Em 2004, poucas semanas depois de a adesão da Polónia à União Europeia começar a testar a elasticidade de várias burocracias britânicas, a BBC entrevistou um incrédulo emigrante polaco à porta de um centro de emprego em Birmingham. Com um intimidante fardo de impressos debaixo do braço, explicou ao repórter que o centro o encaminhara para duas entrevistas de emprego. Em ambas as ocasiões, os entrevistadores lamentaram o facto de só lhe poderem dar um contrato de trabalho, mesmo que temporário, caso ele mostrasse um número de segurança social (que ele não tinha). Depois de passar uma tarde nos serviços da Segurança Social, foi-lhe dito que o respectivo número só poderia ser atribuído depois da apresentação de um contrato de trabalho válido (que ele não tinha). O repórter esboçou um ar compreensivo: "É tudo um pouco kafkiano, não é?". Demonstrando um talento muito maior do que o do repórter para a comparação literária apropriada, o polaco abanou a cabeça: "Não é kafkiano! É um 'catch-22'! É um 'catch-22'!".
Cinquenta anos depois da publicação do romance de Joseph Heller (que agora regressa às livrarias, em reedição comemorativa, pela Dom Quixote), "catch-22", continua a fazer parte do círculo restrito de expressões ("big brother", "lolita") que conseguiram emancipar-se dos seus contextos ficcionais para acrescentar algo permanente ao léxico universal. Uma pesquisa no Google News devolveu mais de 700 utilizações só na primeira semana de Julho: em artigos sobre uma greve de controladores aéreos nos EUA, práticas religiosas no exército paquistanês, os tarifários de um operador de telemóveis, a dívida soberana da Grécia, legislação ambiental, e a suspensão preventiva de um atleta olímpico.
Apropriadamente para um romance sobre circularidade, repetição e impedimentos burocráticos, o título de "Catch-22" foi um acidente, fruto de quatro baptismos abortados na secretaria antes do parto editorial. O título original de Heller era "Catch-18", mas a publicação do livro de Leon Uris, "Mila-18", exigiu uma mudança de planos. Heller optou pela simples subtracção de uma unidade - "Catch-17" - antes de ser advertido para a potencial e perigosíssima confusão com o filme "Stalag-17". Depois de um regresso combalido à oficina, o autor emergiu com um triunfante "Catch-11", alternativa cuja viabilidade não resistiu à estreia de "Ocean's Eleven". Uma quarta opção, "Catch-14", foi rejeitada "in extremis" pelo editor, com o irrefutável argumento de que "14" não é um número engraçado - ao contrário, presume-se, de "22". Quase tão engraçado como o número "22" é o facto de todo o processo ter reproduzido de forma abreviada uma das piadas recorrentes do livro, que envolve sucessivas tentativas frustradas para atingir um número arbitrário, que à última hora se revela insuficiente ou inadequado.
A acção passa-se durante os meses derradeiros da Segunda Guerra Mundial, na ilha mediterrânica de Pianosa, base de um esquadrão de bombardeiros da Força Aérea Americana. O protagonista, o Capitão Yossarian, deixou de achar piada à guerra há algum tempo, e a sua principal ambição é regressar a casa vivo, ambição dificultada pelo seu superior, o coronel Cathcart, que vai aumentando o número de missões em que cada aviador é obrigado a participar antes da dispensa oficial. (Na cronologia bizantina do romance, esse número flutuante de missões serve como único marcador temporal fiável). Yossarian lança-se numa cruzada solitária de dissimulação, mentira e subterfúgio para não participar em mais missões até que tem um rasgo de inspiração: a Força Aérea não pode correr o risco de ter alguém que demonstre um comportamento insano a participar em missões de combate. O médico do esquadrão confirma a sua suspeita. Mas - a única certeza inultrapassável no mundo de "Catch-22" é de que há sempre um "mas": "Havia apenas um ardil e era o Artigo 22, o qual estipulava que a preocupação de um homem com a sua própria segurança perante perigos reais e imediatos constituía o resultado do funcionamento de uma mente racional. [Quem] era louco podia ser dado por incapaz. Bastava-lhe pedir, e a partir do momento em que o fizesse deixaria de ser louco e teria de participar em novas missões. Seria louco se participasse em novas missões e mentalmente são se não o fizesse, mas neste último caso teria de voltar a voar. Se o fizesse, seria louco e não teria de o fazer, mas se não quisesse, estaria em plena posse das faculdades mentais e deveria fazê-lo."
Este enunciado formal - uma falsa escolha, dependente da confluência de dois eventos que se excluem mutuamente - sintetiza todo o aparato lógico do romance, que progride através de sucessivas reencenações de dilemas semelhantes. Um auxiliar recebe ordens do superior para nunca bater à porta do seu gabinete a não ser que tenha a certeza de que ele não está lá dentro, sendo que nesse caso não vale a pena bater à porta porque ele não está lá dentro. Yossarian apaixona-se por uma rapariga e pede-a em casamento; ela recusa, com a justificação de que nunca se poderia casar com um louco, e que só um louco seria capaz de a pedir em casamento. Depois de algumas sessões de esclarecimento caóticas, uma nova regra é estipulada, segundo a qual as únicas pessoas autorizadas a fazer perguntas numa sessão de esclarecimento são aquelas que nunca fazem perguntas. E assim sucessivamente, num interminável "modus tollens" de rabo na boca.
Fantasia negra
Tecnicamente, há pouco a apontar ao livro, embora a fórmula (que é sempre a mesma) acabe por se desgastar na incessante acumulação. O humor de Heller funciona por repetição, reformulação, redundância e "non sequitur". Como os instrumentos da burocracia marcial que caricaturiza, destina-se não a entreter, mas a desencorajar.
O propósito, a espaços, é cumprido. O livro exige uma perserverança que tem menos a ver com paciente descodificação literária do que com total submissão à sua lógica anómala (um pouco como o serviço militar). A estrutura é tão episódica como um sortido de rotinas "vaudeville": Yossarian tem um diálogo subversivo com o General; Yossarian tem um diálogo subversivo com o médico; Yossarian tem um diálogo subversivo com o psiquiatra. "Catch-22" é um livro anti-autoridade em tema, postura e método. O cinismo é contagioso e leva-nos a desconfiar de tudo, a começar pelo autor. A célebre segunda frase do romance é: "A primeira vez que Yossarian viu o capelão ficou loucamente enamorado dele". Sete páginas depois, esse primeiro encontro é recapitulado e o leitor repara que a primeira reacção de Yossarian é de mera indiferença. Um mundo em que nada faz sentido fornece um excelente alibi para inconsistências narrativas.
Independentemente das intenções do autor, a forma mais generosa de ler o livro é como fantasia negra e não como sátira. O elenco heterogeneamente lunático de "Catch-22" não abarca os míticos "tipos reconhecíveis", mas sim monstros de conto de fadas: o General Dreedle, o Coronel Cargill, o tenente Scheisskopf - e Milo Minderbinder, o capitalista predatório que enriquece a comprar ovos em Malta a sete cêntimos e a revendê-los a cinco cêntimos (a explicação para este milagre não é nada má), e cuja habilidade negocial o torna presidente da Câmara de Palermo, vice-xá de Orão, califa de Bagdad, imã de Damasco, xeque da Arábia e deus do trigo em algumas regiões pagãs. Nenhum exército na história da humanidade foi povoado por tamanha colecção de grotescos. Não são sequer caricaturas de personalidades, mas reduções ao absurdo de extremos ideológicos.
O maior problema com tudo isto é que a coerência interna do romance depende da aceitação tácita de uma premissa paranóica: a de que a guerra é absurda não porque a sua natureza intrínseca leva inevitavelmente a situações absurdas, mas sim porque todas as decisões tomadas numa guerra são - sem excepção - tomadas por personalidades malévolas, incompetentes ou cretinas. Se o argumento central de Heller depende de personalidades, a única forma de o ilustrar ficcionalmente seria mostrando personalidades plausíveis; por outro lado, se mostrasse personalidades plausíveis, o livro não teria um terço do impacto imediato, e não lhe permitiria concretizar as oportunidades satíricas mais genéricas (contra a guerra, contra o capitalismo, etc.) que julga ter: um intratável "catch-22" dentro de "Catch-22".
Tal como quase todos as obras literárias que se transformam em fenómenos sociológicos, esta teve a seu favor vários golpes de sorte e ajudas inesperadas, tanto do calendário como da demografia. Sem nunca mencionar bombas atómicas ou o Vietname, o romance tornou-se emblema de uma geração incapaz de pensar noutras coisas. Publicado em 1961, chegou no momento certo para encarnar simbolicamente a insanidade do "equilíbrio nuclear", e assumir-se como ponto de concentração de todas as ansiedades de uma juventude em pré-puberdade ideológica que aprendia os rudimentos do protesto. Como podiam não adoptar Yossarian? Alguém que traduzia a guerra em termos estritamente pessoais ("- Eles tentam matar-me - afirmou Yossarian, calmamente. - Ninguém tenta matar-te. - Então, porque fazem fogo sobre mim? - Fazem fogo sobre todos, querem matar toda a gente. - Não vejo onde está a diferença"); alguém que faz tudo ao seu alcance para não ser herói - porque numa guerra em larga escala, em que as únicas categorias que interessam são as de "mortos" e "sobreviventes", o herói é apenas mais uma contingência estatística, vítima das circunstâncias. E Yossarian "estava disposto a ser vítima de tudo, menos das circunstâncias".
Até "Gravity's Rainbow" (publicado 12 anos mais tarde), "Catch-22?? foi o mais insólito e atípico representante de um género convencional, o romance de guerra: um objecto tão diferente quanto possível de clássicos como "Os Nus e os Mortos" ou "Até à Eternidade". Mas, aos olhos contemporâneos, o romance corre o risco de parecer uma relíquia de um tempo desvanecido, como outros emblemas sagrados da contracultura dos anos 60 - "Matadouro Cinco", "Dr. Strangelove", "M*A*S*H" e "Voando Sobre um Ninho de Cucos" -, artefactos que têm em comum um cepticismo radical perante formas tradicionais de autoridade. Yossarian pode ter cumprido o desejo de não ser vítima das circunstâncias; mas foram as circunstâncias, mais do que o talento individual, que o elegeram como símbolo em primeiro lugar.