Marchas das Galdérias Há uma nova voz do feminismo

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SlutWalk manifestou-se em Lisboa no sábado pedro cunha
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SlutWalk manifestou-se em Lisboa no sábado pedro cunha

O movimento SlutWalk eclodiu no Canadá. Em poucos meses espalhou-se pelo mundo como a mais audível voz contra os estereótipos e a culpabilização das vítimas de agressões sexuais

Desde tempos imemoriais que o corpo - e propriedade do próprio corpo - é usado como uma das principais armas de afirmação individual nas mãos das mulheres. Foi assim quando um grupo de feministas deitaram no lixo soutiens e sapatos de salto alto durante o concurso de Miss América em 1968 (dando origem ao muito repetido mito da queima de soutiens) e é também assim que, agora, mais de 40 anos passados, um novo movimento, formado na maioria por mulheres jovens, está a levar às ruas um novo protesto - amiúde envergando pouco mais do que os antigos símbolos de "opressão da mulher" - em marchas que baptizaram "SlutWalks", ou Marchas das Galdérias numa tradução livre.

Milhares de mulheres e também homens manifestam-se nestas marchas contra a ideia de que aquilo que uma mulher vista ou como se comporte, sugestiva ou não, provocadora ou não, evocadora ou não da sua identidade e actividade sexual, a torne num alvo para a violação ou convite a qualquer outra forma agressão de natureza sexual.

A primeira marcha foi organizada em Abril por cinco alunas de Direito em Toronto, no Canadá, e desde então o movimento tornou-se viral e espalhou-se por 75 cidades desde o Canadá aos EUA, Europa, Ásia e África. "Em apenas alguns meses, as SlutWalks tornaram-se na mais bem sucedida acção de feminismo das últimas duas décadas", avalia a norte-americana Jessica Valenti, fundadora do website Feministing.com e autora do livro The Purity Myth: How America"s Obsession with Virginity Is Hurting Young Women.

Neste fim-de-semana, o movimento chegou também a Lisboa (e em breve estará no Porto), com uma primeira marcha em que centenas de mulheres e homens desceram, no sábado, do Largo do Camões até ao Rossio, com a mesma mensagem que há vários meses tem vindo a ecoar pelo mundo: "Não é não." "O que pretendemos é alertar a opinião pública para a violência sexual, para os números que existem de crimes sexuais cometidos contra as mulheres, que são terríveis e visíveis em todo o mundo", explica Joana Vicente Baginha, uma das organizadoras da SlutWalk de Lisboa.

"Mas também queremos falar da nossa especificidade", sublinha, sustentando que "a gota de água" para o movimento SlutWalk em Portugal foi "a absolvição de João Villas Boas pelo Tribunal da Relação do Porto" - em referência ao caso em que aquele psiquiatra acabou ilibado, em Maio passado, no recurso da sentença em que foi condenado por ter violado uma grávida sua paciente; com o colectivo de juízes (com um voto vencido) a decidir que os factos provados em primeira instância "não foram suficientemente violentos" para enquadrar o crime de violação.

"A interpretação do tribunal é inaceitável, como o é a tipificação do crime de violação no nosso Código Penal, permitindo desenlaces como o deste caso. E nós queremos dizer basta, queremos dizer que já não dá mais para aceitar estas coisas", sublinha Baginha, de 32 anos, formada em Sociologia e que este ano segue para o Reino Unido para defender um mestrado em Estudos do Género (sexo masculino e feminino) na School of Oriental and African Studies.

A eclosão do SlutWalk deveu-se na origem, porém, não a um crime sexual, mas ao que muitos dos aderentes ao movimento amiúde descrevem como "um momento de infelicidade", nas apreciações mais contidas. Foram estas as palavras que causaram a revolta e incendiaram multidões, ditas pelo polícia canadiano Michael Sanguinetti, numa palestra sobre segurança no campus universitário, a 24 de Janeiro, na Faculdade de Direito de Toronto: "Aconselharam-me a não dizer isto, mas vou dizê-lo na mesma, pois a verdade é que, se quiserem evitar ser vítimas de agressão sexual, não devem vestir-se como galdérias [sluts]."

"Algumas pessoas interpretaram aquelas declarações como algo inócuo, como se não fosse nada mais se não um comentário infeliz feito sobre roupas, mas o que ali foi feito foi a culpabilização das vítimas pela agressão sexual. E a expressão de um pensamento dominante na sociedade de que a mulher é a responsável pelo crime de que é alvo. Haverá sempre alguém, como Sanguinetti, que encontrará uma qualquer razão para argumentar que a mulher estava mesmo a pedi-las: ou porque não se debateu tanto quanto devia, ou porque devia ter feito uma melhor escolha de namorado ou de marido... E é essa cultura de pensamento que o movimento SlutWalk denuncia e critica e quer ver acabada", argumenta a britânica Anastasia Richardson, de 17 anos, estudante e uma das organizadoras da SlutWlak que, a 11 de Junho, juntou perto de cinco mil pessoas numa marcha no centro de Londres, desde Hyde Park até Trafalgar Square.

Joana Vicente Baginha ecoa esta linha de pensamento, reiterando que o polícia canadiano - o qual entretanto já pediu desculpas públicas e está a ser alvo de um inquérito interno no Departamento de Polícia de Toronto - "vitimizou duplamente" as pessoas contra as quais são cometidos crimes de natureza sexual. "Depois de serem vítimas de violação, são também vítimas da culpabilização. É infelicíssimo que alguém que veste um uniforme e deve agir como protector dos cidadãos se tenha comportado da forma justamente oposta", critica.

"O vestido não é um sim"

Desde a primeira marcha no Canadá, a mobilização SlutWalk pegou fogo na rede social Facebook e no serviço de microblogging Twitter, surpreendendo mesmo as organizadoras destas manifestações. "Há um número enorme de pessoas cheias de vontade de se baterem por esta causa. Estamos a assistir a algo incrivelmente poderoso. Nunca pensei que [o movimento] se tornaria em algo tão grande e com uma tão expressiva participação", nota Anastasia.

Os slogans ouvidos nas ruas durante as marchas amiúde insistem na mensagem de que "Não quer dizer não". Alguns cartazes afirmam que "O vestido não é um sim" e os manifestos do movimento repetem insistentemente as críticas "à duplicidade de critérios e estereótipos dos géneros masculino e feminino, em que um homem sexualmente activo e com vários parceiros é um garanhão e a mulher com igual comportamento é uma puta".

As críticas a Sanguinetti - e ao pensamento social expresso pelo polícia - estão sempre lá, também na escolha do nome dada às manifestações. "Usamos a palavra "galdéria" [slut], porque foi essa a palavra que o polícia usou. Se ele tivesse dito "vadia" [tart], seria então essa a palavra que usaríamos e estas seriam TartWalks", ironiza Caitlyn Haywordat, outra das organizadoras da marcha de Londres.

"É o conceito, o estereótipo e o pensamento patriarcal dominante que tenta dizer às mulheres como elas se devem comportar - entenda-se, recatadamente, sem afirmação da sua sexualidade - que aqui denunciamos. Mas é claro que usarmos esta palavra captou a atenção das pessoas. E, ao mesmo tempo, ao usá-la tanto, de maneira repetida até à exaustão, ao reclamarmos para nós próprias esse nome, ao usá-la, gozar com ela, gastá-la, sinto que estamos também a tirar-lhe a força agressiva e a dizer que esta palavra já não pode voltar a magoar-nos", conclui esta estudante de 24 anos.

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