Morreu Maria Lúcia Lepecki, a escritora que tinha uma “delícia” pela língua portuguesa
Maria Lúcia Lepecki nasceu em Araxá, no estado de Minas Gerais, no Brasil, mas estava radicada há várias décadas em Portugal, sendo uma profunda conhecedora da literatura portuguesa, que leccionou na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, onde foi professora catedrática a partir de 1981.
Brasileira de nascimento e portuguesa por casamento, era autora de obras como “O romance português contemporâneo na busca da história e da historicidade, “Uma questão de ouvido: ensaios de retórica e interpretação literária” ou “Meridianos do texto”.
Camilo Castelo Branco foi o centro da sua tese de doutoramento, em 1967, que iniciou anos antes na Universidade de Sorbonne, em Paris, e que viria a terminar na Universidade Federal de Minas Gerais, no Brasil. Fora no Brasil que terminara a licenciatura em Filologia Românica.
Começou a aprender latim, inglês e francês com a mãe, a partir dos nove anos. Numa autobiografia publicada em Dezembro de 2006 no Jornal de Letras, a que deu o nome de “Historinha de vida”, lembra ter crescido, no Brasil, numa casa “cheia de livros e de conversas interessantes”. “Era pouco dada a brincadeiras, de modo que a mamãe teve o bom-senso de me ensinar a ler aos cinco anos. Foi um sossego, a partir dali não me faltou diversão. Lia obsessivamente, do Monteiro Lobato ao Viriato Correia ou o Francisco Marins, e mais o que escarafunchava nas estantes do pai. Dickens, Scott, Dumas e até um livro de capa azul, ‘O Primo Bazílio’. Devorei-o, às escondidas, aos dez anos. Não entendi da missa a metade. Confidenciei o mal-feito ao meu pai, ia eu na casa dos quarenta. E ele: ‘Não te fez mal nenhum, filha’. Teve razão”.
No mesmo texto, recorda que lhe perguntavam com frequência se tinha tido dificuldade em adaptar-se a Portugal. “Na verdade, não”, escreve, para depois acrescentar: “Talvez por causa do meu pai, que, muito conhecedor de História e de Literatura portuguesas, trazia sempre à baila, a propósito ou talvez não, coisas tão diferentes como a “Crónica de Dom João I”, o Eça ou o Marquês de Pombal. Isto para não falar dos três exemplares de “Os Lusíadas”, esparramados estrategicamente pela casa: um no escritório, outro na mesinha da saleta e o terceiro na mesa de cabeceira do pai. Portugal integrava o imaginário da nossa casa. Isto seguramente me facilitou a vida”.
Colaborava em várias revistas e jornais portugueses e estrangeiros, sobretudo na área da literatura, como a Colóquio/Letras e o suplemento literário do Estado de São Paulo.
Em 2004, recebeu o prémio de ensaio literário da Associação Portuguesa de Escritores.
Em 2008, por ocasião do encontro literário Correntes d´Escritas, na Póvoa de Varzim, manifestou-se publicamente contra o novo acordo ortográfico. “"Eu sempre achei que o acordo ortográfico não é preciso: um brasileiro lê perfeitamente a ortografia portuguesa e um português lê perfeitamente a ortografia brasileira”, sustentou na altura.
O escritor Baptista-Bastos, que à Lusa confirmou a morte da ensaísta, referiu-se a Maria Lúcia Lepecki como uma “ensaísta notabilíssima e uma defensora da cultura portuguesa”.
Helena Roseta – que a conheceu no final dos anos 1990 quando organizava o espólio de Natália Correia e de quem Lepecki foi apoiante na candidatura à Câmara de Lisboa, em 2007 – recorda-a pelo “sentido físico muito forte” na forma como comunicava.
A graça que tinha “em pôr as coisas”, diz, traduzia “a delícia pela língua portuguesa” que a acompanhavam na soltura e no riso que lhe vinham de uma “grande vontade de viver”. Força que, recorda Roseta, deixava notar até numa certa sobranceria perante a doença. “Lembro-me, há uns anos, de me ter dito que tinha vencido um ‘cancrito’”.
Notícia corrigida às 12h38 de 25 de Julho