Foi você que pediu uma garagem para coches antigos?
Belém, espaço simbólico da lusitanidade, é caracterizado de forma única pela luminosidade do Tejo-Oceano, pelo tom pastel do seu edificado vernáculo e erudito e pelo simbolismo da sua vegetação arquetipamente mediterrânica.
Este espaço de identidade foi criado por várias gerações, num processo acumulativo, baseado num consenso de leitura, apreciação e reconhecimento da sua importância. Na Praça Afonso de Albuquerque, a elegância apropriada do estilo "Seize" do Picadeiro Real e a erudição neoclássica dos seus interiores constituem o contexto perfeito para a apreciação da internacionalmente reconhecida colecção de coches.O êxito do museu ilustra um produto cultural consolidado, com desafios de conservação, mas perfeito no seu conjunto.Num processo apressado, sem concurso público, decidido por um ministro pouco económico (mais do que três dezenas de milhões) determinado a deixar marca de regime através da afirmação pelo contraste e ruptura, este projecto deixa-nos preocupados.
Acima de tudo porque é um símbolo de um despesismo inconsciente e irresponsável, destruidor de um equilíbrio perfeito já existente e criador de novas despesas num futuro muito incerto de penúria e crise no universo do património cultural e museus.
Além disso, ao o compararmos na mesma zona com o Centro Cultural de Belém, concluimos que o projecto do mesmo revelava preocupações de contextualização arquitectónica com a envolvente, esta já determinada na Exposição do Mundo Português em 1940. Volumetrias sintonizadas com a massa dos Jerónimos, jardins suspensos para usufruto tanto do horizonte natural como simbólico, contextualização cuidada dos materiais, linguagem arquitectónica intemporal, monumentalidade apropriada à gravitas e "tectónica" da zona. Além disso, apresentava um programa de funções e de apropriação do espaço de usufruto quotidiano muito claro na sua relação com a arquitectura. Ora o novo Museu dos Coches, apesar das suas promessas de valorização urbana e pretendidas garantias de vivência turística (elevação do solo); apesar da sua pretensão de monumentalidade minimalista, capaz de valorizar através da imensidão abstracta e branca a exposição de objectos de "ourivesaria" movíveis (coches), deixa-nos muito apreensivos. Porque, apesar de todos os argumentos, é um projecto formalista, dirigido fundamentalmente à forma e estilo do objecto arquitectónico, ao qual a função tem que se adaptar, afirmando-se este objecto pela ruptura, tanto em forma como em materiais.Enfim, receita apropriada e aliciante para políticos que desejam deixar marca dinástica de regime, mas altamente preocupante quando falamos do Genius Loci de Belém e das suas características cuidadosamente consolidadas.O projecto lembra-nos um modelo de garagem com rampas, saído de uma miniatura do nosso quarto de brincadeiras, ou um espaço caricatural de um filme de Jacques Tati.
A imensidão branca e clínica dos seus espaços interiores (salas ou hangares [?] com 130 metros por 20 e oito de altura) vai obrigar ao restauro exaustivo de todos os objectos, expostos agora a um escrutínio detalhado e implacável. Os seus espaços ("praça" e rampas) exteriores correm o risco de confirmarem a sua vocação de "garagem", ou no place vazio, inóspito e sujeito às correntes de ar - enquanto a elegância perfeita e erudita do picadeiro fica condenada à subavaliação e subutilização.Um projecto desnecessário, como até António Costa reconheceu publicamente. No entanto, a Associação de Arquitectos, tal como no Largo do Rato, veio apoiar publicamente com 200 assinaturas este projecto, apesar de ausência de qualquer concurso.Continua a ser a associação, tal como os seus estatutos o afirmam, uma instituição de utilidade pública, ou transformou-se descaradamente num clube de interesses corporativos?
Historiador de Arquitectura