A primeira palavra que Lucian Freud aprendeu a dizer, segundo a sua mãe, foi "alleine", que significa sozinho. "Todas as minhas alegrias foram solitárias. Detesto que me vejam trabalhar." Lucian Freud, o Atelier, uma grande exposição do "maior pintor inglês vivo", no Centro Georges Pompidou, em Paris, permite violar o interdito fundamental da sua obra e penetrar na arena fechada e sufocante onde o pintor e os seus objectos se confrontam, "como carne", na pintura. "O meu trabalho é puramente autobiográfico. Trata-se de mim e daquilo que me rodeia", diz o pintor, citado no catálogo desta exposição que termina a 19 de Julho.
"Quanto mais nos concentramos, mais as coisas que temos realmente na cabeça começam a sair." Desde 1987 que Lucian Freud, hoje com 88 anos, não era objecto de uma grande exposição em Paris. Para a do Centro Pompidou, a comissária Cécile Debray quis afastar-se de um programa retrospectivo e contornou todo o primeiro período da carreira de Lucian Freud, os seus anos de hiper-realismo. Dos anos 40 apenas foi guardado The Painter's Room (1944), senha de entrada para uma exposição organizada em torno do tema do atelier do pintor. O eixo de Lucian Freud, o Atelier é constituído por trabalhos que mostram a evolução do artista desde o final dos anos 60, revelando a intimidade do seu atelier, colocando a questão do dispositivo espacial e da sua reflexividade, a pintura.
O atelier é o lugar estratégico no trabalho de Freud, num método enunciado pelo pintor: "A aura que se liberta de uma pessoa é tanto parte dela quanto a sua carne. O efeito que produzem numa divisão é tão marcante como a sua cor ou o seu cheiro. O efeito produzido no espaço por dois indivíduos pode ser assim tão diferente quanto o efeito de uma vela e de uma lâmpada eléctrica. O pintor deve, por isso, estar tão consciente da atmosfera como do seu objecto. É através da observação e da percepção da atmosfera que o pintor pode atingir o sentimento que pretende fazer realçar através da sua pintura." O percurso da exposição no Centro Pompidou organiza-se em quatro secções, Interior/Exterior, Reflexão, Reprises e As Flesh ("como a carne"), mostrando meia centena de pinturas e uma dezena de gravuras.
Há também várias fotografias tiradas por David Dawson, assistente de Lucian Freud, que fornecem uma janela ou um espelho para o mundo recôndito, quase clandestino, concentracionário, do atelier. Um dos conjuntos importantes da exposição é formado por vários quadros a que Lucian Freud chama os "grandes interiores", ostensivamente enraizados nos grandes mestres flamengos e numa tradição que se poderia estender até aos grandes ateliers de Henri Matisse.
Reprises marca, em especial, uma reflexão sobre a pintura encetada por Lucian Freud a partir dos anos 80, início de um diálogo fértil com algumas pinturas antigas, como o trabalho que realizou em torno de um pequeno quadro de Watteau. Há outras obras, autênticas releituras de quadros de Chardin, Constable ou Cézanne, que vão desde a cópia livre à transposição e à total reinterpretação.
O nu na naturalidade animalOs nus, essência da obra de Lucian Freud, marcam a escolha de obras na exposição do Pompidou, colocando o visitante num percurso sem fuga por uma sucessão de imagens atraentes sem serem eróticas, repulsivas sem serem repugnantes, chocantes sem serem violentas. Os nus de Freud são nus monstruosos, desproporcionados ou obesos, marmóreos ou rugosos, despojados, maculados por toda a espécie de marcas, varizes, rugas, pregas acumuladas pela pele humana. Estes corpos de uma beleza monstruosa pesam na tela em poses bizarras ou apenas banais, numa tensão entrópica revelada pela lenta exposição do modelo ao pintor e pela prolongada, quase fastidiosa, análise que o pintor faz do modelo.
"Preocupo-me apenas em pintar somente a pessoa real, em fazer uma pintura a partir dela e de não a utilizar para um qualquer desenho artístico mais longínquo", explica Freud, falando sobre a relação indispensável de confiança e intimidade com o seu modelo.
Lucian Freud recorreu desde cedo aos seus próximos e amigos, uma das primeiras sendo a sua mulher, Kitty Garman, filha do escultor Jacob Epstein, e, depois, as suas outras mulheres, incluindo Caroline Blackwood, os seus filhos (Annie e Annabel, Rose, Ib, Ali e Susie Boyt, Bella e Esther, nomes que são outros tantos títulos de obras suas), a sua mãe, desde 1972 até à sua morte nos anos 80, e amigos como o editor Bruce Bernard, o escritor Francis Wyndham ou o galerista James Kirkman. Numa obra em que o indivíduo está no centro da composição, o nu reflexivo que domina o trabalho de Lucian Freud acabaria, inevitavelmente, por incluir o próprio pintor, que espreita pela primeira vez na sua obra, em 1967, num pequeno espelho de maquilhagem (Interior With Hand Mirror Self-Portrait), espectro entalado entre duas portadas de uma janela inglesa. Culminaria, em 1993, com o desconcertante Painter Working-Reflection: o pintor, septuagenário, nu da cabeça aos pés num imenso atelier vazio, como se as tábuas e o fundo se diluíssem num mar castanho e baço, o homem nu usando apenas umas botas sem atacadores. Nos anos 90, Freud acentuou a provocação dos seus retratos, recorrendo a modelos como o performer australiano Leigh Bowery, estrela da cena gay londrina, ou com a opulenta Big Sue Tilley.
"A minha concepção do retrato resulta da minha decepção diante dos retratos que se parecem com pessoas, mas não são como elas.
Para mim, o quadro é a pessoa", diz Lucian Freud, que tem horror à arte da semelhança e da imitação e que desde cedo escolheu uma regra inelutável de "intensificação do real" na abordagem do corpo, da paisagem urbana (sempre a partir do que é visível dos seus ateliers de Paddington ou Notting Hill), dos animais ou das plantas. "Eu quero que a pintura seja carne", resume Lucian Freud, carne no sentido orgânico de um corpo que nasce, cresce, amadurece, envelhece e decai como o escasso mundo vegetal que Freud mantém nos seus ateliers e cujo ciclo natural segue com minúcia.
Freud, que desgosta que o referenciem como neto de Sigmund, tem "evidentes abordagens psicanalíticas na sua pintura", indica alguma crítica, sublinhando que a arquitectura dos seus quadros tem por centro a mesma genitália masculina ou feminina de Leonardo Da Vinci ou de A Origem do Mundo, de Gustave Courbet (1866), afinal "o destino humano" a que aludia a obra do avô do pintor.
Lucian Freud, pelo contrário, prefere definir-se como "um biólogo" e acentuar a distância da sua pintura da "essência" dos românticos, situando-se não do lado da psicologia mas no da fisiologia, não do lado do "arsenal psíquico" de Sigmund mas do aparelho orgânico que ordena a maior parte da sua obra. "Gosto de ver as pessoas tão naturalmente e fisicamente à vontade como os animais", diz o pintor. "O que me interessa verdadeiramente nas pessoas é o lado animal. É por isso que gosto de trabalhar a partir da sua nudez."
Realismo "londrino"Lucian Freud nasceu em Berlim, a 8 de Dezembro de 1922, numa família judia que, perante a chegada de Hitler ao poder na Alemanha, fugiu para a Inglaterra em 1933. Lucian recebeu, primeiro em Berlim e depois em solo britânico, uma educação burguesa que o poupou aos rigores da educação inglesa: desde Setembro de 1933 que, por intercessão do seu famoso avô, estudou num colégio progressista frequentado por alemães em Dartington Hall (perto de Totnes, no Devon). Nas vésperas da Segunda Guerra Mundial, o jovem Lucian encontra-se em Londres, descobrindo uma boémia intensa em que não se consumiu graças ao seu enorme talento e à entrega total à aprendizagem da pintura.
Lucian Freud foi mobilizado para a marinha mercante britânica em 1942 e, alguns meses depois, passou à reserva por razões de saúde, tendo voltado a Londres para dar continuidade sem mais nenhuma interrupção de outra ordem, até hoje à sua vocação de pintor. Foi em Londres que, no final da guerra, em 1945, conheceu Francis Bacon, através do pintor Graham Sutherland. Esse encontro inaugurou uma longa amizade e uma troca artística que durou até aos anos 70.
Lucian Freud, discípulo de Cedric Morris, revela nas suas primeiras obras, expostas pela primeira vez em 1944, uma pintura crua e elegante, interferida por uma realidade inquieta que remete para Salvador Dalí, Max Ernst ou Giorgio De Chirico. Para esse período inicial do percurso de Freud, o artista norte-americano R.B. Kitaj arranjou, três décadas depois, a catalogação de Escola de Londres, por oposição à Escola de Paris, não uma "escola" em sentido próprio mas uma referência genérica para um conjunto de artistas entregues a uma pintura explicitamente figurativa, a partir do espaço fechado do seu atelier. Com Lucian Freud, a Escola de Londres incluiu pintores como Frank Auerbach e Michael Andrews.
Os anos 50 correspondem a uma época de transformações fundamentais para Lucian Freud.
De desenhador metódico nos primeiros anos de carreira, decide desembaraçar-se totalmente dos estudos preparatórios para as suas telas, considerando que a percepção do desenho prejudica a da pintura. Outra inovação: em 1953, com Hotel Bedroom, Freud realiza o seu último quadro sentado; a partir de então, pinta exclusivamente de pé. Freud abandona também nessa época os finos pincéis de zibelina, que dão um traço delicado e exacto, por escovas em cerda de porco, que resultarão na expressiva textura das pastas usadas pelo pintor, e onde o centro de tensão de cada tela parece, em última análise, o moroso processo da sua elaboração.
"Sempre tive a impressão de que o meu trabalho não tinha grande coisa a ver com arte; a minha admiração pela arte dos outros não encontrava muito espaço para se exprimir nas minhas obras porque eu esperava que, se me concentrasse o suficiente, a simples intensidade da observação introduziria vida nos quadros", resume Lucian Freud. "Ignorava o facto de que a arte, afinal de contas, resulta da arte. Agora, percebo bem que assim é."
Exclusivo PÚBLICO/Agência Lusa