"A liberdade é a grande questão que assombra o teatro"
O teatro não é um lugar para se fazer política, diz Hans-Thies Lehmann, o papa do teatro pós-dramático. Foi ele quem melhor definiu o que se passou na Europa teatral dos anos 80 e 90. O seu olhar, lúcido e sempre inquieto, é um guia para os tempos que correm. Onde a função do teatro já não pode ser a da moral, da ideologia ou do facilitismo.
Quando em 1999 Hans-Thies Lehmann publicou Postdramatisches Theater, ainda inédito em Portugal, a ideia de uma reconstrução da hierarquia teatral pedia outra forma de pensarmos o lugar do texto, da encenação, da interpretação ou dos espectadores, mas também uma relação com o próprio impacto do teatro na sociedade. O autor, numa tese que se tornou revolucionária, enumerou diversos nomes do teatro que no fim dos anos 80 e princípio da década de 90 propunham uma deslocalização do teatro do formalismo do palco para um confronto - e uma validação - com a realidade.
Doze anos depois, Hans-Thies Lehmann continua a acreditar que o teatro precisa de repensar a sua função social, abandonado um desejo de moralização e pedagogia. Em Lisboa, para conversar hoje às 18h30 no Teatro Maria Matos com a coreógrafa Meg Stuart, que apresenta Violet, o teórico alemão fala ao P2 sobre o modo como o teatro vive numa encruzilhada que não deixa de considerar fascinante: a liberdade do teatro é a sua maior prisão.
Para que realidade está o teatro contemporâneo a falar hoje?
O teatro pós-dramático que eu concebi para um teatro experimental tornou-se hoje mainstream. Há uma poética pós-dramática que, claro, existe em oposição a um trabalho político crítico. O teatro é profundamente melancólico. Ou funciona no "agora", ou nunca funcionará.
Existirão sempre os traços, as memórias e os documentos, claro, mas o que me interessa é que a estrutura pós-dramática, no sentido lato que precisamos de dar a este termo, tornou-se numa língua franca do teatro internacional. Verifica-se, hoje, uma tendência para um diálogo mais directo com a sociedade, através de um entusiasmo por novos significados teatrais que possam alargar a linguagem do próprio teatro e, assim, (re)descobrindo-o.
Estas novas formas de impacto directo político não são tão fortes como eram nos anos 80, sobre os quais me debrucei. Não me convence a ideia de que o teatro seja um lugar onde se possam apresentar soluções políticas, porque o público é muito reduzido, e é, ainda hoje, amplamente burguês. Os intelectuais que hoje pensam a sociedade não precisam do teatro para perceberem qual a realidade da própria sociedade. Esse tinha já sido o erro, no fim dos anos 20, com o teatro agit-prop, que pregava já aos convertidos e não tinha um impacto político.
Isto não significa que não acredite que o teatro possa ser outra coisa senão um assunto profundamente político. Estou convencido que ver, fazer e pensar teatro é sempre um gesto altamente político, não de uma forma directa mas oblíqua. O teatro altera hábitos de percepção e, através da produção de diferentes meios de comunicação, altera, politicamente, as atitudes das pessoas.
O modo como produz essa alteração também se modificou. Se o teatro, em si mesmo, havia já abandonado a intenção de ser um veículo para uma moralização, nos últimos anos o desenvolvimento da Internet, no que isso significa de circulação das ideias e informação, mudou muito o modo como comunicamos.
Concordo perfeitamente. O teatro como prática é mais lento do que a Internet, vimos isso com a Primavera Árabe. A Internet e os telefones móveis foram o meio escolhido para a passagem de informação. Se as pessoas tivessem esperado por um teatro que descrevesse a situação e a encenasse, não chegaria tão longe. Essa não pode ser a função directa do teatro. O teatro, enquanto forma de arte, como a poesia, a música ou os filmes, tem um impacto profundo na sociedade, é verdade, mas não deixa de ser um trabalho individual que tem um impacto político com um público reduzido. O teatro é um ritual que reúne as pessoas e é feito em comunidade. É uma situação, em si mesma utópica, diferente da ida ao cinema ou do impacto da economia na realidade individual. Essa especificidade característica do teatro é inalterável. O que se alterou foram os meios de produção. O teatro foi sempre uma máquina que "comeu" todos os outros meios, da fotografia ao cinema e mesmo a realidade virtual dada pelos computadores. É o meio mais aberto, pois tudo pode originar uma situação teatral sem a necessidade de um papel específico ou num espaço próprio. Está em todo o lado. Mas deve continuar a ser um lugar não-moral, não-político ou não-ideológico.Como podemos, então, relacionar isso com a programação de alguns teatros europeus que encenam textos clássicos com o argumento de que querem perceber a realidade contemporânea?
Receio que essas instituições queiram desesperadamente estar na moda. Há uma obrigação no teatro alemão de encenar Hamlet e por isso encena-se para se verem hoje as questões do poder. Não me incomoda a mistura de textos clássicos com leituras contemporâneas, mas incomoda-me a procura de uma significação moralista e política que é projectada nos clássicos. Acho isso muito aborrecido. Isso vai contra aquela que é, para mim, a questão essencial para o teatro: o papel do espectador. Como disse Guy Debord, vivemos numa sociedade do espectáculo e um dos seus maiores problemas é que nos define permanentemente como espectadores da nossa própria vida política. Enquanto espectador tenho que colocar questões, pensar, repensar e criar uma certa margem para que a incompreensão tenha lugar. Acredito que muitos dos modernizadores de textos clássicos estão, na sua maioria, a tentar que seja tudo compreensível e a dizer que Shakespeare é contemporâneo. Como espectador não nos dão margem para sermos nós a descobrir.
Não reconhecem o facto de que muitos destes textos se reportam a condições específicas que têm a ver com o tempo e o modo como foram escritos que não podem ser transformados em metáforas para os dias que correm?
Absolutamente. Uma boa leitura de um texto clássico deve ser a encenação da distância que nos separa dele.
Que margem é dada a textos contemporâneos que preenchem o espaço que nos separa dos textos clássicos?
Essa é a questão que persegue os autores e os editores. Não há assim tantos textos que possam servir para o teatro. E isso deve-se, provavelmente, ao facto de que muitos autores talentosos seguiram outros caminhos. Não nos devemos deprimir em relação a esta falta de textos. Há outros tipos de teatro. O teatro tornou-se algo que pode ser relacionado com a acção política, o encontro social, com o ímpeto pedagógico, as instalações visuais, o intermedia... Nem todos os tipos de teatro se sustentam, primordialmente, no uso do texto, especialmente nos últimos dez anos. O teatro dirigido por um grande encenador foi substituído por um teatro feito por grupos, que criaram também os seus textos. Isto não significa um regresso à criação colectiva que fez o teatro nos anos 60 com todas essas utopias democráticas.
A relação directa que havia entre a arte e a política talvez não possa hoje existir, ou não seja tão evidente.
A criação colectiva estava muito ligada à macropolítica, enquanto o trabalho colectivo, hoje, está ligado à micropolítica, que não significa pensar apenas em si. Vivemos, cada vez mais, num tempo de radicalização comercial e de consumismo cultural industrial e isso tende a marginalizar todas as formas e investimentos artísticos que exigem algo ao público. A facilitação do espectador é algo que é privilegiado o tempo todo. Temos, e continuaremos a ter, um público reduzido para o teatro. O teatro, da produção à recepção, é algo que fazemos em comunidade. E, em tempos de conflito político, o teatro mostrou sempre a sua força, sendo um lugar de discussão, que ainda hoje mantém. Isto não nos deve cegar perante a situação de que o teatro não pode ser um veículo tão poderoso como era antes do advento do cinema ou da televisão.
Isto força-o a reescrever uma história da Europa de um ponto de vista da história do teatro.
Sinto precisamente isso. Não sou historiador, mas, como aprendi ao ler Theodor Adorno, é preciso olhar para a história a partir de uma mente aberta sobre o que é o hoje. E é daqui que se lança a luz.
O teatro pós-dramático desenvolveu-se na Europa ao mesmo tempo que começava a surgir nos discursos artísticos a reflexão pós-colonial e uma ideia de multiculturalismo, o que levou a uma reconstrução do olhar, agora mais amplo.
Sim, completamente. Ao nos tornarmos conscientes desta realidade pós-colonial fomos capazes de questionar, mais do que nunca, os nossos próprios valores e os nossos valores europeus específicos.Perdemos o nosso lugar de centro do mundo e precisámos de encontrar novos modos de manter essa ilusão?
Sim, isso é, em parte, verdade. E estamos a reflectir também sobre modos de iludirmos a ilusão. Não podemos impor certos modos de pensar ao resto do mundo. Temos que pensar no modo como consideramos que essas noções são também elas úteis como conceitos para outras áreas do mundo, sem serem vistas como instrumentos que impõem novos modelos para o domínio desse mesmo mundo. Todo o teatro vive numa dialéctica da culpa, como diria Adorno. Porque não pode ser feito senão com privilégios, e usa-os como ferramentas para a emancipação de possibilidades humanas.
E questionar as noções de independência e liberdade.
Desde as tragédias gregas a Shakespeare, até ao teatro moderno, houve sempre esta problemática da liberdade. E continua. Há a acção do sujeito, mas essa acção é altamente questionada pelo grande teatro e a dialéctica contraditória na qual se baseia. A liberdade é a grande questão que assombra o teatro. E o teatro precisa de reflectir sobre isso. Não há um modo de sair dessa ambivalência. A questão está em escolher se se reflecte sobre a situação geral ou sobre o modo como isso o afecta. Um teatro que não pensa a sua própria condição e faz um espectáculo político a partir do seu problema está a fazer entretenimento. Apesar de ter simpatia por espectáculos que vivem e se sustentam num mediatismo efémero, não é essa, parece-me, a forma que o teatro tem para se desenvolver de forma produtiva.