O artista plástico que já é um cineasta
Steve McQueen, artista plástico, levou a Veneza o filme mais falado da competição. Pode-se falar de Shame falando de sexo aos números. O filme está noutro lugar. E McQueen? Quer ter a liberdade do amador
Steve McQueen queria pintar o cabelo de amarelo. Para ele não ser ele. Não era difícil ser o artista plástico que fazia filmes. Agora é. "Toda a minha vida quis experimentar com as histórias, com o contar uma história. Mas por que é que há tantos "artistas visuais" a quererem fazer filmes? Não tenho ideia. Não me perguntem. Porque o cinema é uma coisa muito atraente?" - num aparte: "Até Madonna faz filmes".
"Mas não me perguntem. Nesta altura gostava de pintar o cabelo de amarelo."
Aqui está ele, sem cabelo amarelo, volume negro. As palavras dão cambalhotas... "Esperem, esperem, vou chegar lá, hei-de conseguir articular correctamente..."
Steve Rodney McQueen, de 42 anos, vencedor do Prémio Turner, officer of the Order of the British Empire e commander of the Order of the British Empire pelos serviços prestados às artes visuais, vencedor da Câmara de Ouro do Festival de Cinema de Cannes (Fome, 2008), encontra-se com os jornalistas no Festival de Veneza onde Shame (competição) é, até agora, o filme mais falado pela imprensa. Às vezes com os mais velhos títulos do mundo, como o "novanta minuti di nudi e sesso" do La Reppublica.
O inventário ou a contabilidade podem estar correctos: é a história de um sex-addict, Brandon (Michael Fassbender), na cidade do fácil acesso e do excesso, Nova Iorque. Há três anos, McQueen encontrou-se com a sua co-argumentista, Abi Morgan, num hotel em Nova Iorque, o Standard, o tal que pede aos clientes para se absterem de estarem nus perto das paredes de vidro dos quartos para não darem espectáculo para o Meat Packing District, lá em baixo. Começou por ser uma conversa sobre sexo e Internet, durou três horas, nasceu a ideia para o filme.
"Foi há três anos, era um assunto que ainda não estava em voga." Seguiu-se uma fase de pesquisa longa, conversa com psicólogos e homens cuja vida se consome nos sites de pornografia, one night stands, clubes de sexo - e, mais individualmente, nas casas de banho do escritório durante as pausas para café. "Começámos a ouvir os testemunhos e a questionar aquilo que pensamos. Estas pessoas entram numa verdadeira corrida sexual durante o dia. E correm riscos enormes nos encontros. No fim, assenta sobre eles o peso da vergonha. Foi o denominador comum das conversas com os entrevistados: a vergonha. E para fugirem a esse sentimento, fazem tudo outra vez."
Para voltar aos "noventa minutos de nudez e sexo": a conta talvez esteja certa. Michael Fassbender teve de emagrecer para Fome mas a nudez e o sexo de Shame foram-lhe mais desconfortáveis. Está em todas as cenas e todo nu. Terá sido a mãe a encorajá-lo a aceitar, dizendo-lhe que não devem ser só as mulheres a aparecerem nuas nos filmes. E fê-lo porque a proposta era de McQueen - a admiração mútua é assumida pelos dois como uma love story. Mas como todas as experiências desconfortáveis, conta McQueen, que queria filmar o sexo não de forma ilustrativa ("queria estar lá"), a rodagem foi "lots of fun" - este raciocínio tem um corolário, é o de que o plateau de uma comédia ligeira deve ser coisa infernal.
Voltando aos números de sexo: o Standard até é utilizado por Brandon e por uma parceira, esborrachando-se os dois de encontro aos vidros para glória dos mirones. Há sexo a três. O telefone sempre a tocar (é a irmã), mas Brandon a recusar sempre qualquer hipótese de toque. Numa espiral de mortificação, masoquismo e alienação, a personagem aventura-se pelos corredores de uma discoteca gay (o momento Irreversível de Shame) - já agora, jornalistas americanos comentam: esta Nova Iorque, na verdade, não existe, é um fantasma dos anos 80, o que pode fazer sentido porque McQueen conhece a cidade desde "1977, o ano em que Elvis morreu".
"O vício do sexo é como o alcoolismo. Esperem aí... Tal como no alcoolismo, o sexo... Ajudem-me, vou conseguir dizer isto direito... no sentido em que o vício nada tem a ver com o sexo, tal como no caso do alcoolismo o vício nada tem a ver com a sede", diz, finalmente. Shame também escapa ao que é apenas figurado e elencado. Um filme de exposições tão frontais é um filme tão interessado na viagem interior das personagens. Como o título: Shame/ Vergonha. Nada no filme o explica. Das conversas sobre a "vergonha" não sobra nada para algum diálogo no filme. E, no entanto, está no seu interior.
Personagens: há Brandon, há a irmã, Sissy (Carry Mulligan). Ela aparece no apartamento dele, e a sua dependência de intimidade vai começar a perturbar os sons de prazer que saem do computador dele. Há um momento, quando Sissy canta num clube nocturno de Nova Iorque, New York, New York em registo blues... (McQueen diz que a canção tem a marca histriónica de Liza Minnelli mas onde se canta "These vagabond shoes/Are longing to stray" não pode ser coisa eufórica). Num outro filme essa sequência teria duração funcional: alguns acordes, eventualmente o refrão, e a seguir corte... McQueen faz-nos ouvir a interpretação toda. E é a duração da sequência que "fala" pela personagem. Fala pelas personagens, pela relação entre os dois irmãos, por um passado que nunca é explicado ou contado, a não ser a misteriosa afirmação dela: "Não somos más pessoas, temos é um passado mau." Não é preciso mais, dirá McQueen. "Todos nós temos um passado. É por isso que fazemos as coisas que fazemos. Quis, com esta sequência sem corte, que dura a duração da canção, afectar emocionalmente as pessoas. De forma abstracta. Sem nada de concreto, mas reconhecível por todos."
Há outros planos assim, que nos filmes costumam ser meros pontos de passagem, e que McQueen utiliza em extensão e profundidade. Havia em Fome qualquer coisa de atordoante à superfície que não deixava perceber que cinema estava no interior. O formalismo ainda era o da instalação. Algo se interioriza em Shame. Há cineasta.
E este cineasta autoriza que se veja Shame como o inverso de Fome. Havia uma prisão no filme anterior, alguém que utilizava o corpo (Bobby Sands, o IRA) para uma causa; agora há um espaço de liberdade e de escolhas múltiplas, e alguém (Brandon) que "pensa só em si e não nos outros." Vai haver continuação para esta exploração do corpo e das suas políticas. Será a história verídica de Solomon Northup, um mulato que nasceu livre mas foi escravizado, em 1841, levado para Washington (onde a escravatura ainda era admitida) na promessa de um trabalho bem pago num circo. De Washington para os campos de algodão da Luisiana foi um passo. Apenas conheceu a liberdade em 1853, quando um canadiano abolicionista avisou a mulher de Northup do seu paradeiro e da forma desumana como era tratado. A história só terminou quando os tribunais ordenaram a sua libertação. Solomon Northup escreveu sobre essas experiências em Twelve Years a Slave (à partida, o título do filme, uma produção da Plan B de Brad Pitt).
"Toda a gente me dizia que eu não devia fazer um filme como Shame. Por causa do tema. Hoje, ao ver as reacções das pessoas, só posso confirmar que há um público à espera de filmes como este. Como é que podemos competir com a TV e com os jogos de vídeo? Só fazendo filmes que levem as pessoas a colocar questões. Dizem-me que sou moralista. Mas não somos todos? Sou. No sentido em que quero reflectir sobre o que se passa. Mas não sou um santo. É isso que o cinema deve ser. Tem que ser essencial. Tem de ser uma necessidade. É o que eu quero fazer."
Inspirações? A pintura, sempre. Goya. "Para fazer as pessoas olharem. Criticaram-me por supostamente fazer bonito com coisas feias, em Hunger. Não era para fazer bonito. Era para obrigar as pessoas a olhar.
Shame é o filme de um cineasta mais do que Fome, que ainda era o filme de um "artista visual" a trabalhar no cinema? "Não sei. Este também é um primeiro filme. Todos os meus filmes serão primeiros filmes. Quero ser sempre um pouco naïf. Um amador. Não é falsa modéstia. Não quero ser filmmaker. Quero ter a liberdade de ser amador." O cabelo continuava sem ponta de amarelo...