O cancro é uma rede social
A visão que os cientistas têm do cancro mudou. Antes, os tumores malignos eram vistos como aglomerados de células capazes de proliferar descontroladamente devido a mutações no seu ADN. Hoje, sabe-se que, para gerar doença, essas células precisam de interagir e comunicar com as células normais à sua volta. Agora, espera-se conseguir manipular essa complexa "rede social", esse microambiente subvertido pelo tumor, para pôr cobro ao cancro
"A medicina", escreve o oncologista norte-americano Siddartha Mukherjee no seu recente livro The Emperor of All Maladies - A Biography of Cancer, "começa por contar uma história". E, no seu livro, Mukherjee tenta fazer um relato da evolução de um cancro do pulmão. Mas a sua história, tal como a do cancro da mama que relatamos já a seguir - e como a de muitos outros cancros -, possui ainda demasiadas lacunas, demasiada aleatoriedade, saltos inexplicados no enredo, personagens cujo papel não é claro, mudanças de cenário cujo sentido não é evidente, volte-faces inesperados e desenlaces demasiado dramáticos. Contudo, uma nova maneira de olhar para o cancro está a emergir.
Comecemos portanto por contar uma história: um belo dia de Primavera, S., uma mulher de 42 anos, faz uma radiografia de rotina ao tórax. Está de perfeita saúde, mas a radiografia faz parte do check-up a que o seu médico assistente a submete todos os anos.
Ao atravessar o seu seio esquerdo, um raio X atinge uma célula da parede interna do canal mamário, provocando a activação de um gene chamado "ERBB2". Até esse momento, o gene não tinha tido qualquer actividade, mas, uma vez activado, o ERBB2 começa a promover a proliferação da sua célula, que passa a dividir-se mais depressa do que as suas vizinhas. Passados uns tempos, forma-se um tumor microscópico, incipiente e, por enquanto, dormente.
Se S. morresse num acidente uns meses depois - atropelada por um carro, por exemplo - e se fosse feita uma autópsia, os médicos legistas ficariam surpreendidos ao descobrir este "cancro in situ".
Mas S. não sofre nenhum acidente, a autópsia não acontece e pode continuar a viver com o seu tumor virtualmente indetectável. S. gosta de fumar e o vício exige-lhe vários cigarros por dia. Anos mais tarde, esse mau hábito causa uma outra mutação nas células do seu tumor incipiente, activando um outro gene associado ao cancro, chamado "myc".
Entretanto, S. atingiu a menopausa e o seu organismo sofreu grandes perturbações, sempre sem manifestar problemas de saúde de maior. Quando S. chega aos 65 anos de idade, os desequilíbrios hormonais, que aumentam com a idade, acabam por atingir e inactivar parcialmente, numa das células do seu tumor (que está estacionário há mais de uma década), um gene chamado "p53", conhecido pela sua acção supressora de tumores. Passam-se mais alguns anos e o gene p53 dessa célula acaba por ficar totalmente inactivado - devido, talvez, à exposição a alguma toxina ambiental, através da alimentação ou de outra via.
Libertado dos mecanismos que o mantinham adormecido, o tumor começa então a crescer e a invadir os tecidos adjacentes. Multiplicam-se as mutações nas células cancerosas, que passam a fabricar elas próprias as substâncias de que precisam e continuam a proliferar.
Se S. fizesse agora uma mamografia, o seu tumor poderia ser detectado nesta fase precoce, em que ainda mede menos de três centímetros e não se espalhou ainda para outros órgãos. Mas S. não costuma ir regularmente ao ginecologista, a sua saúde nunca lhe deu problemas, já deixou de fumar há anos e considera que está em esplêndida forma. Até que uma manhã, enquanto se veste, S. sente uma massa no seu seio esquerdo. O tumor tornou-se palpável e já contém mais de mil milhões de células.
Após uma série de exames e análises, é-lhe diagnosticado um cancro da mama. Tem cinco centímetros de diâmetro, mas, felizmente, ainda não se espalhou para os gânglios linfáticos vizinhos. É administrada à doente uma combinação do arsenal anticancro actual: radioterapia, cirurgia, quimioterapia, para exterminar as células cancerosas até à última.
História sem fim
Nesta fase do seu desenvolvimento, o tumor já não é apenas um aglomerado de células cancerosas. Contêm também células normais - fibroblastos (que fabricam colagénio), células imunitárias convocadas pelo organismo para infiltrar e atacar o tumor, células envolvidas na inflamação gerada pelo tumor, etc. E também vasos sanguíneos, que lhe fornecem nutrientes e oxigénio. O tumor transformou-se num órgão - aberrante, potencialmente letal, mas, mesmo assim, um órgão, com tudo o que isso implica em termos de complexidade. Por enquanto, contudo, trata-se de um tumor localizado no seio esquerdo.Durante o tratamento do tumor, as células cancerosas continuam a dividir-se e, como são geneticamente muito instáveis, sofrem mais mutações. Uma dessas mutações, por acaso, torna uma célula resistente ao tratamento. Enquanto à sua volta as outras células cancerosas são destruídas pelos medicamentos citostáticos, esta escapa à morte e continua a proliferar. O tratamento acaba - mas o cancro não. As células resistentes adquiriram entretanto mais uma particularidade: conseguem deslocar-se.
A estrutura do canal mamário é assegurada por um tecido conjuntivo ou matriz extracelular. Agora, esta barreira natural vai ser literalmente burilada pelas células cancerosas móveis. Elas começam por se agarrar à matriz graças a certas proteínas e, uma vez bem seguras, usam outras substâncias para abrir buracos na sua estrutura. É por esses buracos que vão sair do tecido mamário em que nasceram e chegar ao fluxo sanguíneo. Viajando a partir daí para locais distantes, algumas delas conseguem invadir e colonizar novos tecidos. Uns meses mais tarde, uma TAC revela a presença de pequenos tumores nos ossos e nos pulmões de S.
O cancro tornou-se metastático. E o prognóstico torna-se reservado.
A história de S. é fictícia. Mas é, em linhas gerais, a história de milhões de mulheres que já sofreram de cancro da mama. Pode não ser exactamente desta forma que o cancro se desenvolve, uma vez que os cientistas não desvendaram ainda os pormenores moleculares exactos que podem levar à doença. Mas trata-se de uma história baseada em resultados científicos recentes, que mostram até que ponto a visão que os especialistas têm do cancro tem evoluído nos últimos anos.
Cancro sem doença
Em 2004, surgiu na revista Nature um ensaio com o título "Cancro sem doença", da autoria de Judah Folkman (1933-2008) e do seu discípulo Raghu Kalluri, ambos especialistas de cancro da Universidade de Harvard. E, no início de 2011, num congresso organizado em homenagem a Folkman na Fundação Champalimaud, em Lisboa, Kalluri (que na altura era responsável pelo Centro do Cancro da fundação), evocou este surpreendente facto: muitos de nós vivemos com minúsculos tumores cancerosos sem o sabermos. "Trinta e nove por cento das mulheres com 40 a 50 anos de idade que morrem devido a outras causas e que são autopsiadas revelam tumores da mama in situ, lesões adormecidas que têm defeitos genéticos característicos das células cancerosas, mas que não progrediram para a doença." Algo parecido também se verifica nas autópsias de homens em relação à próstata. Mais: praticamente todas as autópsias a pessoas com 50 a 70 anos de idade revelam cancro in situ da tiróide.No entanto - e apesar da assustadora história acima relatada -, apenas uma em cada oito mulheres irá sofrer um cancro da mama na sua vida. "O que é que faz com estes cancros nunca acordem?" perguntou Kalluri. "E como fazer para os mantermos nesse estado?"
O primeiro cientista a imaginar uma forma de manter os cancros "dormentes" foi precisamente Folkman, que, em 1971, especulou que era possível asfixiar os tumores, impedindo que formassem novos vasos sanguíneos (a angiogénese). A proposta era de tal modo diferente das terapêuticas convencionais que foi muito mal recebida pela comunidade dos especialistas. Só seria definitivamente aceite em 1989.
Entretanto, começou-se a perceber a genética do cancro. E, em 1982, Robert Weinberg, do MIT, e colegas, descobriram o primeiro gene do cancro ou oncogene - um gene chamado "Ras", que existe normalmente no ADN dos ratinhos, e também dos humanos - e que, quando é activado numa célula sob o efeito de uma certa mutação, faz com que ela se divida mais frequentemente.
O contexto faz a doença
Nos dez anos que se seguiram, a visão do cancro alterou-se ainda mais radicalmente.Sabe-se agora que mesmo uma célula portadora de todo o tipo de mutações genéticas propícias ao aparecimento de um cancro não chega para gerar a doença.
Uma das grandes pioneiras desta ideia foi Mina Bissell, investigadora de origem iraniana emigrada para os EUA aos 17 anos e que trabalha no Laboratório Nacional Lawrence Berkeley na Califórnia. Bissell dedica-se, desde os anos de 1980, ao estudo das interacções entre as células cancerosas do cancro da mama e aquilo a que os especialistas chamam o "microambiente" do tumor - ou seja, o contexto celular e molecular em que as células potencialmente cancerosas se desenvolvem. "Temos dez milhões de milhões de células no nosso corpo e o contexto é determinante para o efeito oncogénico", disse Bissell, que também esteve presente no congresso de Janeiro, em Lisboa.
Com os seus colegas, Bissell criou um modelo tridimensional do cancro da mama num pratinho de laboratório e, em 1992, mostraram que, quando as células de um tumor da mama humano eram colocadas num microambiente in vitro normal, ""pensavam" que eram elas próprias normais e comportavam-se como tal, apesar de todas as suas mutações". Basicamente, a conclusão espectacular que se impunha era que o cancro podia ser... reversível! Aparentemente, estas células delinquentes podiam ser "recuperadas", desde que estivessem rodeadas de um ambiente correcto e podiam ser reintegradas de novo com sucesso na sociedade biológica a que pertenciam.
De facto, as células cancerosas estão em diálogo constante com as células normais em seu redor e esse diálogo é determinante na progressão da doença - uma autêntica rede social do cancro. Mas o microambiente tumoral in vivo é algo de extremamente complexo, feito de diversos tipos de células e, ao mesmo tempo, mergulhado num caldo de substâncias bioquímicas que as células cancerosas induzem as células normais a fabricar em seu proveito. Substâncias como, por exemplo, as que favorecem, justamente, o crescimento dos vasos sanguíneos. "Existem interacções complexas entre as células cancerosas e o tecido normal em seu redor", explica Robert Weinberg ao P2, numa troca de emails. "À medida que o tumor se desenvolve, o tecido envolvente adquire o aspecto de uma ferida crónica, em constante cicatrização."
Acrescente-se a tudo isto que o cancro não é uma doença monolítica - tem manifestações diferentes conforme o órgão atingido e até de pessoa para pessoa - e o cenário com que se deparam os cientistas pode rapidamente tornar-se confuso e desalentador.
Cem doenças, uma doença
Para tentar pôr um pouco de ordem na esmagadora profusão de resultados díspares e por vezes contraditórios produzidos ao longo de décadas, Weinberg e Douglas Hanahan, do Instituto Suíço de Investigação Experimental do Cancro, publicaram, em 2000, um artigo na revista Cell que se tornou um clássico no meio. Intitulado Hallmarks of Cancer ("características distintivas do cancro"), fazia o ponto do que se sabia na altura sobre as características comuns a todos os cancros. E muito recentemente, em meados de Março, voltaram a fazer o mesmo exercício de sistematização, integrando os resultados da última década, e a publicar as suas conclusões na mesma revista.Segundo eles, as características comuns a todos os cancros são, em primeiro lugar, os seis que já tinham enumerado há 11 anos: auto-suficiência em factores de crescimento; insensibilidade aos factores anticrescimento; invasão dos tecidos e metástases; potencial ilimitado de replicação; crescimento contínuo de vasos sanguíneos; resistência à morte celular.
A essas juntam agora a instabilidade genómica e a inflamação, que consideram ser características que propiciam o cancro. E, por último, duas características que têm emergido dos resultados mais recentes, mas que ainda não estão totalmente confirmadas: a fuga ao sistema imunitário e a reprogramação do metabolismo energético.
"Existem medicamentos aprovados ou experimentais contra todas estas características, mas os benefícios de praticamente todos eles são limitados pelo desenvolvimento de resistência", explicava Hanahan na altura da publicação. "A nossa hipótese, razoável mas incerta, é que, se conseguirmos lutar ao mesmo tempo contra várias delas (...), os benefícios clínicos para os doentes poderão ser maiores."
Uma das vias que a equipa de Weinberg está actualmente a estudar, lê-se no site do seu laboratório, tem precisamente a ver com a "rede social" do cancro: os processos moleculares que permitem que as células cancerosas "recrutem" células dos tecidos normais vizinhos - obrigando-as, em particular, a emitir substâncias que promovem o crescimento vascular. O outro tema da sua investigação bem poderia chamar-se a última fronteira do cancro: os processos que levam à formação de metástases.
Invasão, colonização
A derradeira etapa da progressão do cancro - a formação de metástases em locais afastados do tumor primário e em tecidos diversos -permanece a mais misteriosa. O que não deixa de ser algo irónico, uma vez que as metástases são responsáveis por 90 por cento da mortalidade associada ao cancro.Weinberg distingue duas etapas neste processo: a invasão de um tecido por células cancerosas que conseguiram escapar do tumor inicial, atingir o fluxo sanguíneo e viajar pelo corpo fora; e a colonização dos tecidos atingidos, com formação de tumores em terrenos diferentes do inicial. Weinberg acredita estar-se à beira de perceber como se desenrola a primeira etapa, mas não tem certezas quanto à segunda. "Sabemos muitas coisas sobre a forma como as células cancerosas se deslocam do tumor primário para um local distante do corpo", explica ao P2, "mas ainda é pouco claro como fazem para sobreviver e proliferar num tecido distante."
Quanto a saber se vai ser possível um dia, tal como perguntava Kalluri em Lisboa, manter os tumores microscópicos no estado dormente, Weinberg responde que, embora isso possa vir a ser possível no futuro, ainda não se sabe como o conseguir.
"Trata-se de um grande e complexo desafio, uma vez que, ao que tudo indica, as células cancerosas dormentes não são mais vulneráveis do que as células normais do organismo. Por isso, parece pouco provável que num futuro próximo consigamos matar essas células dormentes sem, ao mesmo tempo, causar grandes estragos nos tecidos normais."