Portas da cidade velha agora são obras de arte

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fotos: Jorge Marmelo

Depois da poncha, dos restaurantes, do teleférico, do Museu de Arte Contemporânea e do Madeira Story Center, o Bairro de Santa Maria tem um novo emblema. Embora fechadas, as portas das velhas casas abriram-se à arte e encheram de cor um bairro degradado. Quem sabe se o projecto não alastra a outras ruas do Funchal e a outra povoações da ilha?

Em 1999, Chicago inventou a Cow Parade. Entregou vacas em fibra de vidro a artistas locais, para que as decorassem como lhes parecesse melhor - e criou um fenómeno global que já se espalhou por 50 cidades em diferentes continentes. A coisa funciona tão bem que só em Portugal, e para não ir mais longe, já se fizeram iniciativas semelhantes com ovos (Gaia), galos (em Barcelos, evidentemente), manequins (Porto), snoopies (Lisboa) e porcos (Évora). No Funchal, seguindo o exemplo da cidade italiana de Valloria, não se semearam objectos de plástico pelas ruas - entregaram-se as portas das casas degradadas da zona antiga aos artistas madeirenses.

A Arte de Portas Abertas arrancou há quatro meses, por iniciativa de um fotógrafo espanhol, José Maria Montero, aka Zyberchema. Os resultados já são bem visíveis: a histórica Rua de Santa Maria tem já dezenas de portas inundadas pela "festa de luz e cor".

"Sempre que passava pela zona velha do Funchal, as pessoas perguntavam-me por que é que eu só fotografava coisas velhas e deterioradas. Eu respondia-lhes que fotografava aquilo que via. Foi por isso que me ocorreu apresentar o projecto", conta Zyberchema.

Em Agosto do ano passado, o fotógrafo deu a conhecer o Arte de Portas Abertas no âmbito do PechaKucha - um movimento internacional criado no Japão e que reúne arquitectos, designers e artistas plásticos em cerca de 300 cidades de todo o mundo - e foi intervencionada a primeira porta, na Rua da Carreira. O projecto foi, depois, apresentado à Câmara do Funchal, com o apoio do anterior secretário Regional de Turismo João Carlos Abreu, um dos principais dinamizadores de iniciativas de reanimação da cidade velha. Mas só em Abril, a pretexto da abertura de um novo restaurante na Rua de Santa Maria, o projecto foi aprovado pela autarquia, que fornece as tintas para o trabalho dos artistas.

De então para cá, as portas foram lixadas, raspadas e transformadas em verdadeiras telas. A qualquer hora se vêem ali os artistas trabalhando com os pincéis e tintas, ou até grupos de alunos afadigando-se, em pleno sábado de Julho, para dar vida e cor a outro velho prédio de uma da mais antigas e pitorescas ruas do Funchal.

As folhas de papel de jornal nas soleiras pintalgadas testemunham a passagem recente da lenta inundação da cor por uma artéria que, desde a colonização da Madeira, é uma das mais afectadas pelas cheias cíclicas como a do ano passado. Os turistas passam e comentam - é impossível, aliás, não reparar em intervenções como a de José Fernandes, que transformou um tosco portão de chapa ondulada, fechado com um cadeado, na imponente escultura de metal que tomou conta da porta com o número 135. A casa em volta continua sem janelas e com as obras de ampliação eternamente inacabadas, mas já quase não se repara nesse contexto desolador.

É o que sucede, aliás, na generalidade dos edifícios cujas portas estão a ser intervencionadas. São, na maioria, prédios abandonados, devolutos e, em alguns casos, que até já ruíram parcialmente, mas que agora adquirem uma nova face. No número 138, por exemplo, havia apenas uma fachada entaipada e já sem recheio. Andreia Nóbrega transformou-a num elemento cénico digno das histórias de fadas, com a janela rodeada de véus de tule e uma peça de mobiliário à qual só falta responder à pergunta: "Espelho, espelho meu, há alguma casa mais bonita do que eu?"

A mancha colorida das artes plásticas já começou, entretanto, a alastrar a outras artérias perpendiculares. Há produções muito ingénuas e quase infantis, mas também verdadeiras obras de arte e com assinaturas tão facilmente reconhecíveis como a da designer de interiores Nini Andrade Silva, que transformou a entrada da associação Abraço, no número 109. Uma simples caminhada de 200 metros é suficiente, aliás, para encontrar obras de Marcos Milewski, Helena Berenguer, Oleksandr Gonchorov ou Luz Henriques. E os restaurantes e bares também aderiram à moda das portas pintadas.

Lançada a faísca...

"No início havia muitas reticências e desconfiança por parte dos moradores. E foi complicado contactar cada um dos proprietários e obter autorização para fazer a intervenção nas portas", conta Zyberchema. "Mas sempre achei que o projecto ia ter grande aceitação e repercussão na vida da ilha. Só faltava lançar a faísca", acrescenta.

"A adesão popular tem sido enorme. O projecto já ultrapassou o âmbito dos artistas e há espontâneos a pintar as portas das suas casas", constata o empresário António Trindade, um dos elementos da comissão municipal que tem vindo a discutir formas de reanimar uma zona degradada e algo estigmatizada.

Uma parte significativa dos edifícios da cidade velha está, aliás, devoluta e a ameaçar ruína, apesar do constante corrupio dos turistas que ali vão para aceder ao teleférico, para visitar o Museu de Arte Contemporânea, para ver o Madeira Story Center ou em busca dos muitos restaurantes que ali foram aparecendo ao longo dos anos - e para experimentar a poncha, o típico cocktail madeirense que mistura a aguardente de cana, o sumo da laranja e do limão e o mel.

Dia & noite

"Era muito raro as pessoas do Funchal virem a esta parte da cidade", conta Fabíola Pereira, uma das responsáveis pela organização do ON, um festival bienal que também leva os artistas à cidade velha e os põe a pintar, a esculpir e fazer música nas ruas. "Vinha-se aqui só por causa da poncha. Agora as coisas estão a mudar, a zona está a voltar a estar na moda. Mas é preciso fazer alguma coisa para que esta zona não se limite à poncha", acrescenta.

A poncha continua, ainda assim, a ser o principal motor da multidão que, nas noites de sexta e sábado, rodeia o bar Venda Velha e entope literalmente a circulação automóvel entre as ruas de Dom Carlos e de Latino Coelho. Fica toda a gente a conversar, segurando na mão os copos plásticos com a famosa bebida cor de laranja. Mas quem seja menos afeito à imobilidade etílica pode agora aproveitar para esticar as pernas e apreciar as mais recentes obras de arte pública do Funchal.

"As portas podem ser um bom Leitmotiv", diz António Trindade. "Mas é necessário que este tipo de iniciativas e de animação não nos afaste do fundamental, que é encontrar forma de revitalizar e reocupar esta zona durante todo o dia", alerta. Talvez, um dia destes, os turistas vão a Santa Maria de propósito para ver o bairro das portas pintadas.

Depois de Valloria se ter tornado conhecida internacionalmente, Zyberchema não descarta a possibilidade de ver a Madeira transformada na ilha das portas pintadas. "Quem sabe se o projecto não alastra a outras ruas do Funchal e a outra povoações da ilha. Por que não?"

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