Caso News of the World: no subterrâneo dos poderes
Qual a essência do caso News of the World? Para lá chegar, convém antes fazer um apanhado dos aspectos relevantes.
A direcção e a redacção do News of the World padronizaram as escutas ilegais como fonte de informação. Se quase 13 mil pessoas foram escutadas, tratava-se de uma verdadeira indústria de obtenção de informações por meios ilícitos. O caso revela o caminho mais fácil dum "jornalismo" industrializado sobre temas já por si duvidosos ou lamentáveis, como a vida privada e íntima de pessoas desconhecidas ou com notoriedade social. A industrialização dos métodos ilícitos torna impossível que a estrutura de topo da News Corporation ignorasse o assunto, tanto mais que houve no passado investigações e condenações judiciais.
As audições parlamentares de terça-feira aos Murdoch e à sua mordoma-mor, Rebekah Brooks, permitiram-lhes limpar-se de responsabilidades e ao campo político acalmar o povo. Embora desvelando factos sobre as escutas telefónicas, não tiveram consequências para os protagonistas (News Corporation, Scotland Ward, políticos).
O jornalismo tablóide não é todo como este e não recorre necessariamente a meios ilícitos. Acresce que nenhuma informação do News of the World foi desmentida. O caso ganhou esta dimensão por causa de escutas aos telemóveis duma criança assassinada e de soldados mortos em combate, não tendo havido referência às escutas a pessoas destacadas. Ninguém nas audições parlamentares de terça-feira se referiu às escutas da realeza e dos próprios políticos. A atenção concentrou-se, ou desviou-se, quase só para a ilicitude das escutas em geral e para as relações do império Murdoch com o actual governo.
O tablóides ocupam na cultura britânica o lugar de "amigos do povo" que revelam as bondades e os podres das celebridades "boas" e das "más". Ao abusar, pelas escutas, de cidadãos comuns, ainda por cima mortos, os responsáveis do News of the World quebraram a relação político-social difusa do jornal com os leitores. O News of the World fecha por isso. Se "só" fizesse escutas a famosos, provavelmente continuaria.
A conivência da polícia com a News Corporation e o News of the World em particular revela a solução final dum tipo de jornalismo altamente profissional e competitivo na área da informação de crimes e ilegalidades: o império Murdoch comprou as fontes e profissionalizou as relações ilícitas com elas. É outro elemento da industrialização deste "jornalismo".
O caso também serviu para se saber que o anterior primeiro-ministro, Gordon Brown, e o actual, David Cameron, recebiam Rupert Murdoch na sede do governo, mas pretendiam manter segredo desses encontros, fazendo-os entrar pela porta das traseiras. Cameron encontrou-se 26 vezes em pouco mais de um ano com chefes do império Murdoch. Esta relação dos governos com um império mediático é altamente suspeita, por poder ferir o interesse público.
Até aqui, este escândalo é principalmente um caso de polícia: escutas, ilegalidades, corrupção. Mas o envolvimento, além do poder mediático da News Corporation e do poder policial da Scotland Yard, de uma terceira área de poder, o poder político dos sucessivos governos dos dois maiores partidos britânicos, dá uma dimensão essencial a este escândalo. A relação profunda da News Corporation com o sistema político britânico é inquietante. As relações da News Corporation com o poder político remontam ao tempo de Margaret Thatcher, mas nesse caso era ela quem dominava a situação (pretendia liberalizar o universo dos media nas Ilhas Britânicas). O mesmo não sucedeu com Tony Blair: antes de chegar ao poder, ele deu literalmente a volta ao mundo para se encontrar com os responsáveis da News Corporation na Austrália. A troco de apoio, permitiu o reforço e a intervenção da empresa nos meios políticos e empresariais. Desde aí, as relações entre o poder político e o poder mediático tornaram-se incestuosas. Em vez do habitual equilíbrio entre os dois poderes, muitos políticos sentiram-se reféns da devassa da imprensa tablóide. Quem criticou o poder império Murdoch foi achincalhado pelos seus jornais.
O negócio da compra BSkyB explica não só a intensidade da relação entre o império Murdoch e os governos de Brown e Cameron como justifica a acção da imprensa adversa, interessada em impedir o crescimento do império.
As consequências do escândalo serão importantes, mas no essencial tudo continuará, porque a sociedade é a mesma, o sistema político é o mesmo, os actores institucionais e mediáticos são os mesmos. Fez ontem um ano que apresentei no Congresso da International Association for Media and Communication Research (IAMCR) uma comunicação sobre o tema da actual relação entre os media e a política. Partindo de casos ocorridos nas democracias mais desenvolvidas, mas também nas democracias mais jovens e em regimes autoritários, interroguei-me se não estaremos perante um novo modelo na relação entre a política e os media.
Segundo a tese apresentada, o desenvolvimento exponencial das comunicações e das janelas de divulgação de notícias e informações fragiliza o poder político, especialmente em democracia. O poder democrático baseia-se na comunicação, a qual permite, sem recurso ao seu monopólio da violência, o exercício da autoridade e o acatamento da ordem e das leis por consenso da sociedade. Actualmente, o poder político tem de competir pela atenção dos cidadãos com uma miríade de outros meios de comunicação, protagonistas políticos, empresas, indústrias do entretimento e também com uma sociedade civil mais empoderada pela actividade de milhões de novas vozes.
Ora, se não conseguir obter a atenção dos cidadãos, o poder político perde o seu próprio carácter de poder. Deste modo, os actores políticos no poder procuram novos meios para permanecerem protagonistas num mundo comunicacional competitivo. Esse meios podem ser legítimos, como foi o metralhar de marketing governamental pelo governo Guterres, ou podem ser ilegítimos, como as intervenções dos governos de Santana Lopes e de Sócrates nos media. Naquela comunicação, tentei sistematizar os tipos de acções do poder político, quer legítimas, quer ilegítimas, em democracias, em quase-ditaduras (Rússia, América Latina) e mesmo em ditaduras modernas (China). No actual caso britânico, verifica-se que a necessidade de aparecer e com "boa imprensa" nos media privados do grupo Murdoch acabou por colocar políticos individualmente e as próprias instituições, como a polícia e o governo, à mercê dos interesses do império. Esses interesses são primordialmente empresariais: parafraseando o dito famoso de Deng Xiaoping, aos Murdoch tanto lhes faz que o gato em Downing Street seja preto ou seja branco - desde que favoreça os seus negócios.
Aconteceu no Reino Unido o inverso da evolução noutros tantos países, incluindo em Portugal com os governos anteriores: para enfrentar uma concorrência caótica e feroz dos velhos e novos media, os governos procuram manter a cabeça fora de água controlando, domesticando ou ameaçando os media (empresas, jornalistas, comentadores); no caso britânico, para obter exactamente os mesmos resultados, os governos trabalhistas e conservadores deixaram-se submergir pelo poder de um império mediático. Este episódio talvez permita ao poder político e aos políticos em geral retomar o seu lugar na esfera pública por meios tradicionais. Mas já se percebeu que o establishment não mudará "demasiado". Os actores, as estruturas sociais, políticas e mediáticas não mudarão. Com mais cautelas ou outros meios, o império contra-atacará. Se não for este império, outro será. E se não for este governo, outro será. O sistema tem esses vícios, mas também tem a virtude da possibilidade de se expor e interromper uma espiral de faltas éticas, negócios sem transparência, intimidações, favores políticos, favores mediáticos e até crimes. Este caso poderá ter sido apenas um contratempo para o império Murdoch e uma maçada para o poder político, mas alertou o espaço público e travou métodos horríveis de fazer "jornalismo" e de fazer "política".