Estas construções militares travaram Napoleão há 200 anos
Há pouco mais de dois séculos, o avanço do exército napoleónico de Massena em direcção a Lisboa era parado pelas Linhas de Torres, um formidável arco defensivo construído entre o Atlântico e o Tejo para proteger a capital. Carlos Pessoa (textos) e Ricardo Silva (fotos) percorreram a Estremadura em busca dos sinais e vestígios desse passado militar português
É uma manhã de Maio e sopra uma brisa fresca que quase faz esquecer o sol já razoavelmente forte. O tempo está magnífico e sob um céu azul o olhar perde-se na distância, tal é a visibilidade neste dia primaveril. Do alto, a poucos quilómetros de Torres Vedras, vê-se a cicatriz que a auto-estrada fez de norte para sul e, mais longe, para lá das eólicas, está o mar envolto em ténue neblina. Em suma, um dia luminoso de Primavera.
Para chegar até aqui há que subir de carro em velocidade muito moderada - também pode ser a pé -, a estrada militar em terra batida que ladeia o Forte da Feiteira (GPS 39º 02" 39,805""N, 09º 13" 55,387""W) e culmina mais à frente no Forte da Archeira (39º 02" 04,641""N, 09º 13" 04,991""W), mesmo no topo do monte. A ligeira protuberância no terreno, coberto por vegetação rasteira e flores silvestres de todas as cores, não diz a quem passa que esta é uma construção militar típica das Linhas de Torres. De perto, observa-se que o fosso ainda tem o empedrado original e o recinto circular bem definido abriga o través, uma pequena elevação à entrada do forte para defender o acesso ao interior, onde estavam instaladas as peças de artilharia e a guarnição.
Passaram-se 200 anos sobre a construção destes monumentos e já pouco mais resta que dê testemunho da sua existência. Carlos Guardado da Silva, historiador, director do Arquivo Municipal de Torres Vedras e especialista das Linhas de Torres Vedras, lembra que a maior parte destas edificações eram "obras militares de campanha, sempre efémeras, na sua maioria feitas de terra". Mas houve homens que viveram aqui longos períodos, militares que perscrutavam todos os dias os vales que se dominam a partir destas posições elevadas, em busca do invasor estrangeiro. Estabeleciam comunicação com fortes idênticos espalhados pela paisagem, suportando os ventos fortes, o frio glacial ou o calor extremo, e as precárias condições de alojamento da época, isolados do mundo por caminhos que nem sequer mereciam esse nome.
O nosso guia aponta para norte, lá onde se vislumbra o vale de Runa - não se vê, mas não fica longe a aldeia de Caixaria, ponto mais próximo de Lisboa a que os franceses conseguiram chegar -, onde a 1 de Novembro de 1810 se travou uma das poucas escaramuças entre soldados franceses e tropas do exército anglo-português, no caso da Leal Legião Lusitana, sob o comando do capitão Veloso Horta.
Para o lado do mar fica Peniche e ao lado o Bombarral. Para o interior, ergue-se a serra de Montejunto, um dos obstáculos naturais à progressão do exército napoleónico em território português. Atrás do Forte da Archeira vê-se o imponente monte do Socorro (GPS 39º 1" 3,058""N, 9º 13" 30,591""W), onde estava instalado o centro de comunicações das linhas. Um dos lados deste forte dá para uma encosta íngreme, praticamente inexpugnável. Lá em baixo corre um dos desfiladeiros que a malha das Linhas de Torres tinha por missão controlar. No cume, tem-se a sensação de ter o mundo aos pés, tal é a grandeza do espaço que se domina dali, e percebe-se por que razão foi escolhido para instalar esta fortificação militar.
A viagem tinha começado antes em Torres Vedras. Esta estratégica cidade estremenha deu o nome à linha de fortificações militares construídas em contra-relógio no começo do século XIX para barrar o caminho até Lisboa ao napoleónico Exército de Portugal, durante a que ficou conhecida como terceira invasão francesa. É ali que fica o Forte de São Vicente (GPS 39º 06" 01,634""N, 09º 15" 56,210""W), ponto avançado na primeira frente das Linhas de Torres e o segundo maior da rede, com os seus três redutos ligados por pontes levadiças. Os moinhos que lá existiam foram na altura reconvertidos em paióis.
Graças a obras de restauração e limpeza - "foram encontrados botões de fardas, balas, restos de madeira", revela Guardado da Silva -, está em muito bom estado de conservação, dominando todo o traçado urbano da cidade, µ ± infinitamente maior hoje do que na época da sua construção, que tinha como finalidade proteger. É um forte em estrela, perfeitamente adaptado ao terreno, com um fosso seco, paliçada e praça central para acolher uma guarnição de 4200 soldados. Numa das pontas, como que tutelando a cidade, está a ermida.
Em estreita articulação com o Forte da Forca (GPS 39º 05" 56,860""N, 09º 15" 26,837""W, onde ficará instalado o futuro Centro de Interpretação das Linhas de Torres Vedras, previsto para 2013), existem o castelo (GPS 39º 05" 41,066""N, 09º 15" 40,526""W) e o forte de São João (junto à ermida com o mesmo nome, actualmente no centro da cidade). Está delineado o essencial da linha defensiva de Torres Vedras.
Depois de percorrido o monumento, ainda não é hora de descer para o emaranhado urbano. Saindo de São Vicente, a cerca de 200 metros à direita, fica o pequeno Forte de Olheiros (GPS 39º 06" 11,777""N, 09º 16" 13,477""W), meio ocultado pelo revestimento arbóreo da zona. As muralhas ainda lá estão, com as canhoneiras viradas a norte, de onde se esperava que surgisse um dia o exército francês. No interior, ergue-se um elegante moinho que foi convertido em paiol, onde decorrem obras de recuperação para o transformar em espaço museológico.
Na estrada que sai de Torres Vedras em direcção à praia de Santa Cruz e a Mafra há mais fortes integrados na primeira linha de defesa. Alinham-se em direcção ao Atlântico, uns mais visíveis do que outros no relevo pouco acidentado da zona, mas sempre facilmente assinalados pelo nosso guia. Já com o mar à vista, fica o Forte do Paço (GPS 39º 05" 39,167""N, 09º 22" 45,301""W), na margem direita do rio Sizandro e da sua praia. Saindo da estrada principal e tomando um caminho de terra batida acessível por automóvel, chega-se ao que resta da construção - um velho moinho transformado em paiol, como em tantos outros fortes da região. A entrada é pelo lado sul, permitindo o acesso ao recinto. Pela sua localização, desempenhava funções duplamente defensivas, protegendo a costa de incursões por mar e ajudando a fechar as Linhas de Torres junto ao oceano.
Ao final da tarde, a luz do ocaso imprime uma beleza particular ao local, onde só se ouve o som entrecortado do mar, trazido pelo vento fraco. Mas é difícil imaginar que a guarnição de há dois séculos, sujeita a permanência prolongada no local e entregue a uma inactividade forçada, tivesse disponibilidade para saborear o encanto poético do local...
Viagem no tempo
A importância estratégica de Portugal levou Napoleão Bonaparte a tentar a conquista do país. Falhou por duas vezes, em 1807 e 1809, derrotado pelo exército anglo-português, comandado por Arthur Wellesley. Em 1810 volta à carga, constituindo o Exército de Portugal. É uma força de 86 mil homens, composto por três corpos do Exército de Espanha, comandados respectivamente por Reynier, Ney e Junot (este já comandara a primeira invasão). A liderança suprema é atribuída a André Massena, incumbido por Bonaparte de tomar Lisboa. A principal ofensiva ficaria a seu cargo, consistindo na neutralização da cidade espanhola de Ciudad Rodrigo e de Almeida. A partir do Alentejo, Soult dirigir-se-ia para Lisboa pela margem esquerda do Tejo.
A ideia de construir linhas de defesa de Lisboa, que impedissem tal objectivo, é mais antiga e tem um momento-chave: 20 de Outubro de 1809. É a data de um memorando de Arthur Wellesley, futuro primeiro duque de Wellington, ordenando o reconhecimento do terreno e a fortificação dos pontos considerados mais convenientes para a defesa do território a norte da capital. "O plano de Wellington assentava num espaço fortificado, protegido por um conjunto de obras militares dispostas em linha, defendendo os acessos à capital, ao mesmo tempo que servia de refúgio ao exército anglo-português e à população", diz Carlos Guardado da Silva. Tendo como pontos de apoio o mar, a oeste, e o rio Tejo, a leste, "este sistema de defesa foi concebido para uma força móvel, que deveria desgastar e atrasar o exército francês contando, para tal, com a ajuda das guerrilhas populares", acrescenta.
Na base desta decisão está o trabalho de reconhecimento do terreno efectuado em Fevereiro de 1809 por José Neves Costa, oficial de engenharia que redigiu uma memória descritiva em Maio seguinte e a entregou a 6 de Junho, com um mapa, ao Secretário da Regência na Repartição da Guerra. Este fê-la chegar a Wellesley.
As obras militares iniciam-se a 3 de Novembro de 1809 em São Julião da Barra (linha defensiva para permitir uma retirada das tropas por mar em caso de necessidade). Nos dias seguintes arrancam também os trabalhos no Forte Grande da Serra (Alqueidão, Sobral de Monte Agraço) e Forte de São Vicente, em Torres Vedras.
O plano inicial previa uma segunda linha defensiva, ligando o mar ao Tejo, nomeadamente entre Ribamar e Vialonga. Mais tarde, Wellesley viria a acrescentar aquela que passou então a ser a primeira linha defensiva, mais a norte. Ligava Alhandra à foz do Sizandro, fechando os desfiladeiros de Arruda dos Vinhos, Torres Vedras e Mafra com grandes fortes e, construídos entre estes, outros de menor dimensão. Todos estavam articulados entre si, podendo ver-se uns aos outros. As fortificações eram em geral poligonais, construídas com muros fortificados e parapeitos, tornando possível o fogo cruzado. Na sua maioria dispunham de uma guarnição de 200 a 300 homens e entre três e seis canhões.
Na retaguarda foram construídas estradas (a maioria já em 1811 e 1812) que facilitavam as comunicações e garantiam a circulação das tropas e da artilharia e o abastecimento em víveres e munições. Foi instalado um sistema de comunicações ópticas envolvendo 10 estações, permitindo que uma mensagem transmitida a partir do quartel-general, em Pêro Negro, chegasse às linhas da frente em escassos sete minutos.
Quando os exércitos aliados chegaram às Linhas de Torres, estavam construídas 126 obras militares, tendo sido erguidas mais 26 até 1812. As três linhas defensivas dispunham de um total de 152 redutos e 600 peças de artilharia, defendidos por cerca de 140 mil soldados portugueses, espanhóis e ingleses, numa extensão de 88 quilómetros. "É o maior sistema de defesa efectiva na História", sustenta Guardado da Silva.
Por ordem de Napoleão, o avanço para sul só começou no final do Verão de 1810, para evitar as altas temperaturas nas Beiras. Mas o mau estado das estradas e a resistência inesperada encontrada em Almeida atrasaram a progressão das tropas francesas, o que deu tempo para melhorar o plano de defesa e alterar a construção das Linhas de Torres.
Massena pôs-se em marcha a 15 de Setembro, encontrando pela frente um território deserto. No dia 27, o futuro duque de Wellington barrou o caminho ao exército francês no Buçaco, numa tentativa para defender Coimbra. O desfecho foi inconclusivo e Wellesley retira tacticamente para Coimbra e Condeixa, deslocando-se depois para sul. As populações, por seu lado, já tinham há muito começado a dirigir-se para Torres Vedras, destruindo casas e todos os bens que não pudessem ser transportados. As tropas anglo-portuguesas chegam às Linhas de Torres Vedras a 8 de Outubro e Massena instala o seu quartel-general em Alenquer, enquanto Reynier se posiciona no Carregado e depois em Vila Franca de Xira. Ney, por seu lado, instala-se na Ota e Junot em Sobral de Monte Agraço.
Imagine-se a estupefacção de Massena quando, no final de 1810, chega junto deste dispositivo e percebe que está perante um obstáculo insuperável. Durante cerca de um mês apenas se registam algumas escaramuças, enquanto Massena aguarda por reforços que nunca viriam a chegar. Na noite de 14 para 15 de Novembro, o general francês retira das Linhas, estabelecendo-se na região de Santarém e Torres Novas, onde se encontrava Junot. Wellesley, por seu lado, instala o quartel-general no Cartaxo.
A fome e a peste, a par das incursões de uma guerrilha persistente e das deserções, minam o moral das fileiras francesas e a situação torna-se insustentável. No dia 4 de Março de 1811, o exército invasor francês inicia a retirada de Portugal e cruza a fronteira um mês depois. Lisboa estava salva e as Linhas de Torres tinham cumprido a sua função dissuasora, sem terem sido efectivamente postas à prova em combate.
Por montes e vales
Há monumentos recuperados e com sinalização de percurso, outros estão abandonados e inacessíveis. É impossível salvar todas as fortificações - está prevista a reabilitação de umas três dezenas por parte dos municípios da zona -, mas as que foram objecto de requalificação valem bem a visita. É o caso do Forte Grande de Enxara (GPS 38º 59" 31,19""N, 09º 13" 11,20""W), entre as localidades de Enxara do Bispo e Enxara dos Cavaleiros, no concelho de µ ± Mafra. Depois de atravessar esta última aldeia, o visitante deve passar a ponte sobre a A8 e virar à esquerda por uma estrada de terra batida sinalizada com a indicação "Circuito da Enxara". Encontra o sinal de acesso ao Forte Pequeno, em razoável estado de conservação, mas o melhor é seguir para oeste durante cerca de 200 metros até encontrar o Forte Grande. Os dois redutos estavam situados numa posição estratégica entre as duas primeiras linhas defensivas, tendo como objectivo central a defesa da estrada Torres Vedras-Montachique, apoiando o quartel-general de Wellington em Pêro Negro (GPS 38º 59" 20,337""N 09º 11" 55,782""W).
É para aí que seguimos. Percorrendo a EN115 em direcção a Sobral de Monte Agraço, há que virar à esquerda, onde está a indicação de Cabeda. Seguindo em frente por uma estrada sinuosa, toma-se a ER374 ao fim de uma descida acentuada, virando à esquerda na indicação de Pêro Negro. Passando a localidade de Perna-de-Pau, é tempo de virar à direita para Pêro Negro e passar a linha de caminho-de-ferro do Oeste. Já dentro da localidade, lá está o edifício amarelo, hoje propriedade privada dentro da Quinta dos Freixos, onde Arthur Wellesley estabeleceu o seu quartel-general. Não há que enganar: uma placa na fachada assinala a efeméride. O quartel-general de Willliam Beresford também não fica longe, a cerca de um quilómetro, em Casal Coxim, Sapataria (GPS 38º 58" 46,702""N, 09º 11" 56,034""W). Mas aqui a decepção pode ser grande, pois a casa, integrada numa propriedade rural abandonada, está em adiantado estado de degradação.
Na estrada de Runa para Dois Portos, uma placa de estrada indica onde sair para o Forte do Alqueidão (GPS 38º 59" 10,590""N, 09º 09" 07,472""W), o maior das Linhas de Torres. O núcleo de apoio aos visitantes anuncia a chegada ao local. Os praticantes de pedestrianismo têm uma boa oportunidade de pôr a sua resistência à prova durante os 16 quilómetros do GR30 - Rota das Linhas de Torres. Em alternativa, podem trilhar a calçada da estrada militar até ao topo, onde fica o forte. Do alto dos 439 metros da serra, posição central na estratégia defensiva de Wellington, avista-se uma paisagem espectacular, que vai do Atlântico ao Tejo, cruzando as duas primeiras linhas defensivas e detendo-se tanto no monte do Socorro como no maciço de Montejunto. É uma ampla estrutura militar, bem conservada, com 35 mil metros quadrados de área, quatro paióis e três pequenos redutos interiores de defesa. Os traveses ainda são visíveis, assim como as fundações da casa do governador.
Até ao vale de Arruda dos Vinhos, em plena rota dos desfiladeiros, é um pulo. Retemperadas as energias (uma sugestão: restaurante O Nazareth em Arruda, na Rua Cândido dos Reis), o caminho para os fortes do Cego (GPS 38º 58" 08""N, 09º 05" 09""W) e da Carvalha (GPS 38º 58" 22""N, 09º 06" 13""W), nos montes circundantes, poderá parecer mais fácil. Volta a ser possível contemplar o rio Tejo, mas desta vez na área da foz, assim como a serra de Sintra e o Palácio da Pena. É uma incursão breve numa proposta de circuito que pode ser explorada com vagar durante um fim-de-semana completo.
Resta fazer, em sentido inverso, o percurso que leva do Tejo ao Atlântico, tendo Alhandra como ponto de partida. Na vila industrial ribeirinha situa-se o Monumento aos Defensores das Linhas de Torres Vedras (GPS 38º 55" 28,362""N, 09º 0" 58,380""W), também conhecido como estátua de Hércules. É acessível pela EN10. No sentido de Vila Franca de Xira, o viajante terá de virar na segunda placa que indica o Sobralinho, seguindo depois sempre em frente pela estrada do miradouro. Mesmo por cima da fábrica da Cimpor, é uma vista magnífica a que se pode ter sobre a lezíria, exactamente a partir do local onde existiu o Forte da Boavista, que controlava uma eventual invasão pela margem do Tejo. Em seu lugar está hoje o monumento, encimado com a estátua do herói mitológico grego, da autoria de Simões de Almeida.
Virando por uma última vez as costas ao rio e viajando para oeste, Alverca, Bucelas, Loures, Malveira, Mafra e Ericeira são outras tantas estações possíveis de um percurso que só acaba no Forte do Zambujal (GPS 38º 56" 57,74""N, 09º 23" 21,98""W). Para lá chegar, siga pela estrada da Ericeira para Sintra, desviando para a Senhora do Ó depois de passar a foz do Lisandro. Uma placa junto à escarpa indica o local onde deve estacionar. Subindo os degraus da vereda chega-se ao mais singular dos três fortes (com São Julião e Carvoeira) que compõem o Circuito da Carvoeira. Inexpugnável por sul, leste e oeste, tem uma planta constituída por reduto central e bateria avançada, rodeada por fosso de protecção. Foi restaurado em 2009 e dispõe de placas com informação detalhada sobre o local. Quando o tempo o permite, pode terminar-se ali o dia contemplando um soberbo pôr do sol.