Este edifício da Mouraria poderá vir a ser um manifesto pela reabilitação urbana

Foto
O edifício, que do lado de fora parece devoluto, fica num beco de escadinhas interrompidas por uma paredeFilipa Bolotinha (à esquerda), Nuno Franco e Ana Jara, na sala onde decorrerão aulas e outras actividadesNo pátio agora vazio haverá uma esplanada. O objectivo é abrir o edifício à população Rui GaudÊnciO

As obras no número 8 do Beco do Rosendo, no coração da Lisboa antiga, são encaradas como um gesto para tentar melhorar, pela arquitectura, um edifício, um bairro e as relações da população com o espaço urbano

Num beco perdido na Mouraria há um edifício igual a tantos outros deste bairro histórtico de Lisboa. Pareceria devoluto, não fosse o aviso de que ali está instalada a Associação Renovar a Mouraria. Mas é este prédio, quase invisível numa zona onde as casas degradadas e abandonadas não faltam, que vai dar corpo, pelas mãos da associação e do atelier de arquitectura Artéria, a um projecto que quer - dizem os seus promotores - pôr a reabilitação urbana na agenda do bairro, num "gesto colectivo que pretende transformar, a partir do projecto arquitectónico, o bairro, o edifício e as relações da população com o espaço urbano". Este é o Edifício-Manifesto, no Beco do Rosendo.

Encaixado como uma peça de lego num beco de escadinhas interrompidas por uma parede, para Ana Jara, arquitecta e coordenadora do projecto, é um "edifício banal" e por isso perfeito para o manifesto que a Artéria tinha na gaveta. Foi fábrica de colchões nos anos 1920, há pouco tempo era atelier de uma artista plástica. Agora está arrendado pela Câmara de Lisboa à associação, que decidiu fazer obras para que possa transformar-se num espaço comunitário - num bairro em que, segundo Filipa Bolotinha, da direcção da Renovar a Mouraria, as pessoas interagem pouco.

Ana Jara recebe o PÚBLICO na sala que acolherá diversas actividades organizadas pela associação e terá um gabinete de apoio à população. Aponta para um gráfico que tem usado várias vezes na defesa da reabilitação urbana e que ajuda a explicar como é que um país chega a "este estado" e que mostra "o que falta fazer e o que não foi feito". Em Portugal, o segmento da reabilitação ocupa apenas seis por cento do mercado da construção. Um número muito abaixo da média europeia, situada nos 37 por cento. Nalguns países representa quase metade, em Espanha ultrapassa os 20 por cento. Esta falta de investimento não tem a ver com a escassez de edifícios a precisar de obras, já que perto de 40 por cento dos prédios do país estão nesta situação.

Um grito pela mudança

"Fala-se muito em reabilitação, mas depois nunca se vê nada", diz Ana. Na Mouraria, identificada como um dos bairros de intervenção prioritária do Programa Local de Habitação (PLH) da Câmara de Lisboa, esta questão assume proporções bem maiores. Na freguesia de São Cristóvão e São Lourenço, 60 por cento dos imóveis necessitavam em 2001 (dados dos Censos mais recentes para este indicador) de reparações. No Socorro, a outra freguesia que o bairro abrange, eram 80 por cento.

Este projecto nasce, por isso, num bairro "cheio de nãos", em que, conta Filipa Bolotinha, a aspiração de muitos dos jovens é conseguir sair, ir viver para os arredores de Lisboa. "O nosso manifesto é uma obra", salienta Ana Jara. Em condições "muito básicas": a intervenção, que começa em Setembro e tem duração prevista de nove meses, será "pontual", "mantendo o existente e recorrendo aos recursos existentes sempre que possível".

Foi, aliás, encomendado à Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa um estudo sobre o impacto económico e ambiental da obra, porque o objectivo é que este seja um projecto "ecologicamente sustentado, economicamente viável, socialmente justo e culturalmente diverso".

Para além disso, o orçamento é limitado: 150.000 euros, entre materiais (todos oferecidos por marcas portuguesas) e mão-de-obra. O projecto recebeu um financiamento de 50.000 euros do PLH. Com este manifesto, a Artéria também quer mostrar que, ao contrário da ideia que se criou, reabilitar não é necessariamente mais caro do que construir novo. "Em edifícios como este, num estado razoável, vamos ainda a tempo de intervir sem gastar tanto dinheiro como se construíssemos de novo", acredita Ana Jara, frisando este projecto-piloto servirá para chegar a conclusões mais claras sobre estas questões.

Educar para o espaço

"Reabilitar não é só limpar a cara a um edifício e fazer obras. É pôr as pessoas a pensar em tudo o que isto implica", porque a reabilitação não funciona sem interacção. "Estamos fartos de que se façam obras e as pessoas não percebam que é para elas", critica a arquitecta.

Durante os nove meses de obra, as crianças das escolas da Mouraria serão envolvidas no projecto, através do serviço Edifício-Manifesto Educativo. "É uma tentativa de envolver as pessoas no processo e fazer com que respeitem mais a cidade", explica Lucinda Correia, também arquitecta, que, com o actor e arquitecto José Mateus, orientará o trabalho.

"Isto será também uma forma de levar às pessoas do bairro coisas a que, de outra forma, elas não teriam acesso, refere Filipa Bolotinha. "As pessoas têm de perceber o que é que se está a fazer e o que é que significa." Até porque, frisa o presidente da Associação Renovar a Mouraria, Nuno Franco, esta "é a futura casa comunitária do bairro".

O primeiro andar servirá para a realização de actividades com a população, o rés-do-chão terá uma cafetaria, que facilitará a abertura do edifício à vizinhança, e as águas-furtadas serão aumentadas para servirem de escritório à associação - que conta com o apoio de fundos europeus - e de redacção ao jornal trimestal do bairro, o Rosa Maria. O jornal já tem dois números editados e distribuídos gratuitamente pela Renovar a Mouraria.

O serviço educativo englobará várias actividades com crianças do primeiro e do segundo ciclo - do teatro e da dança às artes plásticas e à fotografia, passando também por acções na área da psicologia - que culminarão num percurso performativo pelo bairro, que na altura da inauguração levará a população ao Edifício-Manifesto, e numa exposição do trabalho desenvolvido nas actividades com as crianças. Durante todo o processo, será rodado um documentário sobre o Edifício-Manifesto, numa parceria com a Ar.Co - Centro de Arte & Comunicação Visual.

Mas os projectos da Artéria em conjunto com a Renovar a Mouraria para este bairro não ficarão por aqui. Ao longo de 2012, serão feitas, num trabalho de "acupunctura urbana", pequenas intervenções em casas do bairro, aproveitando as parcerias que se conseguiram para o Edifício-Manifesto.

Sugerir correcção