O sonho indiano começa aqui

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Suketu Mehta chama-lhe "a cidade máxima"; V. S. Naipaul disse que é "uma multidão". Bombaim é assim - um excesso. De tudo: de pessoas, de edifícios, de trânsito, de pobreza, de riqueza, de calor, de buzinas, de vendedores. Dizem que é um dos laboratórios que redefinirão a ideia de cidade: Andreia Marques Pereira (texto) e Adriano Miranda (fotos) foram ao futuro e foram do oito ao oitenta, entre fascínio e repulsa. Quem tem medo de Bombaim?

O filme Bombaim não é de todo original. O argumento é recorrente: numa pequena aldeia, rapaz hindu apaixona-se por rapariga muçulmana e fogem para Bombaim para viver um amor proibido. Claro que o universo religioso pode inverter-se - o rapaz pode ser muçulmano e a rapariga hindu - mas esse conflito tem de estar presente: é uma questão primária de identidade nesta Índia das castas e permanece arreigada mesmo mais de seis décadas volvidas da independência.

E, claro, Bombaim tem de ser o porto de abrigo destes "transgressores", uma vez que apesar de todos os seus conflitos étnicos e religiosos segue como o local mais livre e cosmopolita do país. De facto, Bombaim parece ser o umbigo da Índia, o verdadeiro melting pot deste sub-continente com um poder de atracção incomparável, a verdadeira jóia da coroa daquela que já foi a jóia da coroa do Império Britânico. Entretanto, o Raj chegou ao fim e Bombaim está a chegar ao futuro. Na sua obra Mumbai: The Maximum City, Suketu Mehta, jornalista indiano regressado à cidade natal depois de duas décadas nos Estados Unidos, entre o fascínio e a frustração faz um relato apaixonado da sua (re)descoberta insistindo numa ideia - Bombaim, com os seus 14 milhões de habitantes (21 milhões na área metropolitana), é uma espécie de laboratório das grandes megalópoles que redefinirão a ideia de cidade no futuro.

Voltamos a Bombaim, o filme. O casal foge para a grande cidade, tem filhos e tudo parece correr bem até que as tensões religiosas e os motins ameaçam destruir a família. É de 1995, o filme. E é, à sua maneira enviesada pelo cinema (curiosamente, não de Bollywood, mas de Kollywood - e isto significa não de Bombaim, mas de Chennai, não em hindi, mas em tamil), uma crónica de dias turbulentos da maior cidade indiana. Aqueles dias entre 1992 e 1993, em que a cidade esteve a ferro e fogo com conflitos entre hindus e muçulmanos, emergiram da demolição da Mesquita Babri. Centenas de mortos e um ataque bombista em Março de 1993 recordaram que o multiculturalismo e cosmopolitismo de Bombaim tinham bases frágeis, sobretudo depois de o Shiv Sena (partido regionalista hindu) tomar o poder, em 1985, fazendo da discriminação de muçulmanos e dos "estrangeiros" (os não naturais de Maharashtra, o estado de que Bombaim é capital) uma bandeira.

No entanto, os novos conflitos religiosos que em 2006 abalaram a cidade (onde convivem o hinduísmo, maioritário, o islamismo, segunda religião, o budismo, o cristianismo, o jainismo, o siquismo, o zoroastrismo) e os ataques terroristas que, em 2008, elegeram locais turísticos como alvo parecem apenas provar a resiliência da cidade determinada em conquistar o futuro apesar de (por causa de?) todas as suas contradições.

Nada parece fazer dissipar o poder de atracção de Bombaim, onde todos os dias desaguam milhares de pessoas, de todas as partes da Índia, de diversas etnias, religiões, tradições, falando uma multidão de línguas. É o que contribui para fazer de Bombaim a cidade fascinante que é, um caleidoscópio de cores, cheiros, sabores e texturas, entre imponentes arranha-céus e infindáveis bairros de lata - os slums que o filme Slumdog Millionaire ("Quem quer ser bilionário?") pôs na boca do mundo e que, como consequência, se tornaram atracções turísticas.

Não é caso único, nestas megalópoles onde os extremos se tocam. Bombaim é a casa de industriais e legiões de trabalhadores não qualificados, de estrelas de cinema e pedintes, de artistas e amanuenses, de licenciados e encantadores de serpentes. Para todos, é o eldorado: se a Índia caminha a passos largos para um boom económico, e para as alterações sociais que daí podem resultar, Bombaim é a vanguarda que indica o rumo. É a cidade mais rica do país, capital do grande capital (tem a maior bolsa de valores), das grandes empresas e das grandes indústrias, o maior centro artístico, capital de todo sonho e glamour de Bollywood. Sonho - uma palavra que define bem Bombaim, o sonho de um dia entrar na repartição dos excessos de Bombaim. Ainda que se tenha de começar por partilhar o excesso de pobreza.

E voltamos a piscar o olho ao cinema com o filme de Danny Boyle, que levou Bombaim mundo fora e à passadeira vermelha dos Óscares em Los Angeles. Literalmente, porque alguns dos jovens actores saíram directamente dos slums para o glamour de Hollywood. No filme há uma história de amor, há o mundo das favelas e da pobreza mais abjecta e há ascensão social - do bairro de lata para o clube dos milionários (numa cidade povoada de bilionários). Por aqui percebemos também por que é que, apesar de todas as contradições, Bombaim não deixa de ser um pólo de atracção. É o altar do sonho indiano: mais do que em qualquer outro sítio na Índia, a materialização de uma vida melhor é possível, liberta de tradições de castas e preconceitos. Por isso, se troca uma vida no campo pelos sacrifícios em Bombaim, se troca uma casa por um quarto sobrelotado - ou um pedaço de rua.

É inevitável comparar Bombaim com Nova Iorque - Suketu Mehta também o faz: ""Parece Bombaim." É assim que se explica Nova Iorque às pessoas na Índia." Não só pelo perfil dos arranha-céus que por vezes colide com o da baixa de Manhattan, mas pelos sonhos que ambas as cidades projectam: Nova Iorque para o mundo, Bombaim para a Índia, que é um mundo à sua maneira.

A península, que foi ilha, que foram ilhas

Chegamos a Bombaim numa manhã quente - não haja ilusões: nunca faz frio em Bombaim, mas os meses melhores para visitas são entre Outubro e Março, a "estação seca". Abril está a começar, o calor anda à solta e a humidade é altíssima - pode chegar aos cem por cento, avisam-nos. E chegamos por mar, uma entrada "privilegiada" - vemos a cidade quase onírica envolvida por uma leve poalha dourada e não atravessamos os caóticos subúrbios para onde Bombaim tem crescido, há muito impossível de conter na ilha onde se implantou. Na ilha que originalmente eram ilhas, sete - Bombaim era apenas uma delas, a Sul do arquipélago, no Sul da Província do Norte do Estado da Índia.

Foi essa ilha chamada Bombaim (parte de) o dote de Catarina de Bragança aquando do seu casamento com o rei Carlos II de Inglaterra. Corria o ano de 1661, os ingleses não sabiam bem onde era Bombaim ("perto do Brasil", aventava-se), mas, quando chegaram, não quiseram ficar confinados à pequena ilha - o acordo só ficou concluído em 1665. Não era uma cidade, eram aglomerados de aldeias piscatórias o que a coroa inglesa arrendou à Companhia das Índias Orientais para explorar. Foi o início da epopeia de Bombaim que em pouco mais de três séculos e meio se tornou numa das maiores aglomerações urbanas do mundo.

Em Bombaim sabemos que estamos numa península - sucessivos assoreamentos facilitados pela natureza pantanosa dos terrenos e escassa profundidade entre as ilhas permitiram que todas se unissem numa grande ilha, a actual cidade de Bombaim, coração da Região Metropolitana de Bombaim. µ

±E como chegamos, então, por mar, estamos perto do núcleo fundador da cidade: o Forte, zona fortificada pelos ingleses a partir do Solar de Garcia da Orta que, na altura da transferência de soberania, em 1665, era o edifício de maior dimensão da ilha.

O primeiro contacto com Bombaim é mediado pelas janelas e pelo ar condicionado de uma camioneta: percorremos as ruas à saída do porto como se num aquário viajássemos, mirando, como se de outro mundo se tratasse, os edifícios arruinados, cor amarelo torrado já desbotado. Passamos a uma grande avenida, edifícios altos e barracas nos passeios - madeiras, plásticos e fardos que guardam os haveres da gente que se senta ou deambula nas imediações de "casa".

Não voltaremos a entrar numa camioneta, nem num dos autocarros que percorrem incessantemente as ruas de Bombaim, dois andares, modelos de 50 anos, vermelho espampanante e grandes e coloridos anúncios publicitários a cobri-los. O serviço é bastante fiável, mas no pouco tempo que temos as deslocações mais longínquas serão feitas nos tradicionais (e, na maioria, velhíssimos) táxis pretos e amarelos por fora, inesperados por dentro. Têm desde buracos no chão, a alcatifa florida no tecto e/ou pequenos altares hindus nos tabliers. Também circulam táxis azuis e brancos, os cool cabs, com ar condicionado. Porém, grande parte do nosso périplo em Bombaim acaba por ser feito a pé, deixando-nos ir à descoberta, com alguns pontos de referência incontornáveis, da zona Sul, a ponta de ilha onde o porto se encontra, que é a mais turística da cidade. É também onde tudo começou e de onde parece que não querer sair, apesar das propostas de descentralização da cidade, as novas "centralidades" acabaram por tornar-se, sobretudo, dormitórios.

Saque dos sentidos

Se com Nova Iorque quando chegamos parece que já conhecemos tudo tal a familiaridade com a arquitectura e a geografia da cidade, em Bombaim essa familiaridade advém mais do que julgamos ser o modo de vida da cidade (e das grandes urbes da Índia, em geral). Não ficamos desapontados nesse confronto entre o visto e lido e a realidade.

Já o escrevemos antes: Bombaim é frenética e apática, suja e colorida, monumental e miserável, perfumada e nauseabunda. E tudo a um tempo, que é o mesmo tempo, nesta cidade onde tudo se sobrepõe e que não dá muito espaço a contemplações: distraímo-nos e somos engolidos por ela. Devorados pelos transeuntes apressados e pelo trânsito alucinado; devorados pelo assédio interminável dos vendedores e pelas insistentes mãos estendidas.

E, no entanto, contemplação é o que mais queremos quando nos vemos em pleno Bombaim. Não a contemplação mística que leva os ocidentais em peregrinação à Índia (que recebem em troca sorrisos trocistas), mas sim a contemplação activa de um universo em mutação constante: há mil coisas a acontecer ao mesmo tempo, nós estamos no meio de tudo e, contudo, permanecemos à parte, tentando decifrar um quotidiano tão distante da nossa realidade.

Os sentidos são permanentemente saqueados quando estamos em Bombaim: é o calor, repetimos, húmido, que se cola insistentemente à pele - abrimos caminho entre ele quase como abrimos entre as multidões compactas que se quisermos (às vezes mesmo não querendo) nos arrastam indefinidamente, as multidões que não conseguimos evitar, as multidões que nos fazem crer (como a tantos antes de nós) que é impossível estar sozinhos em Bombaim. (V. S. Naipaul, o escritor de Trinidad e Tobago de ascendência indiana, escreveu que "estar em Bombaim é estar sempre entre uma multidão" e os números são eloquentes: a densidade é de 43 mil habitantes por quilómetro quadrado, na ilha-cidade; na Grande Bombaim, 30 mil.) É a cacofonia permanente, uma orquestra desafinada de buzinas que buzinam por tudo e por nada (uma ironia numa cidade onde as placas de trânsito proibindo-as são recorrentes), vozes em línguas estranhas e estranhamente doces, música que é do mundo e o mundo é aqui. São os cheiros intensos que se entranham, de comida (há bancas de chamuças, thali, bhelpuri e outras iguarias, de chá com especiarias, o chai, e de fruta), de incensos, de lixo - e os desconhecidos. É o festival de cores em movimento e em exibição em bancas e montras, é a sucessão de edifícios mais ou menos grandiosos, mais ou menos decadentes, é o trânsito, de carros, autocarros, motas, camiões, bicicletas, carros de mão e carroças carregadas de grandes volumes arrastadas por homens novos e velhos, em gincana entre eles e com os transeuntes que surpreende pela sua disciplina no meio do caos. As listas da faixas rodoviárias já desapareceram (há tantas faixas quantas o engenho dos condutores permite), os semáforos são quase só uma formalidade.

A cidade vitoriana no século XXI

Não houve qualquer simbolismo na escolha do local onde começamos a nossa visita "a sério" por Bombaim, foi consequência da visita primeira, à Ilha Elefanta (ver caixa). Ida e volta a partir da Porta da Índia, (também) o ancoradouro de onde saem os barcos turísticos e de transporte diário dos habitantes das ilhas que continuam a existir - Bombaim não as absorveu todas. A camioneta deixou-nos aí, fomos à ilha e regressamos para, aí sim, chegarmos finalmente a Bombaim. Mas há simbolismo neste arco triunfal a que chamam Gateway to India e que cujo enorme terreiro por detrás é uma espécie de ágora onde se juntam turistas - mais indianos do que estrangeiros nas vezes em que lá fomos - e locais em passeio de final de dia.

Foi construído para assinalar a visita do rei Jorge V e da rainha Maria, em 1911, (na ocasião estava erguida apenas uma réplica de papelão, porque a conclusão do monumento deu-se apenas em 1924) - e como a história tem destas ironias, foi aqui que o império se despediu da "Jóia da Coroa": em 1947 partiu daqui a última armada britânica. Ainda não era a maior cidade indiana, esta Bombaim que esteve, no entanto, sempre ligada ao movimento pela independência - o primeiro Congresso Nacional Indiano teve lugar aqui, em 1885, e a campanha Quit India ("desistam da Índia" ou "saiam da Índia") foi aqui lançada por Mahatma Ghandi - a sua casa é uma das atracções turísticas. Agora é-o e tudo começou assim, à beira-mar, no porto natural que cresceu ao longo dos séculos para se tornar um dos mais movimentados do mundo, ancorado primeiro na indústria do algodão (a partir da Guerra de Secessão Americana), µ

depois na abertura do Canal do Suez. Actualmente, a indústria de Bombaim produz um vasto leque de bens de consumo e desenvolveu a extracção de petróleo de jazigos submarinos.

Estamos no coração da cidade, no velho Forte, fundação portuguesa, esplendor britânico: a cidade vitoriana, testemunho do Raj em pedra amarelada, que resiste ao sol e às monções com ar digno mesmo quando em clara decadência - que espreita em todas as esquinas, ainda que o velho centro vitoriano seja a menina dos olhos dos governantes da cidade, mesmo os mais nacionalistas.

Este arco do triunfo quase em cima da água também é assim, em pedra amarelada (basalto), arcos, minaretes, decorações intricadas de inspiração na arquitectura medieval Gujarati - uma casca elegante para um interior quase todo ele oco. Do lado do ancoradouro, multidões (que são famílias inteiras, saris coloridos, turbantes, hijabs...) ocupam os parapeitos em cima da água - alguns esperam os barcos, outros observam apenas o movimento, de gentes que vão e vêm. Mas é do lado de "dentro" que se concentram a maioria dos visitantes, na ampla esplanada que o sol não poupa, sob o olhar de estátuas de alguns heróis maratas e fechada por uma vedação tosca, que se ultrapassa passando detectores de metais, aspecto arqueológico no desleixo (não funcionam, claro), herança provável dos ataques terroristas de 2008 que visaram locais turísticos. Os visitantes acotovelam-se e chocam com os vendedores: vendem brinquedos e drogas, comida e bebida, desenham retratos e tiram fotografias, que imprimem logo ali, em impressoras portáteis (nada é ao acaso por estas paragens: onde se detecta uma necessidade, oferece-se o produto - completo).

Nas fotografias, sejam dos "profissionais" ou dos amadores, o mesmo ritual - a Porta da Índia como cenário ou o Hotel Taj Mahal, que se ergue opulento já ali ao lado, inconfundível no seu estilo mourisco e cúpulas avermelhadas. Quando saímos do recinto vedado, sombra, finalmente, de árvores gigantescas, quais fantasmas deixando pender tentáculos sobre quem passa. Os vendedores continuam, as mãos estendem-se em súplica - e há raparigas que trocam pulseiras de flores perfumadas por dinheiro para o leite dos bebés que carregam nos braços.

Chegar ao Taj Mahal Hotel a dois passos é difícil, há polícias na rua e barreiras cuja lógica de transposição é difícil de destrinçar. Mais fácil é compreender o porquê da sua existência: o hotel foi um dos alvos dos terroristas em Novembro de 2008 e esteve três dias ocupado. É um dos mais luxuosos hotéis asiáticos, um exemplo da arquitectura colonial com uma história anti-colonial: foi construído em 1903 por um grande industrial parsi a quem foi recusada a entrada no Watson"s Hotel, na altura o melhor hotel da cidade e aberto a brancos, apenas. Uma "vingança", portanto, que se serviu quente mas não arrefeceu - hoje o Watson"s, onde foi projectado o primeiro filme na cidade, é um edifício arruinado (o hotel já fechou e parece agora ser mais um chawl, um edifício de habitação colectiva, improvisado) na Mahatma Ghandi Road e o Taj Mahal um ícone de Bombaim, com porta flanqueada por imponentes porteiros Sikh e Gurkha.

E o trilho dos ícones de Bombaim leva-nos pela Mahatma Ghandi Road, a partir da Praça Wellington, rotunda-fonte imensa rodeada de edifícios imponentes, herança do Raj. Vemos a National Gallery of Modern Art (casa da arte indiana contemporânea, sob a figura tutelar do artista goês F. N. Souza, e com Picasso à mistura) de um lado, o quartel da polícia do outro, estilo indo-gótico; o Hotel Majestic é agora Shakari Bhandar, mais linhagem gujarati em minaretes e varandas ornamentada e o Cinema Regal (um dos muitos da cidade) intromete-se em estilo Art Déco. E espreitamos o jardim do Museu do Príncipe de Gales (a revisão da história indiana através da arte - impressionante colecção de dois mil quadros em miniatura -, arqueologia e natureza, a galeria budista, e a arte nepalesa e tibetana são os seus pontos fortes), luxuriante como os jardins indianos (verde saturado, cores excessivas, palmeiras prósperas) que são, porém, raros em Bombaim. O edifício do museu é um capricho em estilo indo-sarraceno, inaugurado oficialmente em 1923, depois de ter servido de hospital durante a I Guerra Mundial.

Os edifícios aqui impressionam pela grandeza e pela decadência de grande parte. Há excepções - os edifícios ocupados por instituições financeiras e seguradoras, o Army & Navy Building inesperadamente neo-clássico... A Universidade de Bombaim ergue-se numa rua paralela, com a torre do relógio a subir 78 metros em cor vermelho debruada a pedra branca e esculturas representando as diversas comunidades indianas. E, à frente, o Oval Maiden, um dos campos de sonhos de Bombaim: o críquete é o rei, ali, no parque que é um campo enorme rodeado de árvores por onde espreitam os edifícios.

Está em todos os guias turísticos, o Crawford Market, edifício de pedra com aspecto quase de fortaleza em estilo gótico normando e ferro e vidro a compor clarabóia gigantesca que deixa entrar o dia no espaço que poderia ser lúgubre - é-o nas traseiras: talho e matadouro, esgotos a céu aberto para onde caem as galinhas depenadas bem ali à frente de quem passa. O cheiro é nauseabundo, a condizer com o cenário - um contraste com o interior, onde o cheiro doce da fruta e das especiarias enche o ar. É o maior mercado da cidade, três mil toneladas diárias de produtos frescos entram no edifício desenhado por Lockyard Kipling, pai do Nobel da Literatura Rudyard Kipling. Nas bancadas, a fruta alinha-se em pirâmides imaculadas sobre palha, os vegetais transpiram vitalidade - mas há mais do que produtos frescos aqui: especiarias e medicamentos, produtos de higiene e jóias, panelas e saris. µ

±São uma das idiossincrasias de Bombaim - as dhobi ("lavador") ghat ("lavandaria"), as lavandarias ao ar livre, onde todos os dias dezenas de quilos de roupa são lavadas: primeiro ficam em repouso na água, depois são esfregadas contra a pedra (cada tanque tem uma textura específica), atiradas para caldeirões de água a ferver, postas a secar e passadas - para serem entregues aos clientes, que incluem hospitais. A Dhobi Ghat Mahalaxmi é a mais famosa e isto significa que há vendedores e "guias turísticos" nas imediações. A vista de cima impressiona: os tanques de cimento encaixam-se como mosaicos indisciplinados, as roupas estendidas por todo o lado são pinturas abstractas, os casebres e as ruelas dividem espaço escasso - ao fundo, arranha-céus. A lavandaria está dentro de um bairro que vive na rua, de um lado o barbeiro, do outro o mecânico (e carro esventrado à espera de milagre), banca de frutas, templo hindu improvisado de néons e fotografias de cores intensas, famílias a pedir: as crianças "atiradas" para a frente, como é habitual (no trânsito parado, lá estão eles, olhos tristes, mãos estendidas e pais atrás a controlar).

É incontornável nesta baixa de Bombaim, para locais e turistas. Pela Estação Vitória - terminada em 1888, para o jubileu de ouro da rainha - passam dois milhões e meio de passageiros diariamente, para os mil comboios que entram e saem. Os seus arredores fervilham, é difícil parar e observar o delírio da sua arquitectura, grandioso gótico vitoriano de arcos, cúpulas, espirais, esculturas profusas - no portão, um leão e um tigre simbolizam Inglaterra e Índia, mas pelas fachadas andam à solta cobras, elefantes, macacos, pavões... Lá dentro, os tectos neo-góticos com nervuras de madeira, os vitrais, azulejos, grelhas de ferro passam quase despercebidos entre a azáfama quotidiana - os placares volteiam destinos, os altifalantes debitam informações, os comboios entram, saem, deixam-se estar e encher quando estão prestes a arrancar: e partem sobrelotados. São comboios com grades, carruagens para mulheres e vendedores - e à margem de tudo, ainda há espaço (e tempo) para jovens que vêem o dia a passar em cima das linhas tendo ratos e ratazanas como companhia e as máquinas fotográficas dos turistas como diversão.

Das ruas para um lugar ao sol

Sente-se o pulso da cidade aqui, nesta estação ferroviária que é um microcosmos da cidade (do país?). Mas é mesmo nas ruas que Bombaim pulsa com essa energia que a torna única - nas ruas que são seres autónomos, com os seus ritmos, códigos, modos de vida (e de morte). É impossível caminhar por Bombaim sem entrar na vida de bombaítas que têm ali a sua casa, os filhos a brincar e a dormir, os seus parcos haveres amontoados ou pendurados em ramos de árvores. É impossível caminhar por Bombaim sem ser em resistência - aos pedintes e aos vendedores, muito mais insistentes, chegando até a provocar fugas declaradas.

Andando para Norte, afastando-nos, portanto, da cidade vitoriana turística, a decadência de Bombaim dá lugar a uma cidade que, a espaços, parece ser zona de guerra - edifícios esventrados sucedem-se, em ruas pardas; barracas alinhadas formam largos quarteirões e a vida continua a fazer-se maioritariamente na rua. Até o Chor Bazar, o "bazar dos ladrões", um dos mais visitados da cidade, surpreende como uma sucessão de "ruínas", cor de areia e cinzento, onde os produtos se exibem com pó que lhes empresta um ar sujo e triste, mesmo quando são dourados.

Mas Bombaim é a cidade dos bazares, a cidade dos mercados: aqui tudo se vende e tudo se compra, dos produtos quotidianos mais básicos (como comida ou desodorizantes) aos souvenirs turísticos, de livros a bússolas, de roupa a bijutaria e há sapateiros, barbeiros, alfaiates com balcões na rua - dir-se-ia que a cidade poderia sobreviver apenas com este comércio informal. Onde há edifícios com arcadas é quase certo encontrar uma sucessão de bancas que à noite se convertem em dormitórios; à porta de um restaurante de luxo, em frente dos seguranças, pode estar um vendedor de "digestivos" tradicionais, preparando as ervas ali mesmo; em qualquer lado pode estar uma vaca e a respectiva dona que prepara uma espécie de almôndegas verdes que vende a transeuntes que por sua vez alimentam a vaca - tudo sob o beneplácito de um pequeno altar, colorido e kitsch.

Na Colaba Causeway, que se estende perto do Taj Mahal Hotel, é difícil circular - os passeios são tendas onde se vende artesanato e bricabraque, t-shirts, lenços, saris (os melhores estão nas lojas, como indicarão os vendedores se pressentirem curiosidade), brinquedos, chinelos e sapatos, sacos e relógios. As fachadas são lojas, lojas, McDonald"s, centros comerciais, cafés - entre eles o Leopold Café and Bar, que, aberto desde 1871, é uma instituição na cidade guardada por seguranças. Lá dentro, uma atmosfera europeia, com as mesas de madeira e tampos de mármore, as pinturas nas paredes e a quota de turistas.

Em ruas paralelas, antiquários, joalharias, galerias de arte, lojas de roupa de marca lembram que Bombaim é o lar dos maiores milionários indianos. Esses têm residência em Malabar Hill, posto avançado sobre o Mar Arábico, que se observa de Marine Drive, a avenida em meia-lua que abraça o mar em perfil Art Déco, estilo popular na cidade nas décadas de 30 e 40. Os seus hotéis de luxo estão coroados de terraços, onde os ricos e famosos desfilam em hedonismo desenfreado.

Mas não há muitas áreas assim demarcadas em Bombaim, onde a ostentação e a miséria andam de mão dada: nos interstícios dos arranha-céus luxuosos, os bairros de lata florescem - Naipaul fala das multidões que se acumulam nos passeios e que querem ascender a esses arranha-céus, o seu lugar no sol de Bombaim. Aquela que é considerada maior slum asiática, Dharavi está bem no centro de Bombaim, como uma ferida aberta, sofrendo as pressões imobiliárias de uma cidade que quer ser uma referência para o futuro e onde os preços das habitações de luxo andam a par dos das grandes metrópoles mundiais. É mais uma lembrança dos extremos de Bombaim. Há quem tenha tudo, há quem não tenha nada. Esta cidade não é para todos, pensamos. Mas é a cidade para todos os sonhos. Para o futuro.

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