A Guerra Civil Americana não acabou

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KEVIN LAMARQUE/REUTERS

Para o campo de batalha, e em força: o 150º aniversário da Guerra Civil é a olimpíada dos reenactors, americanos que esquecem o século XXI e regressam ao século XIX por uns dias. Nem tudo o vento levou - a guerra e as suas causas continuam a dividir o país

Para fazer de soldado da Guerra Civil Americana sob o sol de Julho é preciso motivação, mas isso é o que não falta a Brian Payne. Enquanto turistas de t-shirt andam de um lado para o outro com mapas de suor nas costas, ele está vestido com umas calças quentes de algodão e uma camisa de flanela com mangas compridas, tal como um soldado do Sul estaria há 150 anos, quando a primeira grande batalha da Guerra Civil foi travada em Manassas, na Virgínia, a 40 quilómetros de Washington.

Para reenactors como Brian Payne - americanos do século XXI que vestem uniformes do século XIX e participam em reconstituições da Guerra Civil - a autenticidade é tudo, do vestuário ao pêlo facial (a barba circum-navega o rosto de Brian como um U), por isso nunca o apanharão sequer com uma garrafa de água. Felizmente, ele tem um cantil a tiracolo.

Telemóvel? "Só trouxe porque a mulher insiste." Brian não diz "a minha mulher", mas "a mulher", como se fosse um arquétipo. "As mulheres nem sempre entendem. "Querida, vou a um reenactment [reconstituição]." "Tens o teu telemóvel contigo?" "Não." "Então leva-o." Mas está desligado, está na tenda, só hei-de ligá-lo logo para ver se tenho chamadas."

Até 2014, a América comemora o 150º aniversário do episódio mais sangrento da sua História, quando 11 estados ameaçaram separar-se do resto do país para manter a escravatura e Norte e Sul se envolveram numa longa guerra de quatro anos que terminou com a rendição do último, o triunfo do abolicionismo, e 620 mil mortos - mais do que a soma de todas as guerras em que os Estados Unidos participaram desde então.

A História ao vivo

A efeméride é tão rara como um cometa para os reenactors, que chegarão aos milhares dentro de dias, vindos de vários pontos do país, atraídos pela oportunidade de uma vida: participar numa recriação da Batalha de Manassas no mesmo lugar onde foi travada originalmente. Ou quase: da última vez em que ela foi encenada, durante o centenário, em 1961, o local ficou tão danificado que o Serviço Nacional de Parques passou a proibir esse tipo de cerimónia nestes sítios históricos. A batalha ocorrerá numa propriedade privada, próxima do parque. E por muito rigor oitocentista que os reenactors se auto-imponham, ninguém arrisca muito mais do que uma insolação.

Graças ao 150º aniversário, há actividades comemorativas quase todas as semanas até ao final do ano. "O meu grupo tem 38 eventos este ano", diz Brian Payne. "Se eu quisesse, podia fazer um todos os fins-de-semana. Mas a mulher faz finca-pé e diz: "A relva precisa de ser aparada"..." No fim-de-semana anterior ficou em casa, por isso agora pode passar quatro dias e quatro noites acampado no Parque Nacional da Batalha de Manassas, a dormir ao relento e a falar com turistas como se fosse um soldado de 1861. Os reenactors são como actores amadores que estudam e representam eternamente o mesmo papel. O que move Brian Payne nem sequer é a emoção da batalha, a descarga de adrenalina que pode sobrevir com a visão de tantas armas e tantos uniformes. "Isso é bom para os tipos mais novos, que nunca participaram numa batalha. Nós, os mais velhos e experientes, vamos ficar aqui. Aqui é que se aprende."

Aqui é um pequeno acampamento numa das colinas do Parque de Manassas, onde os reenactors estão à disposição dos visitantes, com todo o seu arsenal privado de artefactos da época ou réplicas. Brian chama a isto "interpretar a História ao vivo". Ele acredita que é um complemento necessário ao ensino que se faz nas escolas. "Como é que um aluno aprende Matemática? Praticando Matemática. Inglês? Falando e lendo. Mas como é que aprende História? Lendo. Isso é muito entediante para os miúdos de hoje, sobretudo num mundo de iPads, computadores e telemóveis de última geração. A única forma de experimentar a História é exercê-la fisicamente."

América dividida

Mas não é como se a Guerra Civil estivesse em riscos de esquecimento. Robert Sutton, o historiador do Serviço Nacional de Parques, ele próprio um estudioso deste período da História americana, diz que não consegue "perceber inteiramente porque existe tanto interesse na Guerra Civil" - ao ponto de, todos os anos, soldados britânicos descerem sobre Manassas para estudar as suas batalhas.

Todo este folclore parece evidenciar um fascínio com a história militar americana. Veja-se o que Robert Sutton pensa sobre os reenactors. "Toda a gente tem hobbies. Por exemplo, eu colecciono moedas. Há quem goste de brincar aos soldados. [Os reenactors] são tipos que brincaram aos soldados quando eram pequenos e continuam a brincar aos soldados em adultos. É a única explicação que tenho."

Mas o 150º aniversário também deu um novo impulso a certos sectores nostálgicos para glorificarem a Secessão, sem fazer referência à escravatura, mostrando até que ponto a guerra e as suas causas continuam a dividir o país. As cores dos mapas eleitorais evidenciam, hoje, sensivelmente as mesmas linhas de separação que caracterizavam os Estados Unidos na véspera da Guerra Civil.

Ainda existe um Sul americano e o orgulho sulista continua aceso. Viajando pelo Sul, ainda se vêem bandeiras da Confederação penduradas nos alpendres das casas. E ainda existe um Norte que vê nisto a manifestação de um Sul retrógado e racista.

Em Dezembro, a organização Sons of the Confederate Veterans, formada por descendentes de soldados da Confederação, realizou um "Baile da Secessão" junto ao antigo porto esclavagista de Charleston, na Carolina do Sul. A National Association for the Advancement of Colored People (NAACP), associação ligada ao movimento dos direitos civis, reagiu montando uma vigília à porta do local.

A causa do Sul

O Sul perdeu a guerra - seria de esperar que não fosse uma causa para celebração e, no entanto, parece o mais activo. "Uma sondagem recente mostra que ainda existe um número de pessoas no país que pensa que a Guerra Civil não foi motivada pela escravatura, mas porque alguns estados reclamaram o direito à sua autonomia", nota Robert Sutton.

Pergunte-se, por exemplo, a Brian Payne: ao exibir orgulhosamente a farda da Confederação, nunca sentiu que estava lado errado da História?

"Não se pode dizer que um lado estava certo e o outro estava errado. Os dois lados lutaram por aquilo em que acreditavam."

Mas quando se luta por algo que é errado, insistimos...

"Mas o que é que é errado?", atalha Brian.

A escravatura?

"Não era por isso que o soldado da Confederação estava a lutar. Os estados confederados queriam governar-se a si próprios, não queriam um rei em Washington a ditar-lhes como deveriam viver, da mesma forma que durante a Revolução as colónias lutaram contra Inglaterra, porque não queriam um rei em Londres a dizer-lhes como deveriam viver. Muitas pessoas no Sul comparam a Guerra da Secessão a uma segunda guerra pela independência."

O argumento de Brian Payne não é errado, como nota Robert Sutton. O vice-presidente da Confederação, Alexander Stephens, fez um discurso em Março de 1861 reclamando o direito destes estados a constituírem o seu próprio governo - o primeiro governo na História mundial criado para proteger a escravatura.

O revisionismo começou no primeiro dia a seguir ao fim da guerra, diz Robert Sutton. Quase imediatamente, o Sul começou a produzir literatura para tentar "reler a história da Guerra Civil". Mas a teoria do direito de soberania dos estados coincide hoje com a ascensão do Tea Party, um movimento popular notório pela sua hostilidade em relação a um governo centralizador. Ao mesmo tempo, no último ano, alguns estados procuraram desafiar a autoridade federal nos tribunais ou através de legislação própria, em temas quentes como a imigração (Arizona) ou o novo sistema de saúde (Carolina do Sul).

"Muitos dos problemas que eles [os estados confederados] tinham em 1860...", diz Brian Payne, fazendo uma pausa para dar ênfase e completando a frase num sussurro, "... nós temos hoje." "Costuma dizer-se que as pessoas nunca aprendem com a História. É por isso que é tão importante que este período não seja esquecido."

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