O autarca que deixou a marca digital em terra de pastores
Não era o tipo de presidente de câmara "que ia à aldeia para se sentar com as pessoas ao borralho a comer chouriço". Estava demasiado ocupado com o seu plano: criar emprego e fixar população em Penela
Em Penela, há projectos de pastoreio virtual de rebanhos para que o Queijo Rabaçal seja uma marca com futuro. E crianças a aprender a criar o seu próprio negócio, num incentivo ao empreendedorismo desde os bancos da escola. Mas há também um anteprojecto assinado por Siza Vieira para a villa romana do Rabaçal, um dos três únicos exemplares descobertos na Europa de uma residência cuja planta se baseia num octógono, que data do século IV a.C., e que todos sabem ser um enorme manancial arqueológico ainda por explorar. Tudo isto tem a assinatura de Paulo Júlio, o presidente que governou Penela nos últimos seis anos e que o líder do PSD, Pedro Passos Coelho, foi buscar para assumir a Secretaria de Estado da Administração Local.
Na terra, há quem lamente a partida, mas muitos já estariam à espera. Seja pela "ambição" que alguns lhe apontam - e para a qual, mais cedo ou mais tarde, Penela se revelaria um território demasiado pequeno; seja porque a visão que revelou para desenvolver um concelho pobre, num interior despovoado e quase fora do mapa, faziam adivinhar que estaria talhado para outros voos. "Ele não é o tipo de autarca que ia à aldeia mais recôndita para se sentar com as pessoas ao borralho a comer chouriço. Não tinha tempo para beber uns copos...", revela, entre a ironia e a admiração, João Manuel Falcão, ex-chefe de gabinete de Paulo Júlio na Câmara de Penela.
Militante desde os tempos da JSD - ao lado de Passos Coelho em todas as ocasiões -, Paulo Júlio optou, aos 35 anos, por pôr termo à "sabática da política", como lhe chamou José Manuel Canavarro, deputado social-democrata e um seu compagnon de route, concorrendo à presidência da Câmara de Penela, o concelho onde tem as suas raízes e onde continuam a residir os seus familiares mais próximos.
Estávamos em 2005 e Penela, um dos concelhos do Pinhal Interior Norte, era uma terra aparentemente condenada à desertificação e à pobreza, que sobrevivia da agricultura de subsistência e do pastoreio e da qual os mais jovens fugiam. Como credenciais, Paulo Júlio apresentava uma licenciatura em Engenharia Electrotécnica e um mestrado na área de Automação Industrial da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra. E a experiência profissional como gestor da multinacional brasileira Marcopolo, onde chegou ao cargo de director-geral. Ao fim de seis anos, deixou marca.
Ser pastor por computador
A meio caminho entre Coimbra e Tomar, Penela surpreende qualquer forasteiro pela imponência do seu castelo, erguido sobre um penhasco, à volta do qual desce a cidade numa cascata pintada de branco. Mas, um pouco à semelhança dos concelhos mais longínquos do interior, é nas freguesias que escapam ao olhar de quem, em viagem, atravessa a estrada nacional que se escondem verdadeiros tesouros.A Rabaçal foi, porventura, o queijo que deu até agora mais nome à freguesia. Tabuletas penduradas à porta de casas e de restaurantes testemunham-no - "Vende-se queijo", ou "Vende-se azeite, o ouro de Sicó". Na terça-feira, a junta de freguesia estava fechada. Um aviso à porta anuncia que só abre às quartas ao fim da tarde e aos sábados de manhã. Qualquer contacto pode ser feito através do telemóvel da presidente da junta, que trabalha em Coimbra.
Com uma população cada vez mais envelhecida, os pastores vão desaparecendo e os rebanhos também. Em Fartosa, uma das aldeias da freguesia, restarão à volta de 20 habitantes, a maioria com mais de 80 anos. "Só a necessidade vai obrigar a gente a voltar às origens", diz, com algum pessimismo, Artur Augusto, de 67 anos, um dos cerca de 300 habitantes que vivem no Rabaçal. Com a mulher, mantém a produção artesanal do queijo, já mais por tradição do que por negócio. Duvida do futuro. É-lhe completamente alheio o facto de o município ter sido acolhido, por candidatura, na rede europeia dos Smart Rural Living Labs, um projecto ligado às novas tecnologias a ser desenvolvido em cooperação com o Instituto Pedro Nunes, de Coimbra, que nos transporta, para já, para um assombroso mundo do pastoreio virtual. "Através das novas tecnologias, é possível ter pessoas, em Lisboa ou no Porto, que sejam proprietárias de animais em Penela", exemplificou, na altura, Paulo Júlio.
No centro desta freguesia, o Espaço-Museu é a porta de entrada para uma visita ao espólio que foi descoberto na estação arqueológica, a cerca de um quilómetro dali. Sónia Silva, que está à frente deste espaço, entusiasma-se com os visitantes. Explica, com desvelo, os motivos de um conjunto de mosaicos preciosos, representando as quatro estações do ano, e que raros turistas podem descobrir - a não ser pela fotografia exposta no museu. Toda a zona arqueológica, a 12 quilómetros de Conímbriga, está vedada e os vestígios daquele conjunto invulgar (com uma área residencial, um balneário, um alojamento para servos e armazéns) estão cobertos por areia para protecção face às intempéries.
Um anteprojecto que em 2007 Siza Vieira arquitectou para o espaço já foi aprovado pelo Igespar, mas seria preciso o equivalente ao orçamento anual da câmara para o concretizar. Até lá, os turistas reconstroem imaginariamente a villa, orientados por um guia que vai explicando onde foram descobertos os mosaicos das quatro estações. "São fabulosos. Alguns são cobertos de vidros sobre uma pasta negra", confidencia o guia ao PÚBLICO.
À conquista dos castelos...
A paisagem é deslumbrante: um imenso vale, de onde brotam cardos, rodeado por colinas florestadas, plantado de oliveiras, às quais os agricultores foram encostando aquilo que viam como "pedras". Que eram, afinal, restos arqueológicos de pavimentos, colunas e outros elementos decorativos da villa romana. Há mais de 20 anos que vêm sendo registados com as escavações. Mesmo para o mais leigo, o potencial deste conjunto é enorme. Como factor de atracção de turismo e alavanca da economia da região.A Rota da Romanização, dinamizada pelo ex-presidente da Câmara de Penela, que liga Conímbriga, Rabaçal, Santiago da Guarda e Tomar, pode ser um dos catalisadores para cumprir um dos objectivos pelo qual Paulo Júlio se se bateu enquanto autarca - criar escala através da união de esforços dos municípios pequenos, organizando-se em redes de trabalho e dinamizando, em conjunto, a valorização dos recursos endógenos. A Rota das Aldeias de Xisto é uma das outras redes e, mais recentemente, foi criada a rede urbana para o desenvolvimento das muralhas e castelos medievais que integravam a linha defensiva do Mondego. Lançada pouco antes de partir para o Governo, Paulo Júlio classificou-a como um projecto-âncora.
Num cruzamento de saberes, associa a Universidade de Coimbra aos projectos que serão desenvolvidos em oito municípios. A ambição - revelou Paulo Júlio - é criar um produto turístico internacional, "cruzando tecnologia com o património medieval, o que irá resultar em miradouros virtuais". O investimento é de 10 milhões de euros, mas a maioria virá de fundos comunitários.
Esta foi, aliás, a estratégia que Paulo Júlio seguiu na câmara - "apresentava candidaturas aos programas para obter fundos europeus", confidencia um dos seus colaboradores próximos, para obviar aos magros recursos financeiros de um concelho que, apesar de tudo, continua a perder população - 5980 habitantes, segundo o Censos de 2011. "Nos últimos seis anos, os tempos foram de renovação", diz Marco Basílio, arquitecto na câmara municipal, enumerando projectos que tocaram as seis freguesias do concelho. Paulo Júlio renovou o parque escolar e apoiou os programas extracurriculares para o ensino do empreendedorismo, desde o ensino básico. Trouxe projectos e investimento privado para o concelho, lançou o HIESE (Habitat de Inovação Empresarial nos Sectores Estratégicos), na Quinta do Vale do Espinhal, na mais recôndita freguesia do concelho incrustada na serra da Lousã, para servir de ninho de empresas vocacionadas para a exploração agro-florestal, o turismo e as energia renováveis.
... e do poder
Toda a miríade de projectos sustentava-se num plano estratégico que visa criar emprego, fixar população, aproveitar as riquezas daquele território, com prazo de conclusão para 2013. Paulo Júlio interrompeu-o agora com a saída para o Governo. "Há uma série de investimentos em pipeline para acontecerem", confia José Manuel Canavarro, convergindo com aqueles que acreditam que o concelho não recuará.À frente da Secretaria de Estado da Administração Local, Paulo Júlio, de 42 anos, casado, com dois filhos, tem sobre os ombros a tarefa de cumprir um difícil calendário de reformas, uma das quais passa pela extinção de autarquias. Ele já deu nota que não é favorável à extinção de municípios, sobretudo no interior, mas não descarta a alteração do mapa das freguesias. Associando-as, por exemplo.
O melindre de um dossier que toca nos mais fundos valores identitários das populações exige uma gestão política de que alguns desconfiam quando o conotam com um perfil muito tecnocrático. "Arrogante", acusam. "É distante, mas não prepotente", contrabalançam outros.
Mesmo no PSD há ainda quem não arrisque vaticínios sobre a capacidade de sucesso do ex-autarca. Desconheciam-no. Mas a militância política no partido vem desde a JSD, que dirigiu em Penela. Quando Passos Coelho se candidatou à liderança pela primeira vez (que perdeu para Manuela Ferreira Leite), Paulo Júlio foi o único autarca do distrito que o apoiou. Quando chegou ao poder no partido, Passos compensou-o, com uma das vice-presidências. E ao chegar ao Governo foi buscá-lo a Penela. Não será um passo maior do que a perna?
"Ele tem perfil para pegar nisto e levar a bom porto", diz José Manuel Falcão. "Como ele próprio gosta de dizer, ele é muito engenheiro." Marco Basílio, arquitecto na câmara municipal, colaborou de perto com Paulo Júlio: "Nos últimos seis anos, os tempos foram de renovação"(à esquerda)
João Manuel Falcão, ex-chefe de gabinete de Paulo Júlio (em cima, à direita)
O concelho de Penela tem perdido habitantes. São menos de seis mil