Uma profusão de espelhos
As mais alucinadas passagens dos romances de conspiração empalidecem perante as proezas das gárgulas que povoam os primórdios dos serviços de informação, especialmente na América. A narrativa assassina os significados em actos de cognicídio, guarda os cadáveres na cave e os inquéritos para depois: exactamente o que acontece no maravilhoso mundo da espionagem real.
Como géneros literários preferenciais para interrogar os mecanismos da paranóia individual e institucional, os romances de conspiração e os romances de espionagem (duas formas distintas, embora existam híbridos) padecem de uma falha aparentemente insanável: estão sempre um passo atrás, ou dez à frente, da realidade que tentam dramatizar.
O romance de espionagem raramente conseguiu encontrar um ponto de equilíbrio entre "frisson" e plausibilidade - entre a romantização exacerbada da actividade, e o antídoto contra essa mesma romantização, que, na minuta estabelecida por Le Carré, retrata o agente secreto como um rato de gabinete condenado a uma interminável e desglamourizada pré-reforma da função pública.
Já o tijolo conspirativo pós-moderno (que floresceu na década de 60 e prosperou na de 70) tende para o exagero, a caricatura e o nervosismo epistemológico. É possível especular sobre as razões. Como Lei Geral (e extremamente falível) da ficção, pode dizer-se que a paranóia costuma produzir boa prosa, mas romances instáveis. A instabilidade é uma consequência directa do impulso. Qualquer narrativa, mesmo que não almeje a linearidade, procura encadeamento, um esforço para converter coexistências dispersas numa ordem legível e para transformar segredos em revelações. Mas a mente paranóica não admite sequer a ilusão de continuidade; a coerência que deseja vem com distorções de base, forjadas na visão de um mundo de signos e símbolos em que cada elemento é potencialmente articulável com todos os outros e a solução é perpetuamente adiada. A agregação de conhecimento é ao mesmo tempo cumulativa e estéril: não existe a mais remota possibilidade de um "e depois", ou de um "portanto", ou muito menos de um "porquê"; existe apenas "mais" - e o "mais" é tudo aquilo que ainda não sabemos.
Esta credulidade mascarada de cepticismo radical (que Chesterton definiu como a incapacidade "de encontrar um chão no Universo") tem o condão de infectar qualquer tentativa de a representar literariamente. Até as obras-primas do sub-género paranóico ("Gravity"s Rainbow", "Underworld", "Illuminatus!", "Mumbo Jumbo", "Catch-22") são vulneráveis à acusação de serem repositórios de prosa magnífica que não convergem em lado nenhum. Os enredos são tão complexos que deixam de ser enredos; propõem-se tantas possibilidades que estas deixam de ser possíveis; a narrativa assassina os seus significados em actos de cognicídio, guarda os cadáveres na cave e os inquéritos para depois.
Que é, na verdade, o que acontece no maravilhoso mundo da espionagem real. As mais alucinadas passagens dos romances de conspiração empalidecem perante as proezas das gárgulas proto-desconstrucionistas que povoam os primórdios dos serviços de informação, especialmente na América. Figuras como James Jesus Angleton, por exemplo, o druida da contraespionagem, cuja paranóia quase levou a CIA à ruína. Como muitos dos pais fundadores da agência, Angleton era um antigo estudante de literatura de Yale. Na sua juventude editou uma revista modernista ("Furioso"), publicou poemas de Ezra Pound e E. E. Cummings, e manteve durante muitos anos correspondência com T. S. Eliot, de quem viria a apropriar um verso ("multiply variety/ in a wilderness of mirrors") para estruturar a sua macro-teoria sobre a intrincada relação de forças entre CIA e KGB durante a Guerra Fria. Incapaz de adivinhar a traição do agente duplo soviético Kim Philby, Angleton passou o resto da carreira numa fanática cruzada de compensação, vasculhando a burocracia governamental de alto a baixo à procura de infiltrações e esqueletos imaginários. Na sua obsessão com significados ocultos, na sua intransigente recusa em aceitar as superfícies visíveis do "texto", limitou-se a pôr em prática os princípios de crítica formalista que aprendera nos seminários de William Empson.
Arrisquemos outra Lei Geral extremamente falível: a paranóia é mais nociva e contraproducente precisamente nas actividades que a justificam. Póquer, espionagem, ciúmes conjugais, crítica literária: qualquer situação que exija a manutenção de um estado de vigilância e suspeita permanente sobre significados ambíguos tende a engendrar uma cultura esotérica, que resvala inevitavelmente para o logro, a duplicidade e a complexidade irrelevante. A uma escala institucional, o que acontece é ainda mais insidioso: como nas descentradas narrativas paranóicas, a intrincada teia de desinformação cria uma burocracia subterrânea que adquire autonomia e escapa ao controlo dos seus criadores e executores. A actividade transforma-se num processo puro e descontextualizado. O espião segue determinados procedimentos apenas porque esses sãos os procedimentos que um espião deve seguir: refazer a sua identidade, evadir ameaças inexistentes, descodificar mensagens sem proveniência, sobrevalorizar qualquer indício arbitrário; uma sequência de manobras exaustas que configuram um exercício de futilidade auto-sustentada.
Os dois romances que melhor conseguiram assimilar e dramatizar todas estas tendências e transcender o seu género são talvez "Libra", de Don Delillo, e "O Fantasma de Harlot", de Norman Mailer. Em "Libra", Delilo inverte a lógica habitual do romance de conspiração, e postula que John Kennedy, na verdade, foi assassinado por uma coincidência: a "teologia de segredos" da CIA produziu inadvertidamente a sua heresia privada, e um plano fictício foi tornado real à força de acasos e palavras-mágicas, como um golem. Em "O Fantasma de Harlot", na figura de Montague, Mailer criou a mais desoladamente plausível encarnação literária de alguém totalmente manietado pelos seus vícios profissionais: outro modernista "manqué" (inspirado em Angleton), um super-espião decadente que racionaliza a traição em serenatas dementes ("as mentiras desenvolvem estruturas tão esteticamente valiosas como as puras filigranas da verdade") e que acaba por encarar tudo à luz das suas perversões - nas últimas páginas do romance, ouvimo-lo a defender com tenacidade a teoria de que Deus criou a Evolução como um estratagema de camuflagem, a mais elaborada campanha de contra-informação do Universo.
É isto que acontece à interpretação quando a deixam sair das suas arenas inofensivas. E é também o argumento mais persuasivo para nunca deixar os críticos literários no desemprego.