Medo da morte
Em vésperas de "The Great Escape Artist", os Jane"s Addiction estreiam-se em Portugal, amanhã, no Alive. Trazem canções novas e o medo de serem perseguidos por um esqueleto de capuz negro e gadanha na mão. Gonçalo Frota
Não existe a fotografia a documentar o encontro. Por uma razão: os Jane"s Addiction não chegaram a sair de Los Angeles para assistir às gravações que os Master Musicians of Joujouka realizaram localmente para o novo álbum dos californianos. Tudo o que sabem, e que são colheres para a boca carregadas de um misticismo caro ao vocalista Perry Farrell, é que às doze badaladas de uma destas noites uma faca cortou o pescoço a uma cabra algures em Marrocos. E só depois, concluída a cerimónia, o hipnotismo dolente dos marroquinos teve ordem para se espalhar pelas pistas disponíveis para gravar.
Não sendo uma ideia original - quando, em 1968, Brian Jones foi para Marrocos guiado pela mão de beatniks e gravou com os Master Musicians, aí sim, houve uma aproximação apaixonada e às cegas -, a verdade é que testemunha duas preocupações evidentes dos Jane"s Addiction na abordagem ao novo álbum "The Great Escape Artist". Uma tem que ver com o passado, outra com o presente. A ligação ao passado aparece-nos sob a forma de uma porção de água benta aspergida sobre o novo disco, na tentativa de criar uma ligação com os primeiros tempos do grupo e abrir uma fissura com a ideia que hoje reina de que são apenas uma outra banda de rock de bíceps salientes. Mas "Nothing"s Shocking" e "Ritual de lo Habitual" foram, à época, ovnis por direito próprio.
Los Angeles era nessa altura habitada por fronteiras geográficas no que toca à música, recorda-nos o baterista Stephen Perkins. A Sunset Strip era, em meados dos anos 80, um chamariz para bandas como Poison, Ratt ou Mötley Crüe, imagem a meio caminho entre motards ameaçadores e frequentadores diários de salões de cabeleireiro, praticantes de um hard rock xaroposo. Liceal até à raiz dos longos e frisados cabelos. Os Jane"s Addiction andavam por outros lados, travavam amizade com os Fishbone e os Red Hot Chili Peppers, gente que partilhava ensinamentos maiores de George Clinton de que o impulso físico do funk era conciliável com o apelo à perda de sentidos psicadélica. No caso dos Jane"s Addiction, estas duas coordenadas eram ainda síncronas com um experimentalismo recolhido nos Velvet Underground.
É a esses Jane"s Addiction que "The Great Escape Artist" tenta apelar. Aos mesmos que, afirmou Tom Morello recentemente, foram mais influentes do que os Nirvana. Para o guitarrista dos Rage Against the Machine foram Farrell, Perkins, Navarro e Eric Avery a levar a música alternativa até ao sucesso mainstream, graças a "Been Caught Stealing", empalando, assim, a relevância artística do hair metal. A vaidade de Perkins não lhe permite fingir que não concorda a 100 por cento e compara a importância do grupo à dos Stooges. "É como dizer que o Iggy é responsável pelo punk e não os Ramones. Há uma essência musical nos Stooges em 69 que era mais punk do que qualquer coisa que os Cream ou Hendrix andavam a fazer. Mas creditam os Ramones pelo nascimento do punk e isso só aconteceu oito anos mais tarde, em 77. Digamos que os Jane"s Addiction são o adubo, o solo, a merda em cima dos quais crescem as flores. Quando se olha para uma rosa lindíssima, não se olha para o estrume por baixo. Se os Nirvana são a rosa, nós somos o estrume".
Cabra morta
A cabra está morta. E os Masters Musicians começam a tocar. Quase do outro lado do mundo, em Los Angeles, são quatro da tarde e é o rock que está morto. É isso, diz Perkins, que se sente a cada passo que se afunda na falta de ideias da música movida a guitarra eléctrica nos EUA. "Precisamos de algum perigo nas nossas bandas de rock", desabafa. "Hoje toda a gente joga pelo seguro". E é aí que entra o elemento "presente" nas contas da participação dos Masters Musicians of Joujouka, no combate ao cenário actual. As opções, neste caso, são também umas cabras. Para quem acha que transformou o curso da música, um disco novo é, antes de mais, factor de medo e insegurança. "O que acontece depois de mudarmos o mundo?", pergunta-se Perkins. "Seremos capazes de o fazer novamente? Estaremos a dar às pessoas aquilo que esperam? E esperam que mudemos ou continuemos iguais?".A situação é hoje ainda mais complicada. Quando os Jane"s Addiction surgiram, a sua música soava desalinhada. Agora já não. "As pessoas já não estão habituadas ao perigo e a aparecerem bandas com sonoridades diferentes. Todas soam ao mesmo e há sempre um produtor responsável por dez bandas que se ouvem na rádio o dia inteiro". Nessa tentativa de recuperar um lugar criativamente relevante na cena musical de hoje, os Jane"s Addiction pediram emprestado Dave Sitek aos TV on the Radio, que ajudou na composição e tocou baixo em parte de "The Great Escape Artist". Apesar disso, fogem a sete pés de tudo o que possa soar a sonoridade trendy. Só há três razões para pôr a tecnologia ao seu serviço, aplicando bombos made in hip-hop: "ajuda a linha de baixo, o groove ou uma miúda sentir-se excitada".
De resto, desabafa, redes como o Facebook ou o Twitter têm ajudado a matar a mística de uma estrela rock. "Essas coisas estão a escancarar a vida das celebridades, dos músicos ou dos artistas e ficamos a conhecê-los. Eu gosto da mística de não os conhecer. Uma pessoa entra num avião, senta-se ao lado do Roger Waters e não faz ideia de como ele é". O que também não ajuda às manobras de reanimação do rock que Perkins acha indispensáveis. Mas talvez o rock não tenha morrido. Os Jane"s Addiction é que já não têm vinte anos.