Uma guitarra no deserto

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Bombino regressou ao Níger em 2007, depois de dois exílios (primeiro na Argélia, depois no Burkina Faso), mas continua a ter de sair de cada vez que precisa de cordas para a guitarra RON WYMAN

Os Tinariwen conquistaram o mundo com a sua lenda de guerrilheiros tuaregues de guitarras em punho. Agora, gravaram com TV on the Radio e Wilco o novo "Tassili", a sair no final do mês. Entretanto, já este domingo, Bombino - o guerrilheiro do deserto - actua em Lisboa. Gonçalo Frota

A 31 de Março de 1967, na primeira parte de um concerto dos Walker Brothers no London Astoria, a Fender Stratocaster de Jimi Hendrix ardeu. O virtuosismo do músico seria o suficiente para lhe inflamar o corpo esculpido na madeira durante "Wild thing", mas a causa foi mais da ordem do cerimonial pagão: Hendrix ajoelhado, como que prestando devoção ao seu instrumento ou até sacrificando-o em troca de glória eterna. Havia de repetir a façanha no Monterey Pop Festival, meses mais tarde.

Quando vemos Bombino de Stratocaster nas mãos, em pleno deserto do Sara, dir-se-ia que a guitarra ameaça igualmente imolar-se pelo fogo. Já não por acção de gasolina borrifada sobre as cordas, mas porque a escalada do mercúrio nos termómetros sugere que este não é o cenário mais provável para encontrar uma guitarra ou um amplificador Marshall que se alimentem de electricidade. Só que, desde 2001, altura em que os Tinariwen foram apresentados ao mundo como "os Rolling Stones do deserto", esta descrição que antes seria pronta e justificadamente catalogada e arquivada como miragem passou a constituir inequívoca prova de lucidez. Hoje, depois de, na esteira dos Tinariwen terem aparecido Tartit, Tamikrest ou Etran Finatawa, passou a parecer improvável que o nomadismo no deserto do Sara se possa fazer sem um arsenal de guitarras e um gerador que permita os concertos acontecerem sem tomadas à vista.

Se a comparação de Ibrahim Ag Alhabibe e companhia a Keith Richards e demais gangue roça o despropósito, a de Bombino como "Jimi Hendrix em pele de tuaregue" já merece um outro respeito. E isto porque o músico, de escassos 31 anos, se vale não apenas do tom hipnótico colhido junto dos Tinariwen e do Velho Testamento composto pela discografia de Ali Farka Touré, mas também de uma fúria virtuosa de Hendrix que reclama um novo espaço na música da região. Mas, apesar do sucesso fulgurante de Bombino - que há duas semanas se encontrava em digressão norte-americana com Stevie Wonder, transformando o funk-tipo-mola de "Higher ground" numa sessão de relaxamento muscular -, com a edição, no ano passado, de "Agadez", tocar guitarra eléctrica no Níger continua a ser uma profissão de risco.

Até pelas razões mais prosaicas. Não são apenas as sucessivas revoluções e guerras civis num rastilho interminável de empurrões para o exílio que atiraram Bombino primeiro para a Argélia - onde descobriu as maravilhas da guitarra eléctrica - e depois para o Burkina Faso. Não foi apenas regressar em 2007 e descobrir que as guitarras eram proibidas no seu país e que a intolerância para com símbolos de resistência e revolução identificados nos instrumentos levou, aliás, a que dois dos músicos que com ele tocavam fossem assassinados.

Mesmo hoje, ultrapassadas essas questões de vida ou morte, o homem que se passeia pelos palcos norte-americanos como se fosse um herói nacional na sua terra tem ainda de percorrer frequentemente centenas de quilómetros para resolver questões que, no Ocidente, parecem histórias demasiado fantasiosas para poder concorrer com a realidade. "Em Agadez não há praticamente artigos musicais", conta-nos Bombino, que este domingo actua no Centro Cultural de Belém, em Lisboa. "Tenho de ir constantemente para Oeste para arranjar coisas. Para arranjar uma guitarra ou até mesmo umas simples cordas. Mesmo depois da revolução, não há muito material no Níger. Em Agadez, guitarras ou cordas são coisas que não existem".

Considerando-se um ponto equidistante entre Ali Farka Touré e Jimi Hendrix, Bombino ri um riso envergonhado sempre que um dos dois nomes surge em conversa, como se fosse quase uma heresia colocar o seu nome na mesma frase que esses dois deuses da guitarra. No seu arrevesado francês-deserto (essa língua de sotaque cheio de arestas, para a qual é preciso afinar o ouvido minutos a fio), Ali Farka e Hendrix são pronunciados com voz sumida, a medo, como se lhe fosse cair um raio na cabeça por ousar aceitar tais comparações. Mas, na verdade, aquilo que Bombino nos quer dizer com voz sorrateira é tão simples quanto isto: "Esses grandes elogios dão-me vontade para continuar".

De Brooklyn ao Sara

Tal como os Tinariwen, Bombino tem uma noção instrumental da música. Não no sentido de proibir a entrada da voz, mas enquanto atribuição de uma função específica. Muito embora ninguém no Hollywood Bowl perceba as palavras que lhe saem da boca, ele garante que esta nova geração de tuaregues electrificados carrega sempre consigo uma mensagem de paz e de união entre os povos. Daí que soe a apelo a insurreição aos ouvidos de ditaduras, e que aos Tinariwen pareça a coisa mais natural do mundo receber no deserto músicos dos TV on the Radio, dos Wilco ou a Dirty Dozen Brass Band para gravar o novo álbum, "Tassili" (ouvi-lo-emos ao vivo no Teatro Municipal de Vila do Conde a 4 de Outubro, em mais um concerto Estaleiro). Tudo começou com um encontro no festival de Coachella e com a identificação imediata pelos músicos tuaregues de um espírito musical semelhante no rock negro do quarteto de Brooklyn. "Vimo-los ao vivo e tocámos um pouco nos bastidores" - é assim que o baixista Eyadou Ag Leche explica, sem grandes rendilhados, o convite feito a Tunde Adebimpe e Kyp Malone, dos TV on the Radio, para embarcarem para o deserto do Sara.

De resto, o cenário jamais poderia ser dispensado. Quando Eyadou nos revela que um nómada se sente em casa quando os pés se afundam na areia do deserto, é evidente que a música dos Tinariwen, por mais voltas que dê ao mundo, precisa de um calor insuportável, e de chão a desfazer-se debaixo dos pés, para não se sentir claustrofóbica - e de um gigante prato comunitário de arroz regado com leite de cabra. "Como alguém que trabalha todo o dia e depois regressa a casa para descansar à noite, é uma libertação grande quando estamos com a natureza e os animais", esclarece Eyadou. Por isso mesmo, embora convidando músicos da mais reputada facção do rock, aos Tinariwen não interessam essas modernices de gravar à distância sem ver a cara do outro. Para que se lhes abrisse a porta da sua música, garante Eyadou, os TV on the Radio tinham de conhecer o mesmo deserto onde se fala tamashek, a mesma aridez que habita cada volta na hipnose das guitarras. "Era essencial para nós, é aí que encontramos a nossa energia".

O entendimento musical não poderia ser mais simples e eficaz. Para Eyadou, o uso da língua para comunicar com outros músicos parece quase um absurdo quando há instrumentos nas mãos. As roupas colam-se à pele e o suor escorre em cascata, e se isto não transporta música por si é porque o interlocutor não serve.

O filão

Conta a biografia oficial que os Tinariwen se formaram em 1979 num campo de refugiados na Líbia e que o líder do grupo, Ibrahim Ag Alhabibe, andou a combater de metralhadora numa mão e guitarra na outra. A imagem é tão perfeita que não vale a pena contestá-la, e por isso permitimo-nos abrir uma fenda na carapaça da credulidade e aceitamo-la como verdadeira. Porque é mais bela assim. Só muitos anos depois, no início da década de 90, voltaram à sua terra-natal, um lugar móvel no norte do Sara. É de então que data o disco "The Radio Tisdas Sessions", gravado por Justin Adams e pelos Lo"Jo, após a mítica actuação do grupo no primeiro Festival au Désert - organizado, precisamente, pelos franceses Lo"Jo, que vinham explorando uma fusão entre a tradição francesa e a música magrebina. As gravações são feitas durante a noite, em Kidal, única altura em que o racionamento de electricidade permite tais aventuras.

O álbum, colocado num circuito da world music em vertiginosa expansão, rapidamente conquista o mundo e faz dos Tinariwen o novo fenómeno de que as músicas do mundo precisavam para suceder ao filão cubano. Aquilo que se segue, como seria de esperar, é a apressada organização de expedições ao Sara para descobrir quem mais por aquelas bandas calcorreia o deserto de guitarra ao ombro. Espantosamente, a descoberta de nomes como Tartit (formados num campo de refugiados no Burkina Faso), Tamikrest (aparecidos em 2006 e claramente pós-Tinariwen) ou Etran Finatwa (do mesmo período, formados durante o Festival au Désert e juntando tuaregues e woodabes), incapazes de destronar os Tinariwen como referência maior dos blues eléctricos do deserto, não compromete o "género".

Há um par de anos, motivado por esta cultura subitamente familiar, o cineasta Ron Wyman quis ir filmar a identidade do povo tuaregue e passou três semanas a visitar locais e a conversar com quem lhe podia encher a película. No carro onde era conduzido, havia uma cassete que não parava de tocar e que se tornou a banda sonora dessa estada. No final das três semanas, Wyman encarregou o seu guia de encontrar aquele músico. Voltaria mais tarde para filmá-lo. A longa-metragem, estreada em 2010, chama-se "Agadez, the Music and the Rebellion" e conta sobretudo a história de um homem, Omara Moctar. Também conhecido por Bombino.

Ver agenda de concertos pág. 28. e segs.

Ver crítica de discos pág. 30 e segs.

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