Gonçalo Tocha a acompanhar o mundo a acontecer

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Gonçalo Tocha como realizador aventureiro com o gorro que fez dele um "corvino" e (à direita) como cantor romântico abandonado, Gonçalo Gonçalves PAULO CASTANHEIRA/ WRITE VIEW

Partiu, como um explorador, à descoberta da Ilha do Corvo, Açores. Mas permaneceu perto da (sua) infânciae da narrativa de aventuras, não limpando a neblina da fantasia e do mito. E é por isso que ver "É na Terra não é na Lua", que hoje passa no Festival de Locarno, é acompanhar o mundo a acontecer. Mário Lopes e Vasco Câmara

É na Terra não é na Lua

Festival de Locarno

hoje, secção Cineastas do Presente

A ilha é minúscula de 17 quilómetros quadrados e de 440 habitantes. Ilha que se chama Corvo e que é a mais pequena de um arquipélago, o dos Açores, de ressonância mítica - pode não ser a Atlântida no meio do Atlântico, mas tal hipótese já foi teorizada. Aproximamo-nos dela, olhar alargando-se da proa do barco à elevação do antigo e morto vulcão que se desenha no horizonte. Já lá estamos. Uma janela com vista para mar e casario, gotas de chuva e vento lá fora, do outro lado daquela janela que protege o homem que filma. Que se chama Gonçalo Tocha e que nos diz "É na Terra não é na Lua". Não é o primeiro a dizê-lo. O título foi utilizado na imprensa portuguesa quando, pouco depois da chegada do Homem à Lua, precisamente, jornalistas andaram a procurar outras luas por descobrir aqui mesmo, na terra - vemos as parangonas e recortes de imprensa no filme. Chegaram onde chegou Gonçalo Tocha em Agosto de 2007, mas não viram o mesmo que Gonçalo Tocha, o realizador que se estreou com "Balaou", melhor longa portuguesa no Indie Lisboa 2007, e que regressa agora, quatro anos depois de partir pela primeira vez para o Corvo, com um filme, "É Na Terra Não É Na Lua", que é exibido hoje no Festival de Locarno. Será depois no Corvo, em data a definir e, depois, Gonçalo Tocha, realizador sem produtora, irá estreá-lo em sala - "não sei como, mas vou fazê-lo".

Como um explorador

Gonçalo partiu para a mais pequena ilha dos Açores porque sentiu que teria que pegar novamente na câmara. É um cineasta que vive de arrebatamentos: depois de "Balaou" dissera não saber se faria outro filme e diz o mesmo agora, quando terminou este filme de uma demência surda, em que nada está explodido - a meio é que percebemos que é algo gigantesco, porque já passaram quase duas das suas três horas - que se tornou numa obsessão de que não estava certo de se libertar. Gonçalo diz não saber se fará outro filme e não é pose.

"Mas vês-te como cineasta?", perguntámos quando já passáramos pela música - Tocha também é Gonçalo Gonçalves, "o cantor romântico abandonado", criação que é acto de amor (à ideia de um tempo e de um lugar e à música correspondente) no limite de gesto de performer. Passáramos por isso e ele dissera-nos que "fazer música aparece primeiro [que o cinema]: "Estive anos a ver cinema, a comer cinema. Sabia que mais tarde iria fazer qualquer coisa, esperava o momento. O "Balaou" foi esse momento."

Perguntámos então se se via como cineasta. Olhou-nos com surpresa e timidez, soltou um "talvez", depois um "sim" interrogativo à espera de confirmação. Disse por fim. "Não consigo responder a isso. Estou naquele ponto em que não sei se vou fazer outro filme. Se calhar sou um cineasta quando aparece um novo projecto. Então percebo, "ah, continuo a ser cineasta"". Neste caso, projecto talvez seja palavra demasiado burocrática para descrever o processo. Gonçalo parte à descoberta. Como que responde a um chamamento. "A ilha é a estrela do filme", entusiasma-se. "Na minha família de São Miguel [o avô nasceu lá, Gonçalo, na infância, passava todos os verões no arquipélago] ninguém conhece o Corvo. Digo que vou ao Corvo e é como se dissesse que vou ao Taiti ou às Maldivas". Foi por isso que teve que partir, sem saber em busca de quê. "Ia filmar a comunidade. Ia filmar a ilha". Como um explorador. "Cada dia que passava era mais aberto, cada vez havia mais coisas para descobrir. Nunca senti a claustrofobia [na ilha]. Câmara à mão e tripé, 24 horas por dia. Nunca cheguei ao ponto de dizer "já não há nada para filmar"".

Em "Balaou", também tínhamos o mar como cenário. O que separa São Miguel de Lisboa, e que Gonçalo Tocha filmou numa viagem que fora descoberta, exorcismo e por fim, aceitação. Fora a morte da mãe, sete meses antes da rodagem, a espoletar uma "viagem para aceitar o olvido das coisas". Agora, tem um barco em que navega, aquele que o conduz ao Corvo, essa ilha sobre a qual diz o capitão belga que lhe dera boleia, "os Açores são loucos, mas o Corvo é mais louco ainda". O barco de Gonçalo Tocha é a ilha ela mesma.

Na lua

Tocha é o aventureiro que observa, que perscruta, que se aventura. Os Açores, e o Corvo, como descobriu, são o sítio perfeito para se aventurar. Uma história antiga. "A mitologia dos Açores marcou-me profundamente. Quando somos pequenos, a natureza marca-nos, principalmente se for uma natureza que cheiramos e tocamos. Os Açores eram o sítio onde ia todos os anos em pequeno e marcou-me. Não era a questão de estar isolado numa ilha. Era a ligação entre as ilhas, era ser um ponto de passagem". Mais tarde, mergulhou nos arquivos em busca da história, mas esse deslumbramento da infância não se desvaneceu. Por isso mesmo, "É na Terra não é na Lua" não é um documentário que pretenda dar respostas. É uma aventura náutica em terra firme e a Gonçalo Tocha interessam tanto os pessoas que filma, a história que guardam e corporizam, quando uma certa neblina de fantasia que a câmara não esconde.

Todos os processos no filme vão no sentido de conhecermos as pessoas filmadas, de conhecermos o velho caçador de baleias, o bailarino que se harmoniza no verde natural, o casal que dança uma canção de Paulo Gonzo no pequeno café que é também bar e discoteca, os homens que desbastam a erva daninha da encosta ou aqueles dois que comentam, com conhecimento que nos escapa e olhar treinado com todo o tempo do mundo, o impacto as vagas arrojando sobre o cimento e escalando o pontão. Todos os processos do filme, continuemos, parecem manifestar um desejo de aproximação, mas a forma como Gonçalo Tocha e o sonoplasta Dídio Pestana aparecem e trocam impressões, corpo real ou em sombra, e a forma como narram em tom sereno, contemplativo, os diálogos que pontuam a "descoberta" no filme, qual diário de bordo, tudo isso e os planos replicando fotos antigas, não são luz iluminando de "verdade", no estrito sentido documental, este Corvo que é na Terra e não é na Lua - mas que se calhar, por isso mesmo, continua na lua.

Essa ilha meio nebulosa e escondida não se revela afinal "normal" e tão "próxima" de nós, como se pretende, por exemplo, em reportagem televisiva - a televisão tenta explicar, normalizar, diluir a diferença num todo perfeitamente legível, sem sobressaltos. Não era isso que o filme procurava. "Não me interessa nada desmistificar os Açores, e principalmente o Corvo". Isto é muito importante para Gonçalo Tocha, 32 anos, cineasta que só sente sê-lo quanto tem uma câmara na mão e, com ela, um objecto de desejo que filmar.

Gonçalo é também um músico que não se limita a fazer canções. No duo TochaPestana, cruzamento entre glam T. Rex e baile popular Nel Monteiro que o reúne a Dídio Pestana, tão à vontade em clube berlinense quanto em praça de Alfama em noite de Santos, ou, principalmente, enquanto Gonçalo Gonçalves, o "cantor romântico abandonado" que idolatra Rei Roberto Carlos e Júlio Iglesias, encontramos, de uma forma mais evidente, esse desejo de fantasia, essa vontade de maravilhamento. Em Gonçalo Tocha, o cineasta, esse desejo está presente, mas manifesta-se de forma diferente. Na música, Tocha conduz a orquestra. No cinema, responde ao apelo de um cenário e do que nele se esconderá sobre o aparente - descobre-o surpreendente sob um manto de normalidade. "Chegas à verdade pelo artifício", disse-nos em 2010 na sua casa decorada como museu Gonçalo Gonçalves, com relógios em forma de coração na parede, bibelots com corpo bailarina na mesinha, gambiarra tremeluzente serpenteando os móveis ou vinis de cantores românticos europeus e sul-americanos espalhados pela sala. "Crias uma distância que te protege. Não te fecha [ao mundo], abre [um mundo]". Isso, no limite, une-lhe a música ao cinema.

Com esta diferença fundamental. "O cinema para mim é uma coisa de muito tempo. De aventura pessoal. Para mim, é o desconhecido total. A música nasce de referências que tenho, deste quase desejo de me transformar num cantor dos anos 1970 e querer viver como um".

Um gorro

"É Na Terra Não É Na Lua" foi filmado em três viagens de um mês e meio. Esse regressar foi importante para a conseguir familiaridade e vencer, dentro do possível, a desconfiança. "No Corvo é importante voltar. Estão habituados a que chegues e vás embora. Voltar abre o livro". Não havia plano de rodagem pré-definido. Apenas a vontade de filmar. De filmar tudo, com essa urgência de "isto está tudo a mudar, está tudo a desaparecer" - as pessoas, precisará, eram as pessoas, os octogenários e nonagenários e as suas histórias de uma ilha sem historiografia fixada que desapareciam. Gonçalo e Dídio estavam a "acompanhar o mundo a acontecer" perante os seus olhos.

Falámos acima de fantasia. A fantasia que sobressai em "É Na Terra Não É Na Lua" não é fantasia exuberante de conto fantástico. A sua dimensão é outra.

O delirante período eleitoral que, dado que a maioria da população está directamente envolvida nele, pára a ilha - "a política é o melhor que há; devia haver eleições todos os meses", atira o homem que passa no seu jipe. Esse lado mais selvagem e tradicional, com o porco e ser preparado para a matança manhã cedo, convivendo com um progresso que ganha contornos de futurismo maquinal - o matadouro de cinzento chapa e a água que escorre dos aparelhos, em ambiente de "Blade Runner" asséptico. E a sensação de viagem subentendida nas memórias de emigração para os EUA, expostas nos pratos com bandeira americana nas paredes das casas, explícita no mecânico que, iluminado pelo crepúsculo, explica sem papas na língua que planeia ir para Angola - "para dinheiro é lá" - porque "a Europa está toda fodida". Mas talvez essa possibilidade de fantasia que se explique melhor com a história do ornitólogo inglês que certo dia, enquanto vagueava sozinho, avistou um pássaro raríssimo e vomitou de tanta emoção. Vomitou do nervosismo da descoberta e de estar a viver aquele momento único sozinho, sem ninguém com quem a partilhar. No minúsculo mas interminável Corvo de Gonçalo Tocha, as descobertas ficam com os 440 habitantes da ilha, incorporadas no seu código genético, entre lenda e (pouca) história oficial, ao longo dos cinco séculos que distam da descoberta da ilha por Duarte e João de Teive, em 1452.

"É Na Terra Não É Na Lua" é pautado pelo lento tecer de um gorro. Um gorro corvino feito pela mulher de 75 anos que, com "paciência de velha" (as palavras são dela), o prepara para Gonçalo Tocha. Aquele gorro é como que ritual de passagem. Quando o colocar na cabeça, Gonçalo será oficiosamente um corvino. Mas o que é ser corvino? Não sabe, mas sabê-lo não é importante. "O filme é o baptismo". O ritual de passagem é que é importante. Aquilo em que nos transformamos? Logo veremos.

Um dia depois da entrevista, recebemos um mail. Dizia isto: "Fiquei um pouco sem resposta quando me perguntaste se me considerava um cineasta, porque nunca tinha pensado nisso nem nunca ninguém me tinha perguntado. "Balaou" foi o filme da revelação pessoal e o Corvo ["É Na Terra Não É Na Lua"] o filme da descoberta do mundo, posso dizer que foi o meu baptismo civilizacional. Só consegui terminar este filme quando me libertei do peso de ter de acompanhar o registo contemporâneo ad-eternum da ilha. Tudo tem um fim e a aventura é única. O que vivi no Corvo não se volta a viver. Foi outra lição do desapego".

O cineasta aprendeu que, mesmo que o cinema seja a vida, ou fantasia de vida, tem que aprender quando parar de filmar. Para que, mais tarde, possa filmar novamente.

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