O nosso cérebro gosta de fabricar preconceitos

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Imagem apresentada num dos estudos de Sherman: da esquerda para a direita, a transformação de um rosto asiático num caucasiano daniel rocha

A maioria dos seres humanos demonstra preconceitos em relação às minorias étnicas. Aém das razões sociais, económicas e culturais, será que essa tendência para criar estereótipos tem a ver com a forma como funciona o nosso cérebro?

Steven Sherman, psicólogo social da Universidade do Indiana, EUA, interessa-se pela maneira como os seres humanos constroem estereótipos. Sherman diz que isso acontece porque temos uma irresistível tendência para organizar o mundo em categorias. Numa conferência no Instituto Superior de Psicologia Aplicada, em Lisboa, há algumas semanas, Sherman expôs os resultados das suas pesquisas.

O nosso cérebro, explica, é uma máquina de criar categorias. Sem elas, não conseguiríamos perceber a complexidade do mundo real. Mal nascemos, começamos a aprender a reconhecer as classes de objectos mais frequentes à nossa volta. Nas sociedades ocidentais, onde a categoria maioritária em termos de cor da pele é aquilo a que chamamos "branco", isso implica que é essa categoria que aprendemos a distinguir primeiro e a associar a diversos atributos físicos e mentais, que em geral vemos como normais, como positivos, como "humanos". A seguir, quando surgem na nossa vida pessoas com outra cor de pele, vamos naturalmente associar a essas categorias "minoritárias" os atributos físicos que mais as distinguem da primeira. No caso dos negros, coisas como "cabelo crespo", "nariz achatado", "lábios grossos", etc.. E sem darmos por nada, inconscientemente, passaremos a relacionar esses atributos físicos muito fortemente - e quase exclusivamente - à categoria "negro". É por isso que, quando olhamos para o rosto de Barack Obama, nascido de mãe branca e pai negro, são sobretudo esses traços distintivos que nos saltam à vista. É por isso, diz Sherman, que achamos que Obama é "negro" - quando, na realidade, é tão "negro" como "branco".

Por que consideramos que Barack Obama é negro?

Com base nas nossas pesquisas, qualquer rosto que possui uma mistura de traços maioritários e minoritários tenderá a ser categorizado como pertencendo à minoria. Claro que as razões são também em parte sociopolíticas, sociológicas, mas acho que o fenómeno faz mesmo parte das nossas percepções. Barack Obama possui as características faciais negras mais salientes. Também tem características brancas, mas nós não reparamos nelas, fazem parte do cenário, estão lá e pronto.

Estamos "programados" para construir estereótipos?

É uma maneira bastante justa de enunciar as coisas.

O racismo não surge apenas de preconceitos sociais ou culturais?

Não. Existe também uma razão de ordem cognitiva e não se trata apenas de animosidade, discriminação ou do facto de não gostarmos das pessoas negras. Por vezes, efeitos puramente cognitivos podem conduzir ao mesmo tipo de resultados que efeitos motivacionais.

Acontece que qualquer atributo comum a todas as categorias será associado à primeira categoria que aprendemos, ou seja, à categoria maioritária. É por isso que as características relativas à natureza humana, que todos partilhamos, tendem a ser atribuídas à categoria maioritária - e que temos tendência a "desumanizar" os grupos minoritários: porque os atributos que são em geral associados com o grupo minoritário "costumam" ser mais negativos e pouco humanos. Não é uma maneira muito feliz de ver o mundo, mas é provável que a realidade seja essa. Nem todas as teorias psicológicas e biológicas são positivas no que respeita à condição humana.

Ao mesmo tempo, o facto de saber que somos assim pode ajudar-nos a contrariar essa tendência natural?

Sim, mas é uma luta. Seria muito mais agradável se não tivéssemos de combater esses instintos. Eu não estou de maneira nenhuma a defender a existência de estereótipos, sobretudo quando são negativos e destruidores, mas também nem sempre é verdade que possamos culpar as pessoas e acusá-las de odiar outrem. Algumas dessas percepções ocorrem de uma forma muito natural - e é preciso educação e esforço para lutar contra elas. Se pedirmos a alguém para escrever o que pensa dos idosos, dos judeus, dos negros, dos muçulmanos, vai dizer que gosta de todos eles. Mas a medição de certas atitudes não-conscientes em relação aos grupos minoritários revela que são muito negativas - em especial perante rostos negros, que são mais fáceis de associar a atributos maus do que a atributos bons. Isso acontece em todo o lado [onde os brancos sejam maioritários] - e acontece sem dúvida nos EUA e na Europa.

Ninguém gosta de ouvir dizer que talvez tenhamos conseguido livrar-nos dos nossos preconceitos explícitos - das nossas leis de segregação, de escravatura - mas que esses sentimentos implícitos que temos e que nem sequer controlamos são muito mais subtis e até mais destruidores.

Por exemplo, face a dois candidatos, um branco e um negro, a um emprego que exija experiência e formação ao mesmo tempo, as pessoas vão ter tendência a optar pelo candidato branco, argumentando que a formação é mais importante que a experiência - se for o caso da pessoa branca. Mas se o candidato branco tiver mais experiência e menos formação, então o argumento será que a experiência conta mais para o emprego. Ora, essas pessoas não fingem, não mentem, acreditam firmemente no que estão a dizer. Construímos um mundo em coerência com os nossos sentimentos e é difícil fugir a isso. Estes tipos subtis de estereótipos e preconceitos podem desenvolver-se a partir de mecanismos cognitivos muito gerais.

O que aconteceria se um grupo de crianças de cores diferentes fosse criado num ambiente totalmente neutro em termos de frequência de cor da pele? Ainda fariam este tipo de categorização?

As crianças muito novas talvez sejam "daltónicas" (color-blind), mas mais tarde ou mais cedo, isso vai mudar.

Num dos estudos que realizou fizeram um morphing, transformando rostos brancos em rostos asiáticos e vice-versa. O resultado foi que as pessoas brancas tendiam a ver as faces ambíguas como sendo asiáticas e os asiáticos tendiam a vê-las como sendo brancas.

Exactamente.

Num segundo estudo, partiram de uma série de pares de rostos e fizeram um morphing entre os dois elementos de cada par.

Sim. E como nos pares um dos rostos aparecia com mais frequência do que o outro, esse rosto mais frequente era categorizado primeiro. E o facto é que, fosse qual fosse o rosto escolhido para ser o mais frequente, os participantes consideravam sempre que o rosto ambíguo pertencia à categoria criada em segundo lugar [a categoria com menos representantes]. No mundo real, aprendemos a reconhecer as coisas mais frequentes antes de reconhecermos as mais raras.

Nestas experiências, as pessoas não se davam conta de que existia uma diferença na frequência com que apareciam determinadas fotografias?Não. Muita dessa aprendizagem de categorias passa-se a um nível não-consciente. Aliás, isso representa uma mudança radical na Psicologia nos últimos 20 a 25 anos. Não há assim tanto tempo, todos se riam de Freud porque falava do inconsciente. Parecia mesmo estúpido pensar que as coisas podem acontecer sem darmos por elas! Hoje, quem não fala no inconsciente é que é considerado muito estúpido, porque quase tudo o que fazemos é não-consciente. Não estamos cientes de processos automáticos, podem ser-nos mostradas coisas a um nível subliminar. Ainda há quem se ria de Freud, mas é um facto que muitas das coisas que ele disse sobre o inconsciente estão perto do que nós cientistas dizemos hoje.

Quantas pessoas participaram nestes estudos?

Entre 100 e 150.

Da mesma forma, com as palavras, aprendemos as mais frequentes primeiro e as menos frequentes mais tarde. É uma questão de frequência aqui também, do nível de exposição?

Isso é interessante, gosto desse exemplo das palavras. Mesmo com as letras, as características das letras menos frequentes parecem particularmente fortes e negativas. Não são letras felizes. Há também um efeito psicológico muito conhecido: quanto mais vemos uma coisa, mais gostamos dela. Por isso gostamos de letras comuns mais do que de letras invulgares. Gostamos das canções que mais ouvimos. Eu cresci a ouvir música na rádio e os produtores de discos pagavam aos DJ para passarem as suas canções mais vezes porque sabiam que assim os adolescentes iam gostar mais delas e comprar os discos. É um outro factor importante.

Está a pensar fazer mais experiências?

Talvez. Não sei. Tenho interesses muito eclécticos e gosto de fazer muitas pesquisas diferentes na área da Psicologia. O que faço a cada momento depende muito dos interesses dos meus estudantes. Neste momento estou mais implicado em pesquisas sobre a linguagem.

O que está a estudar?Temos feito estudos com italianos e anglófonos, olhando para a ordem adjectivo-substantivo. Em inglês a ordem típica é essa, mas em italiano é o contrário. Isso faz uma enorme diferença e estamos agora a estudar este tipo de diferença em termos de estereótipos. Em inglês, dizemos the old woman - a idade vem antes do género. Em italiano, dizem una donna vecchia (o que corresponderia a dizer "a woman old"). A hipótese é que nos EUA deveríamos ter estereótipos relativamente mais fortes em relação à idade, ao passo que em Itália, os mais fortes deveriam ser relativos ao género. Também fazemos estudos com lusófonos: por exemplo com lazy lawyer (em português tenho a certeza que é lawyer lazy), perguntamos aos participantes o que podem dizer sobre uma pessoa descrita dessa maneira. Os norte-americanos focam-se na preguiça e os portugueses na profissão. É uma enorme diferença. Já temos alguns dados e posso dizer com alguma segurança que é isso que acontece. Sabemos que isso afecta a memória e a avaliação das semelhanças.

Isso significa que a visão do mundo muda em função da língua?

Absolutamente. Com as semelhanças, por exemplo, se tivermos um lazy lawyer e um happy teacher e perguntarmos qual deles é mais parecido com um happy lawyer, as avaliações de semelhança são totalmente diferentes em Portugal e nos EUA. Nos EUA focamo-nos em happy e em Portugal em lawyer.

Também influencia a aprendizagem?

Sim. Se nos disserem que alguém é um lazy lawyer, mais tarde teremos tendência a lembrar-nos mais do lazy do que do lawyer.

E que pensa do facto de se dizer um black man em inglês e um homem negro em português?

Ah! É por isso que é o meu trabalho actual é fascinante! Em inglês podemos dizer african-american man, usando african-american como adjectivo, ou então dizer um male african-american e usar african-american como substantivo. Ou seja, podemos mudar african-american de uma categoria para a outra.

Mas no mundo real, dizemos a black man, e em português ou italiano é homem que vem primeiro.

Com estas duas palavras, tem provavelmente razão. Mas por exemplo, o que dizer de homosexual artist vs artistic homosexual? No primeiro caso, o ênfase é em homosexual, no segundo, é artistic que terá mais peso. Estamos a começar a estudar estas questões.

Mas insistindo no black man vs homem negro, não pode isso afectar o tipo de estereótipos negativos que construímos? O facto de dizer black em inglês primeiro e homem nas línguas latinas primeiro pode significar (e explicar em parte) que há muito mais preconceitos sobre a cor de pele negra nos EUA, ou na África do Sul, do que nos países de língua latina, por exemplo?

Absolutamente, essa é a nossa teoria. A força dos estereótipos vai depender do que vier primeiro. Mas temos ainda muitos estudos a fazer.

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