenque, México
É na cidade pré-hispânica de Palenque que, porventura, a arquitectura cerimonial Maia atinge o seu auge. Ou, nas palavras da UNESCO, "atestam o génio criativo da civilização", referindo-se à "elegância dos edifícios" e à "leveza dos altos-relevos esculpidos com motivos mitológicos Maia". Quando entrei numa carrinha para iniciar a penosa ligação entre Flores e El Panchán, via Frontera Corozal, tinha, pois, fundadas expectativas sobre o sítio arqueológico de Palenque. Não haveria de ficar desiludido.
Ao entardecer, os macacos faziam um barulho ensurdecedor em tudo semelhante aos rugidos de um leão. Durante todo o dia, passarada de múltiplas espécies cantarolava alegremente. Estava em El Panchán, um boémio vilarejo instalado junto à entrada do Parque Nacional de Palenque, composto por dois caminhos de areia albergando um punhado de cabanas rústicas a servir de pousadas e restaurantes, geridos por gente descontraída, num ambiente informal e... muito húmido. Estava-se literalmente no meio de uma densa selva tropical, o que, tal como acontece em Tikal, em muito contribui para a experiência positiva que Palenque costuma deixar nos visitantes. Isso e, claro, a excelência das próprias ruínas.
Manhã cedo, a entrada no complexo arqueológico foi efectuada sob uma luminosidade que antevia um dia em cheio. A vontade de conhecer Palenque era imensa, o alvorecer estava perfeito. A melhor altura para visitar as ruínas é precisamente logo pela manhã, ou a partir do meio da tarde, quando os grandes autocarros de turismo ainda não chegaram ou já partiram, deixando as ruínas de Palenque por conta de pequenos grupos de visitantes, pássaros e macacos.
A informação arqueológica aparecia escrita em tseltal, e um painel informativo, colocado à entrada, justificava: "Em Chiapas, eram falados sete idiomas para além do espanhol: tseltal, tzotzil, tojolabal, chol, lacandón, chuj e zxoque. O sítio arqueológico de Palenque fica em território chol, mas o tseltal tornou-se na língua usada pelos diferentes grupos étnicos para comunicarem entre si. Os painéis falam do Templo das Inscrições, construído como monumento fúnebre de Pacal, "O Grande", governador Maia de Palenque durante quase sete décadas, do edifício conhecido por Palácio, com suas magníficas esculturas e baixos-relevos, do Aqueduto, dos templos do Sol, do Conde ou do Jaguar, e de um sem fim de pequenos edifícios que vale a pena subir, admirar, sentir.
A vista do topo do Templo das Cruzes sobre o complexo de edifícios adjacente, por exemplo, e especialmente ao amanhecer, com o sol pelas costas, é deslumbrante. Visto do alto, acima da copa das árvores, os templos pareciam brotar como cogumelos geométricos da selva verdejante e frondosa, pintalgados de cor, aqui e ali, pelas roupas dos turistas que arriscavam uma subida pelas íngremes escadarias de madeira que davam acesso ao topo dos templos.
Palenque, tal como Tikal, na vizinha Guatemala, não é apenas para ser vista; constituem, ambas, experiências de viagem incomparáveis no mundo Maia, que requerem espírito aberto, curiosidade histórica e humildade para reconhecer a sabedoria e eloquência criativa de quem ali viveu muitos séculos atrás. Um verdadeiro privilégio, para ser desfrutado tranquilamente, pensei. Talvez por isso, sabia de antemão que a experiência de visitar a mediática Chitzén Itza seria difícil de suportar.
Chitzén Itza, México
Diz a insuspeita UNESCO que, "ao longo de quase mil anos de história, diferentes povos deixaram a sua marca em Chitzén Itza. As visões Maia e Tolteca sobre o Mundo e o Universo estão patentes nos monumentos de pedra e nos trabalhos artísticos. A fusão das técnicas de construção do povo Maia com novos elementos oriundos do México central faz de Chitzén Itza um dos mais importantes exemplos das civilizações Maia-Tolteca no Yucatán".
Talvez por isso, pela relativa proximidade com as praias de Cancun e Playa del Carmen, ou ainda devido à recente eleição de Chitzén Itza como uma das 7 Novas Maravilhas do Mundo num concurso de resultados questionáveis, o complexo arqueológico de Chitzén Itza é actualmente uma das maiores atracções turísticas do Yucatán, se não mesmo de todo o território mexicano. Recebe diariamente milhares de turistas, uma boa parte deles "despejados" de autocarros excursionistas oriundos dos resorts de luxo das praias da Riviera Maia, com guias turísticos de bandeira em riste. E isso arruína boa parte do seu encanto.
Havia enormes filas à entrada, norte-americanos balofos aos berros, gente para quem uma escultura Maia não passa de um bonito adorno para um auto-retrato digital, e estava um sol inclemente. Uma vez entrado no complexo, fiquei também com a sensação de que os edifícios estavam restaurados de forma - digamos - demasiado perfeita. Tudo parecia demasiado alinhado, arranjado, polido. Foi a mesma impressão que em tempos tive ao caminhar em determinadas áreas restauradas da Grande Muralha da China. Ainda assim, e apesar de tudo, vale a pena visitar Chitzén Itza; evitá-la seria uma tremenda injustiça.
Porque Chitzén Itza foi o centro político e económico de toda a civilização Maia. Porque a cidade é bonita e bem estruturada. E porque o majestoso Templo dos Guerreiros, com a suas estátuas Chac Mol - de figuras humanas colocadas numa posição reclinada com a cabeça erguida e voltada para um dos lados -, a Praça das Mil Colunas, o imenso Campo de Jogos e o inigualável Templo de Kukulkán, a pirâmide que domina todo o complexo arqueológico, são edifícios verdadeiramente atractivos que valeriam, por si, a deslocação. Para quem o excesso de turistas excursionistas é um infortúnio pouco suportável, fica a certeza de haver Copán, Tikal e até Palenque. E muitos outros sítios arqueológicos, outras rotas, outras viagens. Porque as possibilidades são tantas quanto os interesses particulares de cada um.