A dança é uma arma
"(M)imosa or Twenty Looks or Paris is Burning at The Judson Church" é uma peça dessasombrada assinada a quatro vozes. Abre amanhã o festival Circular, em Vila do Conde, mostrando a carne viva que fez a mais secreta das histórias da dança contempoânea. Já dançámos o vogging, só não sabíamos que o estávamos a fazer.. Tiago Bartolomeu Costa
Tempos houve em Nova Iorque em que, na cave de uma igreja em Washington Square, Greenwich Village, começava a dança contemporânea. Estávamos no final da década de 60 e Yvonne Rainer, Trisha Brown ou Deborah Hay experimentavam trazer o quotidiano para dentro do movimento. Gesto após gesto, caminhar num quadrado ou repetir movimentos que haviam sido transmitidos de um telhado, tornar-se-iam referências que reestruturaram a dança como hoje a conhecemos.
Mais acima, no bairro de Harlem e no Bronx, uma outra história, que não ficou para a História, começava. Os nomes de quem a protagonizou talvez não sejam, ainda hoje, senão isso mesmo, nomes que se tornaram mitos urbanos. Mas com o tempo e os anos, o que Vénus Xtravaganza, Pepper LaBeija, Dorian Corey, Anji Xtravaganza ou Willi Ninja fizeram - e que em 1990 ficou registado no filme "Paris is Burning", de Jennie Livingstone - tinha o mesmo princípio: reconfigurar, a partir do movimento urbano, a relação do corpo com esse contexto. Mas se na baixa nova-iorquina a dança existia como hipótese de leitura do potencial do corpo face a uma história da arte, nos bairros limítrofes da cidade a dança era também uma arma de sedução e, ao mesmo tempo, um factor de resistência contra as ofensas às minorias. A esse fenómeno chamou-se "vogging", movimento que copiava os gestos dos manequins da moda, então émulos mais próximos mas não menos etéreos das starlettes de Hollywood, e que explorava o corpo como se este estivesse num estado de alienação. Era uma coreografia difícil, nervosa mesmo, que, ao mesmo tempo que libertava o corpo de espartilhos semióticos, corporizava uma reacção às lutas sociais contra a homofobia, a segregação racial, a pobreza ou a sida. Era uma dança como forma de vida, de a olhar e de a desejar transformada.
Duelo
Corporizada por uma comunidade que via nos fantasmas de Hollywood um eldorado ao qual ambicionava ascender, os intérpretes do "vogging" trabalhavam uma construção do real em bailes competitivos, organizados por casas geridas por mulheres apelidadas de mãe, santas protectoras de um estado de alerta permanente em relação à sociedade. Eram, na sua maioria, homossexuais, muitos deles transexuais, e aquilo de que falavam era de identidade: sexual, social, política e cultural. De um outro mundo ao qual pudessem pertencer. O inimigo era o outro: o homem, o domínio, o poder, o branco, a autoridade, o ignorante.Para os intérpretes e coreógrafos Cecília Bengolea (Argentina), François Chaignaud (França), Marlene Monteiro Freitas (Cabo Verde/Portugal) e Trajall Harrel (EUA), o "vogging" tornou-se também num espectáculo, "(M)imosa or Twenty Looks or Paris is Burning at The Judson Church", e numa hipótese de verificação da "compatibilidade profunda entre o movimento da Judson Dance e o que se passava no norte da cidade" e a possibilidade de "repensar a história como ela havia sido escrita de um ponto de vista da dança pós-moderna", explicou Harrel num encontro com o público, no Festival de Avignon, em Julho, onde o Ípsilon viu a peça, que foi recebida com histeria e deslumbre.
É compreensível: coloca os quatro autores numa recriação do espírito das casas de "vogging", em competição pela atenção do público, que, aos poucos, vai percebendo que pode e deve manifestar-se. Os "walkers", como se chamavam os praticantes de "vogging", batiam-se por uma apresentação realista - mesmo que fosse uma construção - de uma outra identidade, normalmente um "drag", "queen" ou "king" dependendo se homem ou mulher. Ao longo deste duelo, onde o público nunca deixa de ser visto, Cecília, François, Marlene e Trajall observam, observam-se e observam-nos, desmontam estereótipos da representação e sugerem uma outra sociedade, eventualmente mais justa porque mais iludida - ou ilusória.
"O "vogging" não é decorativo, é funcional", explicou Bengolea. E as figuras que eles criam, onde o corpo é matéria moldável, "equivale à noção de real defendida pelo "vogging", onde a transformação do corpo existe em função, ou ao serviço, de um convencimento para se ser aceite numa comunidade", continuou.
A peça, compêndio de sequências que misturam a opereta com a poesia, canções com poemas, o transe com a marrabenta, o travesti com o seu desejo, tem um fio condutor, essa Mimosa, mulher-objecto, homem-desejante, que são todos eles a serem todos nós, num grande abraço de homenagem à dança, seja ela qual for, como hipótese lúcida de uma sociedade. "O que podemos fazer é estabelecer paralelos ou coisas que cruzam", disse Trajal Harrell. "Devemos criar um imaginário e trabalhá-lo, procurando perceber como se pode entrar na pele de uma personagem e torná-la o mais credível", acrescentou Marlene Monteiro Freitas. "É como um jogo", resume.