Eles fecham o último capítulo do Bombarda
O primeiro hospital psiquiátrico em Portugal, o Miguel Bombarda, fechou. Com ele se encerram 163 anos que são uma viagem à história da psiquiatria, na qual os seus habitantes passaram de "alienados" a "doentes mentais". Os seus últimos 24 moradores, que ali viveram quase meio século, mudaram-se para a nova casa. São doentes do passado num cenário do futuro. O Bombarda "era muita coisa, era tudo".
Ernesto não perde uma oportunidade para mostrar a fotografia emoldurada da mãe, que tinha no centro da sua mesinha de cabeceira no Hospital Miguel Bombarda e que agora transferiu para a da vivenda que é a sua nova casa. "A minha mãe é esta". Não se leva muito tempo a perceber que a alegria com a imagem que exibe não lhe vem de memórias passadas, tantas são as vezes que fala dela.
"A mãe está aqui, amor". Maria Júlia Martinho, de 85 anos, vê o filho todas as semanas e até o conseguiu ensinar a ir sozinho ter com ela a casa, de 15 em 15 dias. Não foi tarefa fácil. Foram dois anos de treino, todas as semanas, até que Ernesto, que tem 63 anos e sofre de debilidade mental, conseguisse fazer o percurso desacompanhado. Orgulhoso deste seu acto de autonomia - tanto quanto das suas idas à Leitaria dos Combatentes, o café à saída do hospital onde tomava todos os dias a bica e come um bolo - consegue apanhar o autocarro 777 para a Damaia, sair em Benfica e depois apanhar a camioneta para a Amadora. E lá está à espera a mãe, que o põe a dormir na cozinha por ser o único sítio onde tem espaço para o filho. Isto apesar de outro doente do hospital, o sr. Moutinho, lhe prometer, de cada vez que lá vai, "uma quantia avultada" que lhe vai resolver a vida, ou "um T3 para viver com o filho à larga". "Estou à espera", diz-lhe sorridente, numa das vezes em que foi ela a visitar Ernesto, ainda no Bombarda, no centro de Lisboa.Depois de 20 anos com o hospital como casa, o que vai acontecer à rotina de Ernesto? É que da sua nova casa,no Restelo, em vez de dois transportes, é preciso apanhar três e agora é preciso saber ler algarismos. As paragens já não são de autocarro único e é preciso identificar números, que Ernesto não sabe distinguir.
Todos os hóspedes da nova casa vão ter de passar por muitas adaptações. Ernesto é um dos últimos 24 doentes a sair do Miguel Bombarda, o primeiro hospital psiquiátrico português, que abriu as suas portas em 1848 e as fechou a 5 de Julho de 2011. Somada e dividida a vida que esses doentes lá passaram, dá uma média de 40 anos, mas isto das médias esconde os 53 anos que lá viveu Luís e os cinco que lá esteve Clara. Os últimos cinco mudaram-se hoje, 5 de Julho, para a sua nova casa no abonado bairro do Restelo, em Lisboa, veja-se que na vivenda ao lado, há um carro preto luzidio com motorista à espera.
São um pequeno grupo que ficou dos cerca de 150 pacientes que viviam no Bombarda em 2007, quando se começou a arquitectar o seu fecho. "Não me deixem cair, não me deixem cair", diz, aflita, uma doente idosa encurvada, mal põe os pés no tapete de entrada da nova casa. "Levante os pés, devagarinho", diz uma técnica do Bombarda que a ampara do lado direito e a trata por Armandinha. No braço esquerdo apoia-a uma técnica da Associação para o Estudo e Integração Psicossocial (Aeips), que gere a sua nova casa, e para quem ela ainda é a Dona Armanda.
A Aeips é uma instituição particular de solidariedade social a quem o Ministério da Saúde vai pagar para acolher estes doentes na primeira experiência-piloto de cuidados continuados em saúde mental, que se quer ver reproduzida pelo país para retirar os doentes dos hospitais psiquiátricos e pô-los a viver em pequenas residências na comunidade.
Tantos anos passaram juntos, doentes e pessoal do hospital, que este ritual de passagem é preciso para as técnicas se convencerem de que eles ficam bem sem elas. E sobretudo para os ir convencendo a eles, a disfarçar lágrimas mas a fingir que estão contentes, que é tudo pelo melhor, como uma mãe faria: "Então Gil, isto está giro, não é?"; ou "Isto é melhor que no hospital". "Parece uma senhora, tem aqui um jardim", diz a enfermeira Ana Paula Santos a uma doente idosa enquanto distribui sorrisos, beijos e festas na cara descendo até às cadeiras em que estão sentados, ajoelhada e a disfarçar o choro, para não desestabilizar os doentes. "Estão aqui cinco estrelas!".
As técnicas do Bombarda que os vieram deixar sabem que, na nova casa, vão cuidar bem deles, alimentá-los, cuidar-lhes da higiene. Mas também sabem que ninguém como elas armazenou tanto pormenor do tempo que passaram com eles, e do que não passaram. Sabem que a pulseira preta que Ernesto decidiu hoje por no pulso foi comprada durante uma colónia de férias em Vila Nova de Mil Fontes que ele adorou; sabem que Carmo vê mal e que a meio da refeição é preciso virar-lhe o prato ao contrário para ela conseguir comer o resto, como avisa a enfermeira Ana Paula Santos durante o primeiro almoço. "OK, é preciso ir virando", anota mentalmente e em voz alta Patrícia Jacob, psicóloga da Aeips.
"O Fernando está a repetir, o Fernando está a repetir". Está-se a falar de pedir mais comida e a enfermeira Ana Neri, grávida de cinco meses, sai por momentos da sala de refeições da casa nova para fazer o anúncio entusiasmado às colegas do Hospital Psiquiátrico Miguel Bombarda, que vão ser transferidas para o Júlio de Matos.É como se estivesse a referir-se a um filho pequeno que se está a adaptar a um mundo novo, mas que tem que deixar para trás e é como se precisasse de lhe assinalar progressos de autonomia, para se sossegar, como quem repete para dentro "Ele vai ficar bem, eles vão ficar bem".
"A casa é linda, mas é deles"
Há seis meses que se prepara esta passagem gradual, feita em grupos de cinco e sete de cada vez, para não chegarem todos em simultâneo, e muita da informação, feita de preferências e afectos - daquela que não consta dos ficheiros clínicos onde está escrito que a maioria sofre de esquizofrenia ou doença bipolar -, foi sendo passada à nova equipa de técnicos da residência para onde transitaram.
Mas há coisas que não constam da informação partilhada em reuniões. Que num jogo em que deram aos doentes a cheirar frasquinhos com aromas lhes chegaram recordações do passado, lembra a enfermeira Ana Paula Santos: o cheiro a eucalipto trouxe à memória de uma doente "o pinhal de um padrinho que era muito rico e que tinha muitos pinhais"; com o aroma a canela, uma senhora percebeu que ainda se lembrava de como se fazia arroz doce, dos tempos em que ainda cozinhava.
É Luciana Russo, assistente do Bombarda, quem sobe ao primeiro andar da casa com Gil e o ajuda a instalar-se no novo quarto. "Tens aqui umas cuecas ainda com etiqueta, usas primeiro as velhas e depois as novas, está bem?", vai dizendo à medida que lhe arruma a roupa na metade do armário que lhe cabe. Gil protesta porque vai ficar com a cama mais longe da casa de banho e a assistente sossega-o. "O Ernesto veio primeiro e já escolheu, tu nem és de dar problemas. Não fiques triste que eu venho cá visitar-te". Quando mais alguém repete que "a casa é linda" ele murmura: "A casa é linda, mas é deles".
Ernesto foi de facto dos primeiros a chegar à casa nova, há duas semanas, e hoje, calções de praia e óculos escuros, "parece um americano", brinca uma enfermeira. Faz quase as vezes de anfitrião. "Eh, mais malta!", e recebe o sr. Moutinho com um toque no ombro. "Estou contente, estou com os meus amigos", responde este doente, que aqui continua o hábito de prometer a todos com quem se cruza uma vida de prosperidade financeira, ora em escudos, ora em euros, é só ele "mandar um telegrama", "passar um cheque", "ligar para a embaixada de Espanha". Mesmo a sua própria vida parece estar sempre à beira da mudança, basta acontecer qualquer coisa: está a gostar de ali estar mas "de um momento para o outro posso-me ir embora, basta ligar para a Embaixada de Espanha que eles mandam-me chamar".
Quem, como o sr. Moutinho, não manifesta contentamento por ali estar, é incitado pelas enfermeiras do hospital. "Sr. Luís, chegaram mais amigos, está contente? Já viu, estão cá todos".
Uma série de factores reuniu este grupo de ex-doentes do Bombarda - e deixou para trás os mais de cem que ainda lá residiam em 2007 - num palacete restaurado. "O mais importante foi o conhecerem-se uns aos outros, manter a relação entre eles, para se sentirem mais seguros por estarem juntos", explica a presidente da Aeips, Teresa Duarte. É que deixar para trás o Bombarda, mais do que o espaço, é deixar para trás as pessoas do hospital. O objectivo é manterem "rostos conhecidos" naquela que se prevê que venha a ser a sua casa até ao resto dos seus dias.
Depois de anos a falar do fecho da unidade - já desde 1998 que é discutido, recorda o coordenador nacional para a Saúde Mental, Álvaro Carvalho - houve doentes que não acreditaram, como quem diz "sim, sim". No fundo com o mesmo abanar de ombros, de quem já desconfiava que fosse mesmo acabar, das funcionárias, como conta a enfermeira Idália Cardoso. Só que um dia os doentes começaram a sair, o enorme espaço a despovoar-se, o bar Clube Medina a fechar e a ser substituído por uma máquina de cafés de pôr moedas. Um dos doentes agora até estranha que lhe dêem "um bica de borla". "Só há dois ou três anos é que começámos a acreditar", confessou a educadora Clara Cintra, poucas semanas antes do encerramento.
Perante as evidências, houve quem resistisse. Fernando recusou-se a visitar a casa antes da mudança, como fizeram todos os outros. Quando lhe falavam da demolição ele respondia: "Se isto vem abaixo, deitem para cima de mim", conta Luciana Russo. Por isso foi deixado para o fim, "para ver que era mesmo verdade". Mas hoje, aqui chegado, neste seu primeiro dia, parece tranquilo e é por isso que estar a comer, e até a repetir, é digno de nota. Depois da primeira refeição na nova casa, Fernando escolhe um sofá, não se sabe porquê aquele, e responde "eu sempre gostei de estar aqui neste sofá", para logo de seguida dizer "já não sei de onde é que eu sou, eu sou de toda a parte".
Houve outros doentes renitentes. O coordenador nacional para a Saúde Mental diz que "houve recusas de doentes e de familiares", a poucos dias da transferência houve mesmo "uma senhora que disse que não queria ir, foi para o Hospital Júlio de Matos. Alguns não aguentam a mudança". Se é duro para funcionários, o que será para doentes que não conheceram mais que a casa do Bombarda, admite.
Sem o saberem, os últimos do Bombarda - o mais novo tem 57, o mais velho 92 - são uma espécie de pioneiros. Embora já haja algumas experiências pontuais de residências comunitárias para doentes mentais, esta é a primeira das futuras "unidades de cuidados continuados em saúde mental", esta classificada como sendo "de apoio máximo" porque se destina a doentes com pouca autonomia.
Quiseram começar com eles para provar "que também para doentes internados há muito tempo há oportunidade de transitarem para uma casa na comunidade", afirma a presidente da Aeips. "Só o mudarem para um novo espaço vai fazê-los desenvolver novas competências, como participar mais nas actividades da casa. Nenhum deles expressou que queria voltar."
O Bombarda era tudo
Estas duas dezenas de doentes estavam todos juntos na mesma enfermaria, a "residência psiquiátrica 4" no meio dos 4,4 hectares do hospital. Só restavam eles e os carros, porque para o fim o espaço era usado como parque de estacionamento. Abre-se a cancela para entrar um todo-o-terreno, "pode entrar", responde o segurança da Estam, a empresa que já é dona do Bombarda desde 2009. "Posso usar o multibanco?", pede outro homem que entra para o edifício principal, deserto, onde ainda há uma caixa que dá dinheiro. Ali, estiveram a retirar há pouco as últimas imagens de santos da capela que resta do convento São Vicente de Paula - uma camada de passado onde assentou o primeiro Hospital de Alienados de Portugal que, por ser na Quinta de Rilhafoles, ficou até 1910 com esse nome.
"Pelo menos com os carros sempre parece que o espaço não está tão vazio", desabafa a enfermeira Helena Kollias. Imagine-se o que é, 24 pessoas, mais a cerca de uma dezena de enfermeiras, a zanzar num espaço de uns onze edifícios abandonados onde cabem seis campos de futebol. "Isto era um mundo, agora é uma tristeza", diz uma funcionária, e é Ernesto quem nos guia pelo "mundo" que o Bombarda era, pelo menos desde que ali vive "há dez anos", diz ele, "desde há 20", corrige a educadora Clara Cintra, que ali trabalha há 25.
Comecemos por um dos sítios preferidos de Ernesto. É um banco de ripas corridas "que não apanha sol" porque está debaixo de uma árvore e onde se senta, na ponta direita, com "o rádio de pilhas, depois do lanche, do leitinho". Na porta em frente era o barbeiro, "abre todos os dias, de manhã e à noite. Está fechado" e quando diz "abre" quer dizer abria, porque agora só lhe cortam a barba às segundas e quintas, isto quando a estes dias não calha ser feriado.
Noutro ponto, Ernesto lembra-se que "era a cozinha, a cozinheira já foi embora", a comida agora vem de fora. Lança-se neste circuito fechado a andar tão rápido que é preciso correr para o apanhar. Numa das dezenas de portas fechadas que encontra pelo caminho conta que "era a escola de pintar bonecos, pintava-se muita coisa a lápis de cores, carros, aviões e casas" e imita o gesto de pintar. Nos restos de uma horta abandonada aponta o sítio onde havia "laranjas, grandes, era um homem que plantava, batatas, cebolas, nabos. Aqui eram uvas, pretas, brancas, azuis, para os doentes. Às vezes há figos. Aqui era flores, havia muitas, já morreu, o calor mata tudo. Olha ali flores" e espanta-se por ainda haver malmequeres e convida-nos a vê-los de perto. "Era muita coisa, era tudo, mas já acabou".
Num pavilhão, "aqui era a festa do Ano Novo, tudo a cantar" e cantarola "bom natal, bom natal" para depois retomar a descrição do que lá se passava, "comer e beber, festas, palmas, davam prendas aos doentes, rifas, bolos, queijos, pão com fiambre. Acabou, não há".
Há um local onde diz que "era bebés, acabou" e Clara sorri orgulhosa da memória tão remota de Ernesto, ele ainda se lembra de ali funcionar "uma creche para filhos dos funcionários. É um veterano". Um edifício térreo separado do resto deixa entrever através da janela uma superfície de mármore branco com as dimensões de um corpo humano, e Ernesto espreita também e apressa-se a explicar, "está ali um caixão. É para alguns que morrem, aqui é o funeral, hoje não há funeral" - com a morgue dá por terminado o itinerário. "O pessoal foi todo embora, tudo isto vai abaixo", repete e repete, intercalando com "é uma pena, é uma pena, isto aqui vai fechar".
Ernesto pára as frases que entoa como cantilenas e distrai-se por instantes do interior do Bombarda. Olha para o exterior, por cima de um dos muros que rodeiam o recinto hospitalar, "olha tanto prédio. Lá fora está pior, a apanhar frio e chuva, aqui não, tudo bem, lá fora está pior, mete pena. Há muita gente lá fora e não há vagas".
"Isto vai tudo abaixo, para prédios novos". Só em frente do circular pavilhão de segurança, construído para acolher os doentes perigosos, muda de discurso e assinala que, ao contrário do resto, este "está todo novo, teve obras". Em frente às ruínas dos balneários de Dona Maria II, inaugurados em 1853 para os banhos terapêuticos dos doentes dessa época, Ernesto apenas diz: "Não é do meu tempo".
Viver o futuro da psiquiatria
Ernesto não é da época em que se julgava que os banhos quentes e frios, de imersão, de duche, de estufa, de vapor, acalmavam doentes perturbados. E nunca Ernesto viveu no edifício redondo, sem arestas, para onde eram mandados os doentes ditos perigosos. Joaquim foi dos que lá esteve até à desactivação, em 2000. "Quando alguém faz asneiras vai para o pavilhão de segurança. Peguei fogo a palha em Tomar, se estivesse bom da cabeça não pegava fogo à palha. A minha mulher não está zangada comigo, disse "até logo", está em casa com a mãe". Não se sabe a que passado está a recuar.
Joaquim foi um dos 22 doentes que cometeu crimes que transitou para o Júlio de Matos. "Foi-se a malta toda", lamenta Ernesto. Quando em 2007 se começou a falar do fecho estavam no hospital 140 doentes "de evolução prolongada", eufemismo para dizer são dos que lá passaram grande parte da vida, muitos porque já não tinham família ou esta não tinha condições para os acolher. Cerca de 40 foram para o Júlio de Matos, diz Ricardo França Jardim, ex-director clínico do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa. Muitos eram doentes que tinham potencial de reabilitação e ficaram em residências onde mantêm alguma autonomia dentro do recinto do hospital.
Os mais idosos foram mandados para lares. Uma dessas transferências, em 2009, gerou polémica porque o lar acabou por se revelar ilegal e foi encerrado pela ASAE (Autoridade de Segurança Alimentar e Económica). Cerca de 20 dos 142 utentes (para uma lotação de 40) eram doentes do Bombarda. Havia pessoas a dormir em quartos sem janela na cave e no sótão. Ricardo França Jardim diz que esses doentes foram transferidos para outras instituições e garante que todos os doentes do Bombarda que estão em lares continuam a ser visitados "pelo menos duas vezes por ano" por uma equipa da unidade.
Quando em 2016 terminar a aplicação do Plano Nacional de Saúde Mental, o objectivo é que quatro mil doentes - 1100 estão ainda em hospitais psiquiátricos públicos, 2900 estão em instituições pertencentes a ordens religiosas - tenham o mesmo destino que estes pacientes: a transferência para pequenas residências na comunidade. De acordo com o modelo que agora se privilegia, eles estão a viver o futuro da psiquiatria. Mas no Bombarda está o passado.
Com os que foram para o Júlio de Matos, os que foram e vão morrer em lares de idosos, a minoria dos que a família acolheu de volta e os 24 que transitam para o palacete do Restelo, termina a história do primeiro hospital psiquiátrico de Portugal e fecha-se um ciclo da história da psiquiatria no país.
Uma arrecadação de loucos
Notas clínicas de um doente de Aveiro entrado em 30 de Abril de 1901: admitido com "exaltação maníaca", nas observações clínicas escreve-se que passava "por estados de brincadeira, de risos sem motivo, ilusões". Morre de gastroenterite. Em 1904 havia 725 doentes internados na unidade, nesse ano morreram 200.
Antes de existir este hospital psiqui? ?trico, este tipo de doentes estavam num sítio à parte no Hospital Real de São José e Annexos, que "era uma arrecadação de loucos, um armazém onde as condições de habitabilidade eram tão más que morriam dezenas de doentes", conta França Jardim. O médico Bernardino António Gomes descreve, em 1841, o local: "doidas nuas e desgrenhadas, encerradas em um cubículo escuro e infecto, onde mal podem obter um feixe de palha em que possam revolver-se".
Mesmo inaugurado o novo hospital, as condições demoraram a melhorar. "O Bombarda, até ao início do século XX, foi objectivamente um depósito de doentes mantidos arredados dos olhares sociais e dos seus supostos perigos. O corpo clínico durante o século XIX eram dois médicos para 500 e tal doentes", refere o médico.
O objectivo era a contenção e é impressionante uma fotografia, sem nome, de um doente fixado como se estivesse a abraçar-se a si mesmo, congelado na posição de colete-de-forças mas sem o ter vestido. "Era da habituação, passavam dias e noites com colete-de-forças", explica o enfermeiro-director do Centro Hospital Psiquiátrico de Lisboa, Caetano Galhanas.
Numa outra fase, a psiquiatria, que sempre foi parente pobre da medicina, entrou numa fase quase laboratorial. São desses tempos as centenas de fotografias de doentes, entre 1920 e 1930, de frente, de perfil, rosto, corpo inteiro, nus, como se fossem criminosos, ou algumas até a fazer lembrar campos de concentração - caras encovadas, corpos esqueléticos, com fardas de riscas todas iguais. "Vestiam-se como os mais miseráveis dos miseráveis. As famílias não gastavam com eles dinheiro e o hospital também não", nota António Fernando Cascais, professor do Departamento de Ciências da Comunicação da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, que está a investigar parte deste espólio.
Estas imagens coincidem com uma fase da psiquiatria em que se acreditava que os corpos revelavam doença, como se fosse possível falar de "corpos desviantes", nota. "A fotografia era um auxiliar de diagnóstico", explica o investigador, que está a estudar parte do arquivo fotográfico do Bombarda no âmbito do projecto da História da Cultura Visual da Medicina em Portugal que tem em curso.
Do psiquiatra alemão Ernst Kretschmer chegam-nos três tipos de constituição corporal: no seu livro de 1921, A Estrutura do Corpo e o Carácter, diz-nos que haveria pessoas de tipo pícnico (pequenos e gordos) que nas suas manifestações patológicas tenderiam a ser maníaco-depressivos, as de tipo leptossómico (magras) que teriam predisposição para esquizofrenia, e as atléticas (musculosas) que seriam dadas à epilepsia
Viajando agora pelos ficheiros clínicos, Cascais verificou que "a esmagadora maioria dos doentes são classificados como indigentes. Eram os pobres dos pobres, os que agora se chamariam sem-abrigo", e que "eram recolhidos na rua pela polícia". A morada que surgia na ficha de admissão era muitas vezes a do comando da polícia. Uma excepção são as pessoas vindas "de meios favorecidos. Há um ou outro médico e enfermeiro, há quadros médios, enviados pela família", classificados como "pensionistas". Uma fotografia tirada por um familiar mostra uma mulher bem vestida a bordo de um barco a vapor com uma nota - "falando ao mar (em delírio)".
Nos ficheiros que consultou encontra-se também "um número muito elevado de prostitutas com diagnóstico de sífilis", doença que quando não é tratada se assemelha a perturbações maníaco-depressivas, explica Álvaro Carvalho. Desde a década de 1930, "na esmagadora maioria o diagnóstico é o alcoolismo, já com sintomas psiquiátricos". Mas também a epilepsia.
Um doente de Arronches, homem, casado, 34 anos, foi admitido "provisoriamente a 9 de Maio de 1899", um mês depois "foi convertida em definitiva a admissão provisória por se ter verificado a existência de alienação mental, sendo classificado de loucura epiléptica". Última nota: "Evadido a 18 de Janeiro de 1902".
O próprio Bombarda diz nos seus escritos que o epiléptico "é um perigo social, pela propensão maldosa do seu espírito". Teria que chegar a década 1950 para que a epilepsia deixasse de ser uma doença psiquiátrica e passasse para o domínio da neurologia, explica Álvaro Carvalho.
Notas clínicas de doente entrado em Julho de 1901: "loucura com agitação furiosa maníaca ou religiosa ou de perseguição. Muitos ataques, agitação furiosa, propensões maléficas". "Estado à saída: o mesmo".
Electrochoques punitivos
"Face à pouca eficácia curativa das terapias existentes, até aos anos 1960 tratava-se essencialmente de controlo social", nota António Fernando Cascais. Caso dos electrochoques, "que não curavam, controlavam sintomas como a agitação, o delírio" e mostra uma foto rara, de uma dessas sessões (foto na página 20), há duas no espólio. "Naquele tempo o electrochoque era para meter as pessoas na ordem".
Estatísticas de 1946 sobre as terapias usadas dão conta de cerca de 800 doentes internados, a quem, no total, foram dados 3527 electrochoques, 150.137 tratamentos de insulinoterapia (coma e convulsões induzidas por insulina destinadas a tratar a esquizofrenia), sondagem por recusa de alimentação a 122 -há uma foto de um doente amarrado a uma cama, com um cone com um fio colocado na boca por onde o estão à alimentar à força (ver página 20) - e três lobotomias. "Fazia-se um uso restrito desta técnica, como pretendia Egas Moniz", sublinha António Fernando Cascais. "Este mundo acabou nos anos 1960", nota.
O ponto de viragem que marca o baptismo da psiquiatria moderna é o nascimento do primeiro psicofármaco, que surge na década de 1950 mas que se generaliza apenas nos anos 1960. Mas a medicação não basta.
É também da década de 1960 que se afirma a terapia ocupacional e no espólio do Bombarda já se vêem fotos a preto e brancode mulheres a bordar, homens a trabalhar na horta, doentes a cortar batatas. "A noção de reabilitação psicossocial tem 15 anos. Eram casos perdidos, agora são reintegráveis na sociedade", comenta o coordenador nacional de Saúde Mental.
Há meio século, "começou a corrente da desinstitucionalização dos já chamados doentes psiquiátricos ou doentes mentais. Começaram a poder ser devolvidos à família. Há doentes que lá ficam porque foram abandonados", conta o investigador. António Fernando Cascais lembra o primeiro bailarino internacional português, Valentim de Barros, que lá foi deixado pela mãe, supostamente por ser homossexual e se travestir. Morreu em 1986, esteve lá 48 anos.
Mas não é preciso recuar tanto para perceber as mudanças, vagarosas, que o mundo da doença mental foi sofrendo. Idália Cardoso, que ficará como a última enfermeira-chefe do Hospital Miguel Bombarda, lembra-se de alterações no seu tempo. Uma delas foi quando os doentes deixaram de andar de uniformes iguais, prática que se lembra de existir até final da década de 1990, para passarem a vestir a sua própria roupa, e o efeito que isso teve nas relações entre as pessoas. "Passaram a cuidar mais da imagem, recebiam elogios".
"Até aos anos 1980 viveram em grandes camaratas, não tinham armários. Só há 10 a 15 anos passaram a ter espaço para os seus pertences", recorda Álvaro Carvalho. As primeiras experiências de desinstitucionalização foram ainda em 1980. "Portugal está atrasado 20 a 30 anos. Os hospitais psiquiátricos ingleses começaram a fechar nos anos 1980", diz Álvaro Carvalho.
"Estão vários capítulos da psiquiatria ali no edifício". Para França Jardim, a quem coube executar o fecho do Bombarda, "é o fim de um capítulo. O Bombarda representa o paradigma do século XIX, do louco objecto ensimesmado, do sujeito alienado que deve ser protegido e de quem a sociedade precisa de ser protegida".
E os gatos?
Ernesto continua a repetir frases: se no Bombarda dizia "isto vai abaixo, mete pena", na casa do Restelo, sorriso largo, diz que "aqui está-se melhor, aqui está-se bem". Mas há momentos em que faz pausas que o transportam para a sua anterior morada. "E os gatos? Estão a alimentar os gatinhos?", uma tarefa que tinha a seu cargo. A enfermeira Idália responde que sim. "E a Clarinha?". Refere-se à educadora do Bombarda e respondem-lhe que "não pôde vir" mas que trouxeram "uma foto da Clara".
De cada vez que deixaram na casa do Restelo mais colegas do Bombarda ele perguntou sempre, para ter a certeza, "aquilo vai tudo abaixo?". A resposta é sim, pelo menos o mundo de Ernesto. Vão manter-se em pé o balneário, o pavilhão de segurança e um terço do pavilhão principal, onde fica o gabinete em que foi assassinado Miguel Bombarda, informa o arquitecto que concebeu o projecto, Belém Lima.
A horta do Bombarda onde ainda havia malmequeres, o pavilhão onde se cantava "bom Natal, bom Natal", o banco de ripas onde Ernesto parava ao fim da tarde para ouvir telefonia vão dar lugar a seis torres de apartamentos onde poderão passar a viver 600 pessoas com centenas de carros debaixo dos pés.
Na altura dos últimos abraços, Ernesto volta a repetir "aqui está-se bem, aqui está-se melhor", como uma ladainha de reconforto. Mas fraqueja e ainda pede às técnicas para voltar, "quero ir lá ver a malta". A enfermeira Idália Cardoso responde, à beira do choro, que "a malta está toda aqui. Já não está lá ninguém" e fecha a porta da casa. Antes de sair, ainda o Sr Moutinho tem tempo para lhe prometer "eu não me esqueço de si, mando-lhe 430 mil escudos". "Fico à espera", responde. Cá fora pode chorar à vontade.
Lá dentro, um doente ainda diz "eu pertenço ao Bombarda". Já Ernesto está de saída para o café mais perto da nova casa, que agora se chama Galáxia, e aonde aprendeu a ir para tomar uma bica e comer um bolo. Mas Maria Júlia Martinho, a sua mãe, não acredita que o filho volte a conseguir aprender a ir a casa sozinho a partir do Restelo. Ela vai tentar ensinar-lhe, mas é capaz de levar "o resto da vida toda".
cgomes@publico.pt
Os nomes dos doentes utilizados nesta
reportagem são fictícios