O Ground Zero agora é uma tenda branca
A primeira página do PÚBLICO de 11 de Setembro de 2001 tinha temas bem diferentes dos que no dia seguinte fariam a manchete: “O atentado que mudou o mundo”, escreveu-se então, em letras brancas, por cima de uma única grande fotografia que mostrava o momento em que desabava uma das torres do World Trade Center, em Nova Iorque.
Nesse dia, os 16 hectares de terreno ocupados pelo antigo World Trade Center mudaram de aspecto e de nome. Passaram a chamar-lhe Ground Zero.
Em termos militares, esta expressão terá sido usada pela primeira vez na imprensa norte-americana pelo New York Times, em 1946. O jornal aludia nessa altura aos locais onde foram detonadas as duas bombas atómicas que os EUA tinham lançado, um ano antes, sobre as cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki. Uma busca online permite encontrar outras formas de definir Ground Zero: ponto de partida, alvo de um míssil ou bomba, centro nevrálgico de uma mudança brusca.
Dez anos depois dos ataques que mataram quase 3000 pessoas no World Trade Center de Nova Iorque, no Pentágono em Washington e num terreno rural em Shanksville, estado da Pensilvânia , o verdadeiro Ground Zero nova-iorquino mudou de sítio. Agora fica num local muito mais pequeno, situado na zona leste de Manhattan, entre as ruas 29 e 30, colado à FDR Drive e perto do hospital de Bellevue.
Nova Iorque tem muitos edifícios marcantes, mas se deitassem a cidade no divã do psicanalista, um dos temas de conversa seria esta tenda, onde estão depositados milhares de restos humanos pertencentes aos corpos dos que morreram a 11 de Setembro de 2001 e nunca foram identificados. Não é uma zona de romaria, ao contrário do local onde as torres caíram.
A tenda foi erguida logo a seguir ao ataque. Era para ser uma morgue provisória, onde especialistas forenses pudessem trabalhar. Uma década depois, a tenda ali continua, com 13.790 restos humanos acondicionados no vácuo e no frio. São na maioria pedaços que nunca foram identificados, nem com recurso a testes de DNA. Outros foram atribuídos a vítimas, mas as respectivas famílias nunca os reclamaram porque, segundo o New York Times, os funerais desses mortos já se tinham realizado e ninguém quis reviver a perda de alguém tão chegado.
Ontem, o PÚBLICO seguiu na direcção contrária dos que decidiram aproveitar um dia quente e húmido para visitarem o World Trade Center, que está a renascer com novos edifícios para escritórios, um memorial que será inaugurado no próximo domingo (mas só abre ao público na segunda-feira, 12 de Setembro) e uma estação de transportes, desenhada por Santiago Calatrava – o mesmo autor da Gare do Oriente, no Parque das Nações, em Lisboa.
Do World Trade Center segue-se para nordeste para se chegar à tenda, que está protegida por uma vedação e tem os portões fechados com placas de aviso de que o acesso só é permitido a pessoal autorizado. O movimento é nulo. Às três da tarde de ontem, via-se apenas um polícia, olhando de dentro para fora, e uns pombos que picavam o passeio, mesmo debaixo de uma das câmaras de videovigilância que estão apontadas para a frente norte da tenda.
O espaço foi importante logo a seguir ao 11 de Setembro. Por toda a cidade apareceram folhas com rostos e nomes de gente que estava desaparecida. Cartazes com nomes, símbolos do desespero de pessoas que tinham perdido o rasto de familiares, de amigos ou colegas. Dez anos depois, essas folhas desapareceram das paredes de Nova Iorque, das paragens de autocarro, do metro e dos cais de embarque dos barcos.
Porém, há pelo menos um local onde essas folhas continuam à vista. É ali ao lado daquela tenda branca, cujo corredor de acesso ainda tem folhas coladas à parede, folhas com rostos impressos, um nome e contactos. São meia dúzia, se tanto, amareladas pelo sol, num papel tão baço que quase não permite ler o que nelas está escrito. São pequenos sinais de uma memória congelada, como os restos mortais que estão dentro nos contentores, dentro daquela tenda.
Hoje, dia de feriado nacional nos Estados Unidos (os norte-americanos celebram o Dia do Trabalhador com o seu Labor Day), o cenário junto ao World Trade Center e à volta da tenda não deve ser muito diferente do que se viu ontem. No primeiro sítio, vai repetir-se a romaria de turistas, alguns dos quais poderão ter acompanhado o desenrolar do ataque pela televisão, em directo, e que agora até têm uma loja onde podem comprar souvenirs relacionados com o que viram na TV – t-shirts, casacos e demais roupa com as iniciais da polícia de Nova Iorque, canecas com as torres gémeas ou com os dois feixes de luz que substituem as torres caídas, ímans, livros ou postais, entre outros artefactos. A receita deste negócio reverte para o memorial em homenagem às 2753 pessoas que ali morreram, dos quais 1121 continuam por identificar.
Pelo contrário, à volta da tenda branca – o segundo Ground Zero desses 1121 desaparecidos – não haverá ninguém. Porém, no próximo domingo, as coisas podem mudar ligeiramente de figura. Espera-se que muitos dos que nunca chegaram a reaver os corpos dos seus familiares passem pela tenda, cujo interior foi renovado com a criação de uma pequena capela. Poderá produzir-se uma pequena enchente – e nem será preciso grande afluência para tal, dada a exiguidade do espaço.
Já o World Trade Center ficará mais vazio, porque o local será fechado ao público. Na cerimónia de inauguração do memorial – que deverá receber no futuro os restos mortais que por agora ainda estão na tenda – serão admitidos apenas familiares dos que ali perderam a vida, a imprensa credenciada para um momento em que participará também o Presidente Barack Obama. As ruas em volta serão fechadas no dia em que a nação norte-americana e o mundo voltarem a abrir as memórias desse dia que ficou para a história como um momento de mudança.