Pagos a dobrar

A noite de Buenos Aires não é, obviamente, só tango. Também é feita de acidentes de automóvel, parece que às dúzias, como nos explica a legenda inicial de "Abutres" (no original, "Carancho"). Nesse momento, os olhos arregalam-se-nos perante a expectativa de irmos ver uma descendência argentina do "Crash" de Cronenberg. Não é bem: há acidentes de automóvel, coreografados em plano-sequência (trabalho certamente bastante impressionante), mas não é o desastre como experiência erótica ou fetichista que mobiliza o olhar de Pablo Trapero. Antes, qualquer coisa um pouco menos abstracta: a corrupção, as negociatas com seguros que exploram as debilidades dos sistemas (de saúde, judicial, da segurança social) da Argentina.


Estamos, afinal de contas, mais próximos de um "neo-noir", um "neo-negro" que à matriz clássica do género vai buscar pelo menos dois elementos tradicionais, a noite (quase não há cenas diurnas, e as que há são frequentemente no cinzento da madrugada) e o par. O par é formado por um "abutre", a personagem de Ricardo Darin, que angaria vítimas de acidentes para sacar o máximo que puder às seguradoras (quando não "fabrica" ele próprio acidentes, com o mesmo propósito), e uma enfermeira socorrista, Martina Gusmán, de modos tão indolentes como determinados, que depois de alguma relutância se deixa ir na cantiga de Darin. É um par forte, duas presenças ambíguas, nada lisas.

Mas se é evidente que Trapero (nascido em 1971, produziu o primeiro filme de Lisandro Alonso, "La Libertad", em 2001) tem talento visual - certos travellings, e não apenas os dos acidentes, alguns planos capazes de dar uma Buenos Aires "sleazy", de arrabalde sem charme nenhum - também é mais ou menos evidente que não sabe muito bem o que fazer com ele. Ao filme não falta, do princípio ao fim, "atmosfera", seja nas ruas, no hospital, no escritório mafioso onde Darin trabalha. Mas também se nota que Trapero não consegue conciliar isso com a necessidade de desbobinar o argumento, o que resulta em demasiadas cenas indistintas, sobretudo no terço intermédio, quando o filme parece avançar à conta de trejeitos e efeitos.

Recupera no final, para a cena "clou", mais um plano-sequência que de facto enche o olho (a câmara entra e sai de automóveis, sem cortes e sem demasiados safanões), antes de o desejo de arredondar a intriga - e de trazer outro clássico elemento do "noir", o destino - conduzir a um desfecho que se arrisca a passar por "bricolage" artificial, simples traço a unir os pontinhos que deixa arredada a grande sombra fatalista que Trapero certamente pretendia. Semi-falhado, semi-conseguido, vale decerto uma espreitadela.

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