Uma profusão de espelhos

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James Jesus Angleton, o druida da contraes-pionagem, quase levou a CIA à ruína com a sua paranóia: como muitos dos pais fundadores da agência, estudou literatura em Yale

As mais alucinadas passagens dos romances de conspiração empalidecem perante as proezas das gárgulas que povoam os primórdios dos serviços de informação, especialmente na América. A narrativa assassina os significados em actos de cognicídio, guarda os cadáveres na cave e os inquéritos para depois: exactamente o que acontece no maravilhoso mundo da espionagem real.

Como géneros literários preferenciais para interrogar os mecanismos da paranóia individual e institucional, os romances de conspiração e os romances de espionagem (duas formas distintas, embora existam híbridos) padecem de uma falha aparentemente insanável: estão sempre um passo atrás, ou dez à frente, da realidade que tentam dramatizar.

O romance de espionagem raramente conseguiu encontrar um ponto de equilíbrio entre "frisson" e plausibilidade - entre a romantização exacerbada da actividade, e o antídoto contra essa mesma romantização, que, na minuta estabelecida por Le Carré, retrata o agente secreto como um rato de gabinete condenado a uma interminável e desglamourizada pré-reforma da função pública.

Já o tijolo conspirativo pós-moderno (que floresceu na década de 60 e prosperou na de 70) tende para o exagero, a caricatura e o nervosismo epistemológico. É possível especular sobre as razões. Como Lei Geral (e extremamente falível) da ficção, pode dizer-se que a paranóia costuma produzir boa prosa, mas romances instáveis. A instabilidade é uma consequência directa do impulso. Qualquer narrativa, mesmo que não almeje a linearidade, procura encadeamento, um esforço para converter coexistências dispersas numa ordem legível e para transformar segredos em revelações. Mas a mente paranóica não admite sequer a ilusão de continuidade; a coerência que deseja vem com distorções de base, forjadas na visão de um mundo de signos e símbolos em que cada elemento é potencialmente articulável com todos os outros e a solução é perpetuamente adiada. A agregação de conhecimento é ao mesmo tempo cumulativa e estéril: não existe a mais remota possibilidade de um "e depois", ou de um "portanto", ou muito menos de um "porquê"; existe apenas "mais" - e o "mais" é tudo aquilo que ainda não sabemos.

Esta credulidade mascarada de cepticismo radical (que Chesterton definiu como a incapacidade "de encontrar um chão no Universo") tem o condão de infectar qualquer tentativa de a representar literariamente. Até as obras-primas do sub-género paranóico ("Gravity"s Rainbow", "Underworld", "Illuminatus!", "Mumbo Jumbo", "Catch-22") são vulneráveis à acusação de serem repositórios de prosa magnífica que não convergem em lado nenhum. Os enredos são tão complexos que deixam de ser enredos; propõem-se tantas possibilidades que estas deixam de ser possíveis; a narrativa assassina os seus significados em actos de cognicídio, guarda os cadáveres na cave e os inquéritos para depois.

Que é, na verdade, o que acontece no maravilhoso mundo da espionagem real. As mais alucinadas passagens dos romances de conspiração empalidecem perante as proezas das gárgulas proto-desconstrucionistas que povoam os primórdios dos serviços de informação, especialmente na América. Figuras como James Jesus Angleton, por exemplo, o druida da contraespionagem, cuja paranóia quase levou a CIA à ruína. Como muitos dos pais fundadores da agência, Angleton era um antigo estudante de literatura de Yale. Na sua juventude editou uma revista modernista ("Furioso"), publicou poemas de Ezra Pound e E. E. Cummings, e manteve durante muitos anos correspondência com T. S. Eliot, de quem viria a apropriar um verso ("multiply variety/ in a wilderness of mirrors") para estruturar a sua macro-teoria sobre a intrincada relação de forças entre CIA e KGB durante a Guerra Fria. Incapaz de adivinhar a traição do agente duplo soviético Kim Philby, Angleton passou o resto da carreira numa fanática cruzada de compensação, vasculhando a burocracia governamental de alto a baixo à procura de infiltrações e esqueletos imaginários. Na sua obsessão com significados ocultos, na sua intransigente recusa em aceitar as superfícies visíveis do "texto", limitou-se a pôr em prática os princípios de crítica formalista que aprendera nos seminários de William Empson.

Arrisquemos outra Lei Geral extremamente falível: a paranóia é mais nociva e contraproducente precisamente nas actividades que a justificam. Póquer, espionagem, ciúmes conjugais, crítica literária: qualquer situação que exija a manutenção de um estado de vigilância e suspeita permanente sobre significados ambíguos tende a engendrar uma cultura esotérica, que resvala inevitavelmente para o logro, a duplicidade e a complexidade irrelevante. A uma escala institucional, o que acontece é ainda mais insidioso: como nas descentradas narrativas paranóicas, a intrincada teia de desinformação cria uma burocracia subterrânea que adquire autonomia e escapa ao controlo dos seus criadores e executores. A actividade transforma-se num processo puro e descontextualizado. O espião segue determinados procedimentos apenas porque esses sãos os procedimentos que um espião deve seguir: refazer a sua identidade, evadir ameaças inexistentes, descodificar mensagens sem proveniência, sobrevalorizar qualquer indício arbitrário; uma sequência de manobras exaustas que configuram um exercício de futilidade auto-sustentada.

Os dois romances que melhor conseguiram assimilar e dramatizar todas estas tendências e transcender o seu género são talvez "Libra", de Don Delillo, e "O Fantasma de Harlot", de Norman Mailer. Em "Libra", Delilo inverte a lógica habitual do romance de conspiração, e postula que John Kennedy, na verdade, foi assassinado por uma coincidência: a "teologia de segredos" da CIA produziu inadvertidamente a sua heresia privada, e um plano fictício foi tornado real à força de acasos e palavras-mágicas, como um golem. Em "O Fantasma de Harlot", na figura de Montague, Mailer criou a mais desoladamente plausível encarnação literária de alguém totalmente manietado pelos seus vícios profissionais: outro modernista "manqué" (inspirado em Angleton), um super-espião decadente que racionaliza a traição em serenatas dementes ("as mentiras desenvolvem estruturas tão esteticamente valiosas como as puras filigranas da verdade") e que acaba por encarar tudo à luz das suas perversões - nas últimas páginas do romance, ouvimo-lo a defender com tenacidade a teoria de que Deus criou a Evolução como um estratagema de camuflagem, a mais elaborada campanha de contra-informação do Universo.

É isto que acontece à interpretação quando a deixam sair das suas arenas inofensivas. E é também o argumento mais persuasivo para nunca deixar os críticos literários no desemprego.

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