382 toneladas de ouro 13 mil milhões de euros Portugal tem uma fortuna em que não pode mexer

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A crise internacional, a dívida externa portuguesa e o aumento de impostos relança a discussão em torno da venda da reserva de ouro nacional. Os especialistas dizem que é uma fortuna em que não podemos mexer.

Um pedido de ajuda externa à União Europeia e ao Fundo Monetário Internacional, cortes salariais, aumento do desemprego e pobreza, e, agora, um novo imposto, que recairá sobre o rendimento dos portugueses representando cerca de 50 por cento do subsídio de Natal. Tudo isto quando é público que Portugal tem a 14ª maior reserva de ouro do mundo e muitas pessoas, cá e no estrangeiro, voltam a interrogar-se por que razão não vendemos uma parte ou a totalidade dessa reserva, aplicando as receitas no combate à crise.

À primeira vista, pode parecer uma solução. Mas não é assim tão simples. Afinal, quanto valem as reservas nacionais? O que representam face às necessidades financeiras dos país? Pode ou não o Governo ordenar a venda e utilizar a receita? As reservas - os EUA, por exemplo, têm 8 mil toneladas e a Alemanha 3,4 mil, já a Arábia Saudita tem apenas 322 toneladas, o Reino Unidos 310, a Finlândia 49 e o Brasil 33 - podem ser vendidas livremente no mercado ou há limitações legais?

A resposta a estas perguntas frustrará as expectativas de quem admite que a venda poderia resolver todos os problemas do país. Mas vamos aos números: o Banco de Portugal tem confiadas à sua guarda 382,5 toneladas de ouro; a preços actuais, valerão cerca de 13 mil milhões de euros, segundo dados do Banco de Portugal.

"Uma gota no oceano das nossas necessidades", diz o economista Silva Lopes, antigo governador do Banco de Portugal e antigo ministro das Finanças, um homem com memória das duas vezes em que Portugal recorreu ao ouro para acudir a crises financeiras.

Desafiado a avaliar a vantagem de vender neste momento o ouro, Silva Lopes remete-nos para as comparações que se podem fazer entre as hipotéticas receitas e as reais necessidades do país. Assim, o ouro acumulado essencialmente durante o Estado Novo, em especial nos governos de Oliveira Salazar, através das receitas dos emigrantes, representaria apenas cerca de 16 por cento da ajuda externa concedida ao país, que ascende a 78 mil milhões de euros.

Também em relação ao total da dívida pública do Estado, a venda do ouro representaria uns míseros sete por cento face aos cerca de 170 mil milhões de euros que no final do ano os credores estarão a reclamar ao sector público português. Assim, a venda aliviaria apenas de forma muito parcial a pressão sobre Portugal que é hoje exercida pelos mercados.

Ainda assim, poderá argumentar-se que uma solução deste tipo poderia evitar, pelo menos, medidas como o corte do subsídio de Natal, com o qual o Governo pretende arrecadar 800 milhões de euros. Mas mesmo aqui há limitações: este imposto extraordinário servirá para atingir o objectivo de 5,9 por cento do défice este ano; a venda de ouro, em qualquer quantidade que fosse, não poderia servir para isso - as regras comunitárias impedem que as receitas de venda de ouro possam ser utilizadas para abater o défice público. O sistema europeu de contas define que a venda do ouro por parte do Banco de Portugal e a consequente entrega de dividendos extraordinários ao Estado apenas servem para reduzir a dívida pública, não podendo ser usada para diminuir o valor do défice. É a mesma regra que se aplica à privatização de empresas públicas.

Além disso, na discussão de venda de ouro há outra questão importante: um governo pode ordenar ao Banco de Portugal a venda das suas reservas de ouro e usar as receitas? Em princípio, não pode - tem autonomia financeira e administrativa face ao Governo, pelo que essa ordem não lhe pode ser dada. Por outro lado, também os estatutos dos bancos centrais impedem que exista qualquer tipo de financiamento monetário ao Estado.

Poderes e limites do BdP

Sobre esta matéria um ex-quadro do Banco de Portugal, que pede para não ser identificado, resume a questão a uma pergunta: se fosse fácil aos governos utilizar as reservas de ouro, elas ainda lá estavam? Ficamos sem saber, mas os leitores podem arriscar um palpite.

Saltamos, assim, para a última questão. A saber: o Banco de Portugal, mesmo por livre iniciativa, pode vender livremente o ouro no mercado? A resposta também é negativa. A acção desta instituição está limitada pelo Acordo dos Bancos Centrais sobre o Ouro, assinado em Setembro de 1999, entre o Banco Central Europeu e 14 bancos centrais nacionais, estando o Banco de Portugal neste acordo com a maior parte dos bancos centrais da zona euro. O acordo, com validade de cinco anos, renovado a última vez em 2009, impõe que "as instituições signatárias não participarão nos mercados como vendedoras, à excepção das vendas já decididas". Estas últimas, por seu lado, correspondem "a um programa concertado de vendas ao longo dos próximos cinco anos", e "as vendas anuais não podem exceder cerca de 400 toneladas e as vendas totais ao longo deste período não poderão exceder as duas mil toneladas".

Ainda no âmbito deste acordo, "os proveitos realizados com as vendas de ouro ficam retidas no Banco de Portugal e são consignados a uma reserva especial que constitui parte integrante dos capitais próprios do banco".

Por causa das limitações decorrentes do acordo dos bancos centrais, o economista João Loureiro, professor da Faculdade de Economia do Porto, entende que a hipótese da venda das reservas de ouro não se coloca. Face aos actuais valores do ouro, em sucessivos recordes históricos que, no últimos anos, aproximaram uma onça troy - equivalente a 31,1 gramas - dos 1600 dólares, admite, em teoria, que "poderia ser um bom negócio". Defende, no entanto, que, face à incerteza que se vive em relação à crise da dívida na zona euro e à incerteza gerada pela questão da dívida nos Estados Unidos, o melhor mesmo "é Portugal manter a reserva de ouro e concentrar as suas energias em poupar e amortizar a dívida, gastando menos durante bastante tempo".

Silva Lopes, antigo governador do Banco de Portugal, é peremptório, ao dizer que "se deve deixar qualquer coisa para uma aflição", e recorda que as vendas feitas no passado recente não resolveram grande coisa.

Metade das reservas

Nas últimas três décadas, mais concretamente de 1974 a 2006, Portugal desfez-se de mais de metade das suas reservas de ouro, amealhadas durante o Estado Novo. Nesse período de tempo, o total de reservas passou de 865,9 toneladas, em 1974, para 382,5 toneladas em 2006.

As vendas iniciaram-se após o 25 de Abril, numa altura em que o primeiro recurso utilizado foram as divisas acumuladas, recorda o economista Silva Lopes. Em apenas três anos, foram vendidas mais de 100 toneladas. Seguiram-se cinco anos de alguma contenção, mas em 1983 o país não tinha quem lhe emprestasse dinheiro e, antes do apoio do Fundo Monetário Internacional, recorreu ao ouro como garantia de empréstimos bancários de curto prazo. A amortização desses empréstimos foi feita através da venda de ouro. Nos quatro anos entre 1983 e 1987 foram vendidas 63 toneladas.

As reserva mantiveram-se estáveis na década que passou entre 1987 e 1997, iniciando uma descida significativa a partir daí. Entre 1998 e 2006 Portugal vendeu 242 toneladas de ouro, reduzindo as reservas para as actuais 382,5 toneladas. O Banco de Portugal justificou essas vendas como gestão de activos, para aproveitar a subida do preço do ouro nos mercados internacionais. Entretanto, nos últimos cinco anos, Portugal não vendeu ouro.

A questão da venda das reservas não é, assim, de agora. E em tempos teve em Miguel Cadilhe um dos seus acérrimos defensores. Em 2005, no seu livro O Sobrepeso do Estado em Portugal, o antigo ministro das Finanças de Cavaco Silva defendia uma profunda reforma do Estado, que deveria ser financiada através da venda gradual de ouro. Cadilhe referia que essas receitas deveriam ser canalizadas para um fundo que suportasse parte dos custos do emagrecimento do Estado.

Hoje, Cadilhe diz que, se essa reforma tivesse sido feita, "o país estaria numa posição mais forte, mais competitiva e não na situação de pedinte em que se encontra". Mas a reforma não aconteceu e o antigo ministro admite que, entretanto, as circunstâncias mudaram, estando a mobilização das reservas mais limitada. Alega que "os credores do país já mediram tudo e endogeneizaram [incorporam] o ouro na avaliação do nosso risco. Já está nos cálculos". Por outro lado, salienta que "o ouro é nosso, mas está integrado nas reservas do sistema europeu dos bancos centrais": numa altura em que "o Banco Central Europeu tem um enorme crédito (empréstimos) sobre a República e os bancos portugueses, não vai deixar sair o ouro do sistema europeu de bancos centrais".

Perante este enquadramento, Cadilhe reconhece existir hoje uma enorme dificuldade de mobilizar o ouro. Mas, mesmo que o ouro pudesse ser mobilizado livremente, defende que as reservas nacionais não deveriam ser vendidas, antes utilizadas "em dação de pagamento da dívida pública", ou seja, os credores receberiam ouro, ao valor do mercado, como pagamento das dívidas.

Uma lógica mais profunda

O economista José Reis, da Universidade de Coimbra, admite que poderia fazer sentido apontar para a venda, se a actual crise das finanças públicas portuguesas se resumisse "a uma mera operação contabilística e mobilização de activos e resolução de passivos". Mas não. Para o economista e investigador do Centro de Estudos Sociais, os problemas sérios que as economias atravessam "têm a ver com uma lógica mais profunda das relações sociais, com o modelo de organização económica e com questões de soberania".

Na sua opinião, "na Europa, é claro que se assiste a formas inusitadas de violência económica sobre as periferias, abandonadas através da desconstrução do projecto europeu, julgadas moralmente como incapazes, sujeitas a processos rudes de austeridade, sacrifícios e desapossamento". Defende, assim, que "o essencial é refundar, através da iniciativa política, relações económicas e políticas, num caminho onde o federalismo surge como ponto incontornável".

"Propor políticas europeias de relançamento do crescimento, um orçamento europeu mais robusto que lhes dê suporte, refundar o BCE, definir relações económicas estruturalmente justas entre todas as economias europeias - estas é que são questões essenciais", refere.

Como o assunto não é meramente contabilístico e é, pelo contrário, político, este economista entende que "uma posição correcta é fazer valer todo o peso e iniciativa políticas que, com outros, o país possa ter", acrescentando que "não é vendendo ouro à pressa que isso se consegue. Seria, aliás, pouco útil, porque a lógica actual é voraz e não parará com facilidade". Defende que "se, como alguns pensam, a crise fosse o resultado de maus comportamentos e de gestão orçamental - e não um problema estrutural profundo -, poderia advogar-se a venda de ouro para corrigir esses males": "Como não acho que seja assim, mais vale reservá-lo para afirmar a nossa capacidade de intervenção em soluções estruturais."

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