Um "Lone Ranger" chamado DJ Shadow

Foto
"The Less You Know The Better" - sim, Shadow é crítico da "overdose" de informação dos nossos tempos

"The Less You Know The Better" não reunirá consenso.Nada nele é consensual desde "Endtroducing...", a obra-prima visionária de 1996. Ele acredita ter gravado agora alguma da melhor música que fez até hoje. Se o mundo a apreciar, tanto melhor. Se não, ele continuará. "Por vezes, temos de pensar à "Lone Ranger"", diz. Mário Lopes

Quatro álbuns em 15 anos pode não servir para fazer dele um Terrence Mallick da música, mas o carácter bissexto do seu percurso discográfico, no que aos longa-duração diz respeito, porque quanto ao resto, aos concertos, às colaborações, aos Eps, DJ Shadow mantém-se bastante ocupado, confere ao anúncio de um novo álbum uma aura de importância. Ouvimo-lo ser anunciado, recebemos em antecipação singles e Eps (aconteceu agora com "I"m excited", em que participa o britânico Afrikan Boy, e "I gotta rokk", respectivamente) e especamos. "DJ Shadow tem algo a dizer. Paremos para o ouvir".

É assim desde que "Endtroducing", a sua obra-prima e, de certa forma, a sua maldição, foi editado em 1996. O impacto desse álbum, um trabalho de cientista sonoro manipulando samples de forma brilhante, criando um novo mapa sonoro a partir de micro partículas laboriosa e criteriosamente montadas, continua a assombrar Josh Davis, o californiano que assina como DJ Shadow. Aquela música instrumental, experimental e progressista, que era toda ele futuro mas que surgia vestida, perdoem-nos a aliteração, com classe de clássico, alterou significativamente o cenário musical do seu tempo, abrindo caminho para uma nova rota na história do hip hop.

O impacto de "Endtroducing" foi tal que muitos defendem que tudo o que Shadow fez depois nasceu do desejo de frustar os que queriam vê-lo reproduzir uma e outra vez aquele momento fundador. Dez anos depois, quando editou "The Outsider", um "thumbs up" à cena "hyphy" californiana, muito funky e muito festiva, respondeu às críticas directamente: "Repetir eternamente o "Endtroducing"? Nunca fez parte do plano. Que se lixe isso. Portanto acho que é tempo de algumas pessoas decidirem se são fãs do álbum, ou do artista". Em 2011, quando "The Outsider" ganha sucessor, DJ Shadow não mudou.

"The Less You Know The Better" - o título é todo um programa, e sim, Shadow é crítico da "overdose" de informação dos nossos tempos - é um álbum diverso. Riffs hard-rock convivem com funk de bom groove e flauta cool; downtempo para piano e violoncelo surge como corolário de êxtase rítmico extraído do hip hop clássico; e o som da paranóia (com ambiente a condizer) não apaga uma envolvente luminosidade psicadélica. Não será um álbum consensual - nada é consensual em Shadow desde "Endtroducing" -, mas o seu criador acredita ter gravado alguma da melhor música que fez até hoje. Se o mundo a apreciar, tanto melhor. Mas essa não é, nunca foi, a prioridade. "Por vezes, temos de pensar à "Lone Ranger" [Mascarilha] e pôr de parte a reacção imediata em favor do longo prazo".

As Cliff Notes

Josh Davis falava com o Ípsilon desde a Irlanda, primeira paragem numa digressão que o levou a percorrer o Reino Unido na "Shadowsphere", o globo que serve agora de centro das suas actuações: actua instalado no seu interior, enquanto sobre a superfície da esfera é projectado um caleidoscópio de imagens 3D - ele sempre mostrou curiosidade pelas novas tecnologias, acontece que não recebe passivamente os efeitos do progresso tecnológico. Não é que se sinta deslocado neste tempo. É uma questão de temperamento. Ele, o amante inveterado de música que tem uma colecção de largas dezenas de milhar de discos, que passa em revista à procura do sample perfeito - para "The Less You Know..." passou meses só a ouvir e a selecionar, antes de criar o primeiro "beat" -, não tolera o que define como "conhecimento desapaixonado": "Vivemos numa era em que há demasiada informação e não me parece que tenhamos evoluído rápido o suficiente para a conseguir processar." Segundo ele, há demasiada gente a falar demasiado e demasiado rápido e a absorver a música como livro de estudo do secundário. "Nos Estados Unidos, temos umas edições para estudantes chamadas Cliff Notes. Se tiveres que estudar o "Moby Dick" ou outro clássico, recorres às Cliff Notes, que são versões resumidas e anotadas [das obras]. Hoje em dia, toda a gente parece ter uma versão Cliff Notes da música. Mas não há experiência pessoal a suportar nada daquilo, não há epifanias pessoais. Como poderia haver?", lança. "Não é possível tê-las a partir de qualquer coisa que se leu muito rápido na Wikipedia". E é por isso, e é por não querer corresponder eternamente à imagem do génio criador de um álbum só - sim, esse, "Endtroducing..." -, que DJ Shadow falou da necessidade de, por vezes, vestir a pele de "Lone Ranger".

O cowboy surgiu no seu discurso quando nos falava de Neil Young - sim, esse Neil Young -, como exemplo ético de como conduzir uma carreira. "Algo como o "Rust Never Sleeps"... Adoro a provocação que uma declaração como essa implica. Por vezes, tens que as fazer. Há um tempo para o imediato e um tempo para fazer algo que envolva todas partículas da tua vida". "The Outsider", o seu terceiro álbum, sucessor de "The Private Press", foi o imediato - apaixonou-se pelo "hyphy" que "estava a desenvolver-se nas traseiras" de sua casa e quis participar.

"The Less You Know The Better" é uma "missão diferente". É, diz, "crescer". São as partículas todas da vida de Shadow, vistas à luz do presente. "Tem muito mais beleza e luz que escuridão, mas, tal como a luz é realmente brilhante, a escuridão é decididamente negra. Todas as minhas obras de arte favoritas, quer sejam filmes, livros ou discos, têm essa identidade. O público não deve ser poupado a nenhum dos extremos".

O melómano ecléctico DJ Shadow, com o coração no hip hop e ouvidos abertos a tudo o resto que o mundo tenha para lhe oferecer; o quase quarentão (tem 39 anos) que convoca para o novo álbum o jovem electro rocker Tom Vek, os venerandos MCs Posdnuos (De La Soul) e Talib Kweli; ele que sampla raridades das mais diversas proveniências; este homem que nos diz em despedida, recuperemos, "temos que ser capazes de aceitar e reescrever as nossas ideias musicais à medida que o novo nos está a cair em cima", continua a fazer o seu caminho.

É muito provável que nunca mais repita o consenso de "Endtroducing...", mas, década e meia depois, essa não é a questão. A capa desse álbum era uma fotografia de uma loja de discos. Nela, víamos duas pessoas, vinis debaixo do braço e alheados da câmara, percorrendo prateleiras em busca de mais discos para juntar aos que carregavam. DJ Shadow continua a ser um deles. E agora tem outros discos debaixo do braço.

Ver crítica de discos págs. 28 e 29

Sugerir correcção