Corredor de choque

Há tanto tempo que não havia um Carpenter em sala que da última vez que isso aconteceu a data "11 de Setembro" só tinha um significado especial para os chilenos. Foi em Agosto de 2001 que se estreou "Fantasmas de Marte", e não fazemos a relação de maneira completamente arbitrária: é que mais o tempo passa e mais "Fantasmas de Marte" vai parecendo um filme perfeito para assinalar o fim daquele breve período em que se viveu na crença de que a História tinha "acabado", tudo ia bem, e o mundo se embalava em uníssono no louvor à nova ordem capitalista global.


Cineasta que tantas vezes filmou o horror a nascer do quotidiano, o Mal a emergir dentro da Civilização, lembramo-nos de ter pensado que era Carpenter o homem ideal para filmar o 11 de Setembro, ou o mundo saído dele. Nunca o fez: nestes dez anos, entre muitos projectos anunciados e não concretizados, limitou-se a dois (fabulosos) telefilmes ("Cigarette Burns" e "Pro-Life") que não tiveram distribuição em sala. Depois também pensámos que, no fundo, Carpenter já tinha filmado o 11 de Setembro antes de ele se ter produzido: toda a obra se funda, exactamente, na possibilidade de alguma coisa horrorosa acontecer.

Regressa em 2011 com "O Hospício", pequeno filme, "série B" à antiga (e "à antiga" quer dizer: no sentido económico do termo, questão de meios e de processos, não de emulação de supostos tiques e referências do "low budget" de antanho, que se tornou um cliché - outro remorso? - da milionária "série A" dos nossos dias). E nos corredores do "Hospício", que não são mais do que três ou quatro (dissemos: "série B" à antiga), Carpenter entrega-se a um exercício que, se não é novo nele (que muitas vezes filmou a "loucura"), continua sem perder nada, e se calhar até ganhou, das suas perturbantes ressonâncias: a paranóia, a desagregação da personalidade, a fronteira difusa entre uma percepção distorcida da realidade e a percepção de uma realidade distorcida (ou seja, a diferença entre "imaginar" e "ver", e a questão, que noutros filmes de Carpenter já foi política, no mínimo mais directamente do que aqui, de quem tem o poder para decidir o que é "imaginação" e o que é "visão"). E de facto, em "O Hospício", ninguém pode estar muito seguro do que vê nem do que imagina, nem as personagens (várias raparigas traumatizadas, ou pelo menos assim pensamos durante boa parte do tempo, que são várias raparigas) nem o espectador, "jogo" que é adensado pelo constante trabalho de Carpenter sobre a subjectividade (os muitos planos "na primeira pessoa" que varrem os corredores do hospício), tanto mais perverso quanto toda a possível subjectividade em "O Hospício" está, por condição, cindida.

Ao fundo, neste ambiente concentracionário impecavelmente descrito, espreita o velho Fuller do "Shock Corridor", como já espreitava no último Scorsese, "Shutter Island", de que "O Hospício" parece uma versão, digamos, menor e melhor, mais discreta e mais exacta (os críticos americanos gostam muito de falar sobre "a decadência de Carpenter", mas de certeza que não falam com o mesmo à vontade da decadência, essa sim real e muito grave, de Scorsese).

"O Hospício" nunca integrará uma lista dos dez melhores filmes de Carpenter, mas é suficientemente inteligente, quer no que tem de mais profundo quer no que tem de mais superficial (a maneira como Carpenter tenta jogar com alguns códigos e procedimentos do filme de terror contemporâneo), para ser um dos filmes americanos importantes de 2011. E, por uma vez, até um final "em pescadinha" (o mais irritante cliché do mau terror) parece fazer um sentido especial: porque é evidente que esta história nunca estará concluida, porque nem a ciência nem qualquer outra autoridade (inclusive a autoridade política, que é o grande "não-dito" de "O Hospício") terão alguma vez poder para decretar a definitiva resolução de coisa alguma, e porque, como a história dos últimos dez anos bem ensinou, é sempre possível que salte um monstro do mesmo espelho que vemos todos os dias.

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