O homem da maratona
Sergi Fäustino vai correr uma maratona no Citemor, e quer que cortemos a meta com ele. Para o catalão, não há teatro sem sacrifício pessoal. Tiago Bartolomeu Costa
Sergi Fäustino vai correr 21 quilómetros amanhã e nós vamos vê-lo chegar ao fim. Até porque, no dia seguinte, vai precisar de correr outro tanto. Foram os médicos que o aconselharam a não correr uma maratona inteira. Os atletas profissionais só devem fazê-lo duas vezes por ano, mas o artista catalão quer experimentar tudo. E por isso, com 24 horas de intervalo, propõe-se correr, numa passadeira de ginásio, o equivalente a uma maratona. "Tudo é uma experiência", diz-nos antes do ensaio, sem esclarecer se esse ensaio implica correr nas estreitas ruas de Montemor-o-Velho, enfrentando o calor que ataca a vila onde decorre pela 33.ª vez o festival Citemor e onde está em residência de criação para a estreia de amanhã.
"Estilo Internacional. Investigatión alrededor de un Cuerpo Cansado" explica-se assim: um actor corre e procura, através do cansaço, (um cansaço real), perceber o que é que o corpo pode comunicar. "Dizem que um corpo cansado se presta a fazer muito menos coisas, mas não é verdade. Fica mais aberto e mais disponível. Há uma serie de barreiras que desaparecem e de coisas que se abrem, como portas onde podemos escolher entrar. Consegue comunicar-se mais. É algo intangível", explica Fäustino. E dá um exemplo: "A imobilização depois de uma corrida é algo de muito intenso. Passam-se milhares de coisas que irradiam um certo estar e que só se dão com este corpo". É esse conflito entre o que é público e o que permanece invisível que lhe interessa trabalhar: "É preciso preparar um território, um campo de batalha, mesmo que seja exagerado pensar assim".
O corpo, acrescenta, é o princípio de tudo neste trabalho: "E aqui, ao falarmos de corpo estamos a falar de experiências, sensações e modos de estar diferentes". Perguntamos-lhe que corpo é aquele que ele vai descobrindo, e Fäustino responde-nos que descobriu com o processo desta peça que "é um corpo cansado". Por causa da acção que faz em cena, que activa uma série de problemas que mostra ao público. "É essencial que o diálogo com o público aconteça ao longo da minha experiência. Ocorre uma comunicação que a mim me alimenta e me leva a continuar a experimentar. Não é uma peça que esteja fechada", diz-nos.
Um campo de batalha
Já não lhe interessa o processo de trabalho que caracterizou a sua iconoclástica obra: "estruturas pesadas, três meses de preparação, mais outros três de ensaio, uma estreia e depois a circulação". Procura agora reduzir os elementos em cena para ampliar o seu efeito. Em peças anteriores, como "Nutritivo" (2003), começava por retirar sangue do braço para preparar uma morcela e daí seguia para uma reflexão sobre a representação da violência enquanto derivado do black metal. Em "Zombi" (2009), confrontava-nos, através de corpos acéfalos, com uma ideia de falsa resistência passiva. Em "La historia de Maria Engracia Morales" (2004), os corpos de uma mulher de 74 anos e de dois homens de 31 e 45 anos pareciam ser o espelho onde o espectador se projectava. A peça valeu-lhe um dos vários prémios de teatro que foi recebendo, precisamente porque materializava o palco como esse "campo de batalha" entre o espectador e o performer."A expressão talvez não seja a mais correcta", admite, mas a verdade é que houve sempre no seu trabalho a ideia de que a predestinação se impunha à descoberta. Sempre lhe interessou saber como podia activar impulsos que o espectador já tinha, "mas fazendo-os pertencer aquele momento", ao momento da apresentação. É por isso que esta corrida é em tempo real: "Podemos vê-la como um produto que se repete em espaços e tempos diferentes. Ou então como uma matéria de trabalho que, em função do lugar e do tempo onde decorre, não é nem melhor nem pior, é simplesmente diferente".