O concelho em forma de coração é o que tem mais dadores de sangue

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Portugal , que tem 330 mil dadores, precisaria de 35 mil dádivas

Santa Maria da Feira é o município que mais contribui para que a auto-suficiência de sangue seja uma realidade em Portugal. A associação de dadores benévolos do concelho comemora 20 anos de trabalho e as acções de sensibilização não param. Os voluntários continuam a subir aos altares e a colar cartazes nos cafés. No início, foi preciso explicar que não era para vender.

Começou com as Páginas Amarelas. Para cima e para baixo, à procura dos números de telefone dos padres das 31 freguesias. Dedo no telefone, sinal, e esperar pela voz do outro lado da linha. Pedia-se um ou dois minutos no altar, antes da despedida das cerimónias religiosas, para sensibilizar os fiéis para a dádiva voluntária de sangue. "Pedíamos autorização para falar durante as missas e a cedência de instalações para realizar as colheitas", recorda Joaquim Moreira Alves, presidente da Federação das Associações de Dadores de Sangue e vice-presidente da Federação Mundial das Organizações de Dadores de Sangue.

Empenhado em criar uma grande associação de dadores na Feira, conseguiu organizar uma colheita na freguesia de Argoncilhe em 1989. 125 mil pessoas deram sangue. Mas as campanhas intensificavam-se noutros concelhos e a Feira acabou por ficar em banho-maria. Um ano depois, no Verão de 1990, voltava a aparecer no mapa. Era Agosto e o sangue escasseava nos hospitais portugueses, como sempre neste mês que, a par com Dezembro, é o mais difícil do ano (neste momento, há já hospitais "sem sangue", dizia ontem ao P2 Moreira Alves, sublinhando que seriam necessárias 35 mil dádivas em Agosto para garantir suficiência anual).

Um ano depois, em 1991, nascia a Associação de Dadores Benévolos de Sangue de Santa Maria da Feira, que hoje, entre 68 estruturas, lidera a lista dos municípios que mais sangue dão num país actualmente com 330 mil dadores, correspondendo a 400 mil dádivas anuais.

Para Santa Maria, em força

Hoje, a Associação de Dadores Benévolos de Sangue de Santa Maria da Feira em 206 voluntários, 32 núcleos, 38 locais de recolha e um número de presenças que nunca parou de aumentar. Em 2009, registou 16.642 presenças e fechou o ano de 2010 com 17.053. O concelho que tem a forma de coração é percorrido duas vezes por ano e todas as quartas e sextas-feiras à tarde há colheitas na sede da associação. Nesses dias, o espaço encolhe. As cadeiras não chegam, há gente de pé e quem espere nas escadas interiores de acesso ao edifício. Na Feira, moram 20 por cento do movimento do centro de recolhas de Coimbra, que disponibiliza médicos e técnicos para as colheitas de sangue.

Moreira Alves continua a história. "No Verão de 1990, fomos em força para Santa Maria da Feira. A diocese do Porto avisou os padres para que cooperassem connosco." As torres das igrejas serviam de guia em freguesias desconhecidas e em madrugadas em que o sol ainda não tinha despertado. E a coisa ia correndo bem. Em Fiães, tiveram de mudar a colheita do salão paroquial para a junta de freguesia e posto de saúde, dado o número de inscrições. Moreira Alves percebeu que o trabalho estava a dar certo. A associação cresceu e hoje é a estrutura "com maior receptividade na dádiva de sangue do país". "O povo português é generoso." A isenção das taxas moderadoras aos dadores pode fazer a diferença, mas não explica tudo. "Essa isenção não é uma regalia, é uma atenção para o dador."

Entretanto, abriu-se uma ferida. O não aproveitamento do plasma, um dos componentes do sangue, custa a aceitar. "Portugal perdeu um bilião de euros por não aproveitar o plasma. Os sucessivos governos não têm dado atenção devida a este problema", diz Moreira Alves. O processo encrava: o Governo de José Sócrates abre um concurso internacional para o fraccionamento do sangue, mas há sempre concorrentes descontentes que interpõem acções cautelares para impugnar resultados. E fica tudo na mesma. "O nosso Governo tem de invocar o interesse nacional para que essa situação seja ultrapassada", defende Moreira Alves.

Serafim Reis, médico dentista, acompanhou o nascimento da associação da Feira e é agora o homem do leme. Voluntário desde a primeira hora, participava nas reuniões que saltitavam sem lugar fixo. Reuniam onde lhes abriam a porta: na cave do centro de saúde, num compartimento apertado cedido pela câmara local, para onde levavam cadeiras e mesas de praia, numa sala do antigo tribunal e em mais alguns sítios espalhados pela cidade. "Era preciso saber o local das colheitas e pedir ajuda aos padres, que nos mandavam enfrentar o público no final da missa." Num fim-de-semana, chegava a ir a sete, oito paróquias. "Começámos a dizer a verdade, principalmente a verdade, que era preciso dar sangue porque não havia e não se podia criar em fábricas." E assim foi surgindo uma máquina que se agarrou ao terreno, segurando-se às mãos dispostas a ajudar. Uma bola de neve que nunca mais parou. "Temos um grupo fabuloso a trabalhar e a Igreja tem sido a trave mestra. No primeiro ano, tivemos mais de mil pessoas a dar sangue e foi sempre a subir, até às 17.053 actuais." No quartel dos Bombeiros de Lourosa, duas vezes por ano, cerca de 400 pessoas dão sangue numa manhã. Há quem chegue às 7h30 para esticar o braço às 9h00. "No campo da solidariedade, a crise não pega."

O movimento cresceu e era preciso ter a porta sempre aberta. A câmara local atribuiu um subsídio, o empresário Américo Amorim deu uma ajuda na compra da sede e o Instituto Português do Sangue acabaria por destacar uma funcionária a tempo inteiro. Ainda hoje os voluntários enchem as assembleias-gerais, tornando pequena a sala de reuniões. Serafim Reis está satisfeito com o trabalho desenvolvido, mas está "muito incomodado" com o não-tratamento do plasma nacional. "Se tratássemos o plasma em Portugal, o dinheiro que não pagaríamos ao estrangeiro daria para construir um hospital por ano."

Emília Fátima Sá recua 20 anos. Foi dar sangue, saiu com o convite para integrar a associação. Os primeiros tempos foram duros. "Ainda não havia aquele hábito da dádiva de sangue e havia muitas confusões, muitos preconceitos. Tínhamos de explicar às pessoas que o sangue não era para vender, era necessário desmistificar essa parte." Havia obstáculos a contornar, mas nada que atrapalhasse a sua vontade de ajudar. Reuniões feitas, papel na mão, para que nenhuma branca atraiçoasse as palavras, subia aos altares de igreja para captar dadores. "Tínhamos de explicar muito bem o que pretendíamos e levava uma cábula com as indicações do que havia de dizer, mas no fim já dizia de cor", recorda. Era preciso mobilizar. "Não interessava explicar com termos técnicos, o importante era sensibilizar e chegar ao coração das pessoas."

Para não esquecer

Em Romariz, na freguesia natal, tratava das arrumações do centro de dia para a recolha. Colocava cadeiras e mesas com a disposição adequada para a recolha de sangue e limpava tudo no final. Isto era num tempo em que as inscrições eram feitas em papel, em que o processo era mais lento. "Era um grupo muito restrito, muito chegado, todos davam as suas opiniões e foi assim que as coisas foram crescendo, devagarinho", recorda. Emília Fátima é uma mulher generosa, que não foge à frente de batalha, voluntária em várias instituições. E, hoje, tal como no passado, o amor à camisola continua a fazer sentido.

Armando Silva sublinha que essa entrega fez toda a diferença. É voluntário desde a primeira hora e responsável pelo núcleo de dadores de sangue da freguesia de Lobão, que, duas vezes por ano, recebe mais de 200 dadores. Tinha dado sangue em França, onde esteve emigrado, e não hesitou quando foi contactado: arranjou tempo na sua agenda de comerciante. Nas primeiras colheitas, havia muito trabalho pela frente. As recolhas eram feitas no posto de saúde e era preciso arranjar o espaço. Arrumavam-se as secretárias dos médicos e os dossiers clínicos que se encontravam em cima da mesa. "Era uma trabalheira que nem imaginam. Era preciso ter a sala limpa e olhar pelas crianças, que queriam ir para a beira da mamã, para que não se aproximassem das máquinas", lembra. Em três anos, o número de colheitas aumentou de 80 para 200, e a recolha passou a ser feita no centro das colectividades. Hoje fazem-se 250 colheitas.

As acções de sensibilização não param. Uma semana antes da colheita, Armando Silva percorre mais de 13 cafés da freguesia para afixar os cartazes. O padre da paróquia também é dador e receptivo à sensibilização. Mas, quando se esquece, Armando Silva coloca o dedo no ar para lembrar-lhe que tem de anunciar a próxima colheita. "É preciso muita carolice para estar cá." É um voluntariado que dá despesa - quem se dedica à causa tem que suportar os seus próprios custos de deslocação para as recolhas e reuniões. "Mas veja-se como isto cresceu... É uma sorte termos um presidente que fez desta a sua casa."

A régua e esquadro

Clara Campos ainda se lembra de ir à missa no lugar da Piedadepara receber apenas uma inscrição. Hoje coordena a colheita que se realiza no quartel dos Bombeiros da Feira e tem tudo organizado na cabeça, a régua e esquadro. Fecha os olhos e vê o espaço. A estrutura da sala é desenhada numa folha A4 para que a equipa perceba onde estarão as mesas dos médicos e dos enfermeiros, a secretária das inscrições, as mesas com os lanches, o espaço para as crianças brincarem enquanto esperam, os biombos que delimitam a entrada das casas de banho. E os bombeiros tratam de toda a mudança. "São extraordinários, não me deixam mexer uma cadeira. O nosso sistema está bem montado e temos sido bem-sucedidos."

Clara Canpos trabalhava como administrativa no Centro de Saúde da Feira quando foi abordada para entrar na associação. Aceitou. Ainda tentou dar sangue, mas os seus níveis de hemoglobina estavam muito baixos. Dedicou-se à sensibilização. "Ficava à porta da igreja para saber mais ou menos quantas pessoas queriam dar sangue, para termos um cálculo muito rigoroso". O contacto com os padres era fundamental. "O que senhor abade dissesse era para se cumprir."

Foi precisamente no fim de uma missa que o Óscar Rodrigues foi abordado para fazer parte de uma associação de dadores de sangue. O comerciante disse que não percebia nada do assunto, mas que tinha vontade de ajudar e alguma disponibilidade. Assim foi. "Há 20 anos, era muito raro aparecerem dadores de sangue. Era uma experiência nova, mas para ajudar o próximo estamos sempre disponíveis." O início foi complicado, as primeiras reuniões acabavam tarde, era necessário dar tudo por tudo na sensibilização. Havia freguesias do seu concelho que passou a conhecer nessas acções, padres que passou a contactar regularmente, discursos preparados para o fim das missas, folhas brancas para apontar os nomes dos interessados em doar sangue. "Era preciso trabalhar."

Ainda hoje continua a ir ao altar da missa de Riomeão para sensibilizar para a dádiva de sangue. Tem dois minutos para o fazer. Recorre às notícias mais recentes para captar a atenção e regularmente lembra que as reservas de sangue não duram uma vida, que se esgotam com os minutos que passam. Óscar Rodrigues regressa ao passado. Estava ansioso a primeira vez que deu sangue no posto de saúde da sua freguesia. "Depois de dar sangue, sente-se uma libertação, é uma sensação difícil de explicar." Há quatro anos, foi operado ao coração e precisou de sangue. Ajudou e foi ajudado. Hoje é o vice-presidente da associação de dadores da Feira, cargo que ocupa desde 2004.

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