Alegria e apreensão na independência do Sudão do Sul

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Hoje é dia de festejos na cerimónia oficial e na rua, mas o "Estado-bebé" tem muitos desafios pela frente PHIL MOORE/AFP

Governo de Cartum foi o primeiro a reconhecer novo Estado, um país rico em petróleo mas com quase tudo por fazer. Guerra é ameaça

Mary Nyanachok, uma estudante dos seus 18 anos, acredita que hoje vai voltar a estar com o pai, que perdeu na guerra. Sabe que não será uma reencontro físico, mas acredita que quando a bandeira do Sudão do Sul subir no mastro, e um novo país nascer, o pai "vai lá estar", num momento pelo qual deu a vida na guerra entre Norte e Sul, que fez cerca de dois milhões de mortos.

Foi isso que ontem à tarde, a poucas horas do nascimento do novo país, disse na Goodnews Radio, uma estação católica de Rumbek, estado de Lakes, um dos dez do Sudão do Sul. Ela e a amiga Priscilla, Priscilla Ayen Dhieu, que chega a referir-se ao dia de hoje como o da concretização de "profecias bíblicas", esperam da independência paz, trabalho e um país onde as meninas tenham os mesmos direitos que os rapazes e possam todas ir à escola.

José Vieira, missionário comboniano, que dirige a rede católica de rádios do Sudão, estava ontem à tarde em Juba, a capital do novo país, a editar o trabalho em que as duas raparigas revelam o modo como olham para o acontecimento histórico. A poucas horas da independência, contou, o ambiente era de "grande expectativa, de uma alegria transbordante, com uma carga humana muito forte".

Mesmo os habitualmente sorumbáticos soldados pareciam mais simpáticos. As mulheres afadigavam-se na limpeza dos redutos à volta das casas. Muitos carros circulavam já com a bandeira do novo país presa às antenas e tejadilhos. Grupos desfilavam nas ruas a cantar danças tradicionais. Uma expressão parecia correr de boca em boca: "Feliz independência." "A festa sente-se no ar", contou o sacerdote, 51 anos, há quatro anos e meio no Sul do Sudão, depois de oito na Etiópia e um no México.

O nascimento do Sudão do Sul é o resultado do referendo de Janeiro passado, previsto nos acordos de paz de 2005, que puseram fim a cinco décadas de conflito e duas de guerra contínua. Cerca de 99 por cento dos eleitores votaram pela secessão. E ontem o agora já velho Sudão, com capital em Cartum, tomou a dianteira e quis ser o primeiro país a reconhecer o novo Estado.

Mas o Sudão do Sul nasce num ambiente em que a alegria vai de braço dado com a apreensão. A indefinição do traçado fronteiriço em algumas zonas, a falta de um acordo sobre a repartição das receitas petrolíferas cuja produção se concentra maioritariamente no Sul mas são escoadas pelo Norte, a ausência de entendimento sobre estatuto dos cidadãos do Sul que residem no Norte são dossiers por resolver. A violência das últimas semanas em zonas como o disputado enclave de Abyei, onde em Janeiro não foi possível realizar o previsto referendo local sobre a pertença ao Norte ou ao Sul, e os confrontos que rebentaram no último mês no Kordofan do Sul, estado do Norte, criaram uma situação explosiva.

Risco de guerra e não só

Ainda que a guerra seja uma ameaça latente e permanente, analistas ouvidos pela Reuters consideram que a corrupção no Movimento de Libertação Popular do Sudão (SPLM, sigla inglesa), tal como as divisões étnicas no seu seio, são o maior obstáculo à viabilidade do novo país. "A forma como o SPLM conseguir assegurar a segurança interna e responder às expectativas que a independência traz é crucial", considera Ângelo Izama, analista de segurança regional do think-tank Kwote, do Uganda. No Sul, um verdadeiro mosaico étnico, a paz está longe de ser um dado adquirido: mais de 2360 pessoas foram mortas em disputas internas desde o início do ano.

O presidente do até aqui Sudão único, Omar al-Bashir, tem temperado as declarações de apaziguamento com palavras mais duras, num registo em que parece querer conciliar a tentativa de agradar à comunidade internacional - a retirada da lista norte-americana de Estados que apoiam o terrorismo e as promessa de ajuda financeira são os estímulos mais óbvios - com a necessidade de satisfazer os sectores do regime que temem a perda de grande fonte de receitas do Estado, cerca de 37 por cento, e vêem na separação do Sul um precedente que outros movimentos secessionistas do país poderão tomar como exemplo. "Damos-lhes um Estado completo com petróleo. Só têm de ligar o motor", dizia Bashir, citado pela Reuters, na quinta-feira.

Obviamente, não é assim tão simples. O velho Sudão, onde Arábia e África, islão e cristianismo, se encontram, era uma realidade de partes bem diferentes: índices de mortalidade infantil, saneamento básico, educação e insegurança alimentar mostram que o Sul mais fértil e rico ficou muito para trás no desenvolvimento, apesar de ser aí que se concentram as maiores riquezas.

No novo país, uma em cada sete mulheres morre de problemas de gestação ou parto, 85 por cento dos adultos são analfabetos, 90 por cento dos quase dez milhões de habitantes vivem com menos de um dólar por dia. "Somos um Estado-bebé, que começa do nada, mas vamos construir [este país]", dizia há dias um entusiasmado William Deng, vendedor de materiais de construção à AFP.

Por motivos de segurança, a proclamação oficial da independência foi agendada para a manhã de hoje, mas a festa rija terá começado à meia-noite, hora a que se inicia normalmente o recolher obrigatório. O Governo de Juba pediu às igrejas que repicassem os sinos e à população que tocasse tambores e expressasse a sua alegria. Por motivos de segurança, e receios de aproveitamento para acções de desestabilização, foi mantida a proibição de disparos de armas de fogo.

A cerimónia oficial foi marcada para o Memorial Garang, em Juba, onde foi sepultado o líder e herói sulista John Garang, defensor de um Sudão federal e democrático, que há seis anos assinou o acordo de paz. A proclamação da independência, lida pelo presidente do Parlamento, James Wani Igga, foi marcada para as 11h45 locais (9h45 em Portugal Continental).

Depois, de acordo com o guião da cerimónia, a bandeira nacional do Sudão dará lugar à bandeira do Sul. Já depois do meio-dia, perante um número calculado em cerca de 3500 convidados, em que se incluem cerca de três dezenas de chefes de Estado, Bashir incluído, estava prevista a assinatura da Constituição provisória pelo Presidente Salva Kiir, seguida da sua tomada de posse como chefe de Estado. Depois dos acordes do hino é tempo dos discursos: de Bashir, de Kiir e do secretário-geral das Nações Unidas, Ban Ki-moon. Os festejos de rua deverão ser a nota dominante de um dia há muito aguardado no Sul e que chega hoje.

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