Flores para o funeral do News of the World

Foto
No último dia, houve canecas com chá para os visitantes CARL COURT/AFP

O tablóide, comprado por Murdoch em 1968, dedicou-se nos últimos anos às campanhas de denúncia de pedófilos ou casos de corrupção. Chega hoje ao fim, vítima de um escândalo

Às 11h00 da manhã de sábado, ninguém à porta do News of the World, um edifício novo no Sul de Londres. Apenas um segurança a pedir aos jornalistas que se aproximam para não incomodarem quem quer fazer o seu trabalho: escrever a última edição do jornal, um dos semanários com maior circulação no Reino Unido (entre 2,6 a 2,8 milhões).

Alguém esteve aqui antes de chegarmos e deixou um ramo de flores junto à porta rolante, margaridas e outras espécies que não identificamos, mas são cores embrulhadas em papel castanho-claro - muito provavelmente para assinalar o funeral do News of the World, que há 168 anos começou a ir para as bancas. Um homem passa, apanha-as e dá-as à namorada. O segurança pede: "Vá para ali", e aponta para o fim da rua onde estão um par de jornalistas, câmaras e fotógrafos, à espera de um Rupert Murdoch que não chegará.

Dois dias depois do anúncio do fim do News of the World, em sequência do escândalo das escutas telefónicas que está a abalar o Reino Unido, o clima na redacção é obviamente emocionado, diz mais tarde Alan Edwards, chefe dos subeditores. Mas "muito profissional, como sempre". "Estamos muito ocupados." Visivelmente emocionado, com a voz a tremer quando diz pela primeira vez aquilo que repetirá para cada novo grupo de jornalistas, Edwards comenta: "Ainda estamos muito chocados e tristes. Mas, acima de tudo, somos jornalistas e estamos orgulhosos do que fazemos. Há centenas de jornalistas ali que não têm absolutamente nada a ver com as coisas que podem ter corrido mal no passado. São pessoas decentes, trabalhadoras, brilhantes." Tarefa para hoje? "Estamos a tentar fazer a melhor edição final deste jornal icónico que toda a gente leu a certa altura."

Antecipando "uma procura maciça", o jornal decidiu pôr nas bancas cinco milhões de cópias. "Muita gente vai comprá-lo como um exemplar de colecção. Estamos à espera de vendas muito acima de um domingo normal", disse à BBC Anne Bingham, da federação britânica de distribuidores. "Vamos acabar com um estoiro", garantia no Twitter o subeditor de Política Jamie Lyons, nas horas que antecederam o fecho da última edição.

Será o final em grande de um jornal que era desde 1843 um sucesso comercial. Vendido a três pence, enchia páginas com o desvendar de crimes, bordéis e mulheres de má vida - um conteúdo não muito diferente do que agora lhe valia a liderança entre os tablóides de domingo e a alcunha de "News of Screws". "No século XIX, era um dos jornais de maior circulação, levando notícias à nova população semi-alfabetizada", disse à Reuters o historiador Chris Horrie.

A fórmula não variou muito até 1968, ano em que se torna parte do império de Rupert Murdoch, que, nas décadas seguintes, faria dele o expoente máximo do que Horrie chama "o jornalismo de livro de cheques": "O News of the World comprava todas as histórias sobre celebridades e políticos e guardava-as para o domingo". A campanha para a denúncia de pedófilos, lançada em 2000, e a exposição de casos de corrupção contam-se entre os feitos de um jornal que reivindica ter contribuído para a condenação de mais de 250 criminosos. Só que, agora, é o jornal o acusado - de escutas ilegais, subornos e destruição de provas.

Jornalistas traídos

David Wooding, editor de Política, admitirá mais tarde que os jornalistas do News of the World se sentem "um pouco traídos pelos que trabalharam ali antes: as pessoas que aqui estão não têm nada a ver com isto". "Viemos há cinco anos para mudar o News of the World depois das escutas feitas por jornalistas que já cá não estão. Um dos meus colegas disse: nunca as carreiras de tantas pessoas foram afectadas pelas acções de tão poucos."

A meio da tarde, uma equipa do News of the World distribui simpaticamente chá em canecas vermelhas com o seu logótipo aos jornalistas que se vão acumulando no Thomas More Square. Será que isto vai ficar para a posteridade como memorabilia, pensamos ao olhar para a nossa? Às tantas, ainda pode ser que Murdoch transforme isto ou outros objectos numa fonte de merchandising, às tantas a decisão de fechar o NoW ainda foi o melhor para rentabilizar a marca...

Habituado a dar notícias, o jornal que rendia 100 milhões de dólares a Murdoch, sai hoje sem publicidade paga - cedeu o espaço a empresas de caridade. Alguns media diziam de manhã que, na redacção, escrevia-se com lágrimas nos olhos. Ninguém quer falar, apesar das diversas tentativas que fazemos a quem se atreve a sair do edifício.

Ontem à noite, deveriam reunir-se num pub ao lado. O que lhes acontecerá? Na véspera, Rebekah Brooks, a antiga directora do jornal e mulher de confiança de Murdoch, admitiu que alguns dos mais de 200 jornalistas podem ser absorvidos por outras publicações no grupo, mas, na redacção, ouviram-se palavras como "traição" e "arrogância". ComAna Fonseca Pereira

Sugerir correcção