É uma linha de comboio. É um parque. É o High Line

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Kathleen Gomes

Há uma década, o High Line era uma ruína industrial ameaçada de demolição. Hoje, converteu-se num novo modelo de espaço público. Uma pradaria no coração de Nova Iorque - para onde outras cidades começam a olhar.

Em Nova Iorque, o céu sempre foi o limite. Uma cidade nas alturas: imaginem o Super-Homem numa metrópole rasa (a frase "É um pássaro. Não, é um avião" talvez nunca tivesse existido) ou o King Kong sem o Empire State Building.

Ao contrário do que se chegou a recear, o 11 de Setembro não acabou com os arranha-céus de Nova Iorque. Existem hoje mais torres do que em 2001. Mas desde 2009 os nova-iorquinos têm uma nova perspectiva sobre a cidade: um viaduto pedestre, à altura de um terceiro andar, no extremo ocidental de Manhattan, oferece "não o ângulo de Deus, mas algo mais raro, a perspectiva de um anjo menor: a de um cupido numa pintura do Renascimento", como escreveu Adam Gopnik na revista The New Yorker.

Em apenas dois anos, o High Line tornou-se num destino tão obrigatório como o Central Park e, ao contrário de Times Square, um espaço realmente frequentado por nova-iorquinos.

Não é que o High Line não tenha turistas: num domingo de Julho ouve-se falar espanhol, italiano, japonês, português do Brasil, dinamarquês e francês.

Mas, de certa forma, o High Line é o anti-Times Square. Onde Times Square se transformou progressivamente num parque de atracções para turistas, um clarão exorbitante como Las Vegas vista do deserto, o High Line é o inverso da opulência e da ostentação; não um pulmão, mas um músculo pastoral serpenteando ao longo de 2,3 quilómetros, ou seja, 20 quarteirões. É como se o High Line fosse a sobreposição de uma pintura de Corot com o skyline de Nova Iorque, o transplante de uma pradaria para um cenário densamente urbano. Em nenhum outro lugar de Nova Iorque é possível fotografar lírios, cardos, zínias, erva-cebola, orelha-de-lebre, flor de borboleta, lágrimas-de-cristo, trevos-da-pradaria (lista nada exaustiva) contra um cartaz publicitário da Armani ou raparigas de biquíni e rapazes atléticos em tronco nu banhando-se ao sol com o Empire State Building ao fundo. Debaixo dos pés, ao nível da rua, o armazém em tijolo vermelho do DeBragga, autodescrito como "o talhante de Nova Iorque", resiste como o último suspiro de um bairro que já foi o mercado abastecedor de Nova Iorque (Meatpacking District).

A história do High Line, que continua a soar tão quixotesca hoje como dez anos antes de abrir, é a incrível vitória de um grupo de cidadãos contra os interesses comerciais de proprietários da zona - uma lição, para qualquer cidade, de como um forte movimento de cidadania consegue reclamar para si um lugar que esteve condenado à demolição; e de como uma ruína industrial se converteu num novo modelo de espaço público.

Visão romântica

Antes de ser um parque, o High Line era uma plataforma férrea elevada construída no início da década de 1930 e frequentada exclusivamente por comboios de carga que abasteciam a zona industrial no West Side de Manhattan. O último comboio passou em 1980, carregando três vagões de perus congelados, reza da lenda, e a partir de então o High Line converteu-se numa ruína industrial, abandonada às ervas daninhas e servindo de acampamento ocasional a sem-abrigo. No final da década de 1990, era visto como uma praga urbana, e um grupo de proprietários de Chelsea fez pressão para demoli-lo, pensando na revalorização do mercado imobiliário na zona. Em 1999, dois residentes de Chelsea, Joshua David e Robert Hammond, o primeiro empresário da Internet, o segundo jornalista de viagens, conheceram-se numa assembleia de moradores e formaram Os Amigos do High Line, uma associação para a defesa da preservação da estrutura e a sua conversão num espaço público. O mayor de Nova Iorque Rudy Giuliani descreveu a ideia como "uma visão romântica" que iria impedir aquela zona da cidade de continuar a desenvolver-se. Um dos seus últimos actos enquanto presidente da câmara foi aprovar a demolição. Mas questões técnicas - nomeadamente, quem pagaria os custos da demolição e quem assumiria a responsabilidade, caso algum acidente ocorresse durante o processo - acabaram por atrasar o desmantelamento do velho viaduto férreo. Enquanto isso, Os Amigos do High Line foram acumulando simpatias para a sua causa entre actores de Hollywood e milionários - o actor Edward Norton faz parte do conselho administrativo dos Amigos do High Line e o poderoso casal constituído pela criadora de moda Diane von Furstenberg e o marido, Barry Diller, criador da Fox, foram apoiantes praticamente desde a primeira hora.

"O apoio de celebridades foi importante, mas se não tivesse havido mais nada, [o High Line Park] nunca teria acontecido", diz ao P2 Paul Goldberger, crítico de arquitectura da New Yorker. "O apoio de celebridades foi um belo creme sobre o bolo, mas não foi o bolo." Mais decisiva, defende Goldberger, foi a chegada de Michael Bloomberg à presidência da Câmara de Nova Iorque, em 2002. "Ele teve uma postura muito diferente da do seu antecessor. Percebeu o potencial [do projecto], ao contrário de Giuliani." A par disso, diz Goldberger, o projecto beneficiou de um crescente movimento nos Estados Unidos que defende a preservação da arqueologia industrial. "E depois houve um grupo de cidadãos incrivelmente diligente, esperto, bem pensado, Os Amigos do High Line. Começou com nada, apenas com um pouco de senso comum e paciência. E é fascinante que os dois tipos que começaram tudo não sejam arquitectos, nem paisagistas, nem horticultores. São apenas pessoas interessadas." O projecto também beneficiou indirectamente do 11 de Setembro. "Eles pensavam que o 11 de Setembro seria fatal para o projecto, que ninguém quereria saber ou teria tempo para lhe dar atenção, mas, na verdade, o 11 de Setembro acabou por servir como uma espécie de tribuna, porque as pessoas queriam ver sinais rápidos de renovação e subitamente houve muita filantropia disponível para uma causa como essa." O High Line, tal como existe hoje, resultou da confluência de todos esses factores. "De certa forma, tivemos muita sorte", resume Goldberger.

Em 2003, Os Amigos do High Line lançaram um concurso aberto de ideias para transformar o viaduto e receberam mais de 700 propostas de todo o mundo, incluindo Portugal. Numa segunda fase, em 2004, encomendaram projectos a quatro gabinetes de arquitectura, incluindo o de Zaha Hadid. O concurso resultou na selecção do projecto conjunto de James Corner Field Operations, uma firma de arquitectura paisagística, e da Diller Scofidio + Renfro.

Uma avenida suspensa

A primeira fase do High Line Park foi inaugurada no Verão de 2009, e a segunda, que ampliou o parque para o dobro do tamanho, abriu no início de Junho deste ano. Actualmente, o High Line estende-se da Gansevoort Street, no Meatpacking District, até à Rua 30, em Chelsea, sempre ao longo da Avenida 10. O acesso é feito por escadas ou elevadores que existem praticamente a cada duas ruas. A fase final prolongará o High Line até à Rua 34.

É uma espécie de nova avenida suspensa, inteiramente pedonal, suficientemente acima do nível da rua para oferecer um escape da cidade, mas não tão acima que a cidade deixe de reclamar atenções.

Um dos pontos de maior concentração de pessoas é o anfiteatro ao ar livre no cruzamento da 10ª Avenida com a Rua 17: subitamente, o nível do piso afunda-se e termina em janelões com vista para a rua em baixo, como uma tela numa sala de cinema. É uma experiência narcisista, um lugar para Nova Iorque se ver a si própria.

Em qualquer dia da semana, há gente a ler livros ou Kindles à sombra, corpos ao sol, gente a comer o almoço comprado nos delis das ruas abaixo ou no Chelsea Market, há nova-iorquinos a fazer de cicerone a amigos em visita, fotografias a serem tiradas a todo o minuto, estudantes de Belas-Artes com o polegar em riste contra o skyline nova-iorquino esboçando perspectivas da cidade. Do ponto onde Ellen Evjen, professora na Parsons School of Design, e o seu grupo de alunos se encontram, sobre a Rua 17, eles podem escolher qualquer postal da cidade rodando num eixo de 360 graus: o perfil de New Jersey, de um lado; a Estátua da Liberdade, liliputiana, ao fundo; a linha de fuga das ruas em baixo, com os táxis amarelos; os edifícios bolo-de-noiva, com os reservatórios de água pousados no topo; o Empire State Building a indicar o Norte; o novo edifício ondulante de Frank Gehry.

O High Line mantém a sua identidade original: as antigas linhas férreas foram restauradas e preservadas no local, encobertas pela vegetação. A própria vegetação é uma vénia ao que o High Line foi no seu período de dormência, quando ervas e plantas silvestres cresceram livremente entre os carris. Em 2000, os dois fundadores dos Amigos do High Line pediram ao conhecido fotógrafo Joel Sternfeld para fotografar o local. Durante mais de um ano, Sternfeld documentou um lugar bucólico com todas as suas flutuações: bravio na Primavera, dourado no Outono, branco de neve no Inverno, ramos entrançados uns nos outros, que é que acontece quando a natureza fica entregue a si própria. As fotografias de Sternfeld serviram de inspiração ao horticultor holandês Piet Oudolf, responsável pela escolha e design das plantas do High Line Park. A actual vegetação é o resultado de uma rigorosa composição, mas o efeito criado é o de um mata abundante, não-ornamental, uma evocação do campo na cidade. Urbanismo pastoral.

"Eles mantiveram as plantas originais. Isto era o que existia aqui antes, sem qualquer intervenção", diz ao P2 um nova-iorquino que mostra o High Line à namorada, recém-chegada à cidade. É um erro comum, mas compreensível: na verdade, toda a vegetação original foi removida e substituída, mas 40 por cento das espécies actuais correspondem às que existiam.

"Eles fizeram escolhas muito conscientes em relação ao que deviam limpar e ao que deviam preservar", diz Joey Liao, uma nova-iorquina de 38 anos que vive um pouco acima do High Line. "Creio que conseguiram um bom equilíbrio entre o antigo e o novo."

Cabaret nas escadas

O que é que o High Line mudou, nesta parte da cidade?

Chelsea "era uma zona mais de passagem", resume Joey. "Não havia muita coisa aqui que chamasse as pessoas. À excepção das pessoas interessadas ou envolvidas na cena artística." Chelsea, conhecida pela sua concentração de galerias de arte, "não era assim tão popular".

Para Patty Heffley, que mora num quarto andar sobre o High Line, a mudança é ainda mais palpável - e pessoal. "Quando o High Line abriu, percebi que a minha privacidade tinha acabado." A sua reacção espontânea foi montar um pequeno cabaret nas escadas de incêndio do velho prédio onde mora. "Não foi uma forma de protesto. Foi uma resposta, uma maneira de lidar com aquele tipo de mudança." Duas noites por semana, Patty fazia de mestre-de-cerimónias, e uma amiga cantava standards. Com a ajuda de uma corda, recolhiam gorjetas fazendo deslizar um balde vermelho envolto em luzinhas. "Chamávamos-lhe "O balde Fellini". Conseguíamos sempre uns 80 dólares. Às vezes mais." Durou dois meses, até a senhoria de Patty ameaçar despejá-la do apartamento, se não parasse. "Vivo nele há 32 anos, a minha renda é baixa e não queria perder o apartamento, portanto parei." Patty paga 841 dólares de renda. No seu prédio as rendas chegam aos quatro mil dólares. Nativa do Colorado, Patty mudou-se para Chelsea em 1978, a tempo de ver os últimos comboios passarem no High Line. "Uma semana depois de me mudar, havia um desenho a giz no passeio frente ao prédio, marcando o lugar onde tinha morrido um homem. Esta zona toda mudou muito. Mas isso aconteceu em toda a cidade com o Bloomberg. Houve uma limpeza geral, gentrificação. Quando vim para aqui, isto era um bairro latino, com bares gay hardcore... Havia todo um submundo junto ao High Line. Mas isso já desapareceu há muito. Dia e noite, o que existia aqui eram armazéns e garagens e oficinas, coisas desse género. Agora há imensos restaurantes, um a seguir ao outro." Patty, que nos anos 1970 fotografou o movimento punk rock em Nova Iorque, diz que o bairro se tornou chique à volta dela. "Eu não tive nada a ver com isso. Limito-me a estar aqui. Tenho sorte de poder viver aqui." E não é como se ela ainda fosse uma punk rocker. "Todas as coisas evoluem." E depois, a velha Chelsea ainda pulsa, aqui e ali - graffiti, terrenos vagos, oficinas de automóveis. Um antigo prédio de habitação junto ao High Line tem os vários pisos ocupados por automóveis, com as matrículas viradas para as janelas - como é que subiram as escadas? Ao lado, despontam prédios novíssimos, em vidro. "Eu não quereria viver aqui", diz um homem. "Estaria toda a gente a olhar."

"O meu prédio é um velho edifício, tem-te-não-caias, como são muitos no High Line", prossegue Patty, 57 anos. "Já andou pelo High Line? Existem muitas velharias, o que para mim é o aspecto mais interessante do High Line - nomeadamente o que ainda existe, o que foi deixado para trás e não sofreu qualquer intervenção. Esse é o charme do High Line: o facto de se conseguir ter uma variedade de vistas e facetas da cidade."

Parece evidente que Chelsea é um bairro ainda em transformação e que as maiores mudanças ainda estão, porventura, por vir - o novo Whitney Museum está projectado para o extremo sul do High Line e um novo centro financeiro para o extremo norte, com 16 arranha-céus, previsto para 2015. Uma das vantagens do High Line, diz Paul Goldberger da New Yorker, foi ter levado a Câmara de Nova Iorque a impor novas regras urbanísticas em Chelsea com o objectivo de controlar e garantir a qualidade do desenvolvimento em torno do High Line, proibindo, por exemplo, a construção de edifícios em altura maiores do que os que existem actualmente.

Natureza selvagem

Em American Eden, um livro publicado este ano, o designer paisagístico Wade Graham classifica o High Line como "uma nova celebração da natureza selvagem no coração da cidade pós-industrial". Em 2010, o parque teve mais de dois milhões de visitantes, diz por email Kate Lindquist, do gabinete de imprensa dos Amigos do High Line, e as estimativas para 2011 apontam para um aumento, dado o prolongamento do High Line. Os nova-iorquinos constituem metade desse número.

"O parque está a servir de modelo para outras cidades", diz Lindquist. Chicago (Bloomingdale Trail), Filadélfia (Reading Viaduct), Jersey City (The Embankment) e Atlanta (The Beltline) estão a discutir projectos semelhantes para linhas férreas defuntas. O próprio High Line é um sucessor, não um pioneiro. "Em 1999, quando Joshua David e Robert Hammond fundaram Os Amigos do High Line, foi muito importante apontar a Promenade Plantée, em Paris, como exemplo. Isso ajudou as pessoas a perceberem o que o High Line podia ser", explica Kate Lindquist. Inaugurada em 1993, a Promenade Plantée é o primeiro parque construído ao longo de uma antiga linha férrea elevada, na zona leste de Paris, ligando a Bastilha ao Bosque de Vincennes.

"O High Line é muito melhor do que a Promenade Plantée", diz Paul Goldberger. "É provavelmente o único caso na história em que uma coisa começada em Paris foi aperfeiçoada em Nova Iorque", ri. Pode o High Line ser exportável para outras cidades? "Talvez algumas ideias possam sê-lo, ou algumas partes. Mas primeiro é preciso lembrar que tudo começou com este maravilhoso material em bruto: o próprio High Line", diz o crítico de arquitectura. "Existe um High Line em todas as outras cidades? Claro que não." Qualquer outra cidade teria de combinar as mesmas condições, defende: um High Line, uma reconstrução com a mesma qualidade, uma energia urbana como a que existe em Nova Iorque. "E nem todas as cidades têm isso." E nem todas as cidades têm uma Patty Heffley. Como o Super-Homem, ela só podia viver em Nova Iorque.

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