Rui Ramos "Terrorista" desde criança
O percurso de Rui Ramos podia dar um ensaio sobre a infância e a adolescência na sociedade colonial angolana. De como é crescer, ver e interiorizar as desigualdades raciais. Assistir às reacções dos acontecimentos nacionalistas, como o ataque à esquadra da polícia e à cadeia de São Paulo, em Fevereiro de 1961. Ou outros, de um racismo bárbaro. Tudo isso lhe determinou o futuro, repleto de acções clandestinas e prisões. Ainda hoje, com 65 anos, Rui Ramos mantém uma filosofia de vida rebelde. Reformou-se em Portugal, onde trabalhou e reside há mais de 20 anos. Optou pela nacionalidade angolana em 1975. Quando morrer, quer ser coberto com a bandeira de Angola. Nunca duvidou da sua identidade: "Não sou europeu. Sou de África. Sou "negro". Aliás... sou crioulo. A minha naturalidade anímica é africana. Portugal para mim é um país estranho."
Os pais, Clementino e Prazeres, portugueses, migraram com a família ainda em bebés na primeira década do século XX. Em 1945, Rui Ramos nascia em Luanda. Quando foi para a escola, reparou que quase todos os colegas eram brancos. "Havia dois ou três negros na minha sala. Eram raros os que passavam "o filtro" e chegavam ao liceu." Ficou marcado por um episódio logo aos 5 anos. "A Padaria Lafões era ao lado de minha casa. Tinha havido um furto e os donos da padaria, dois brancos, acusaram logo o servente negro. Espancaram-no quase até à morte." Rui Ramos sentia-se angolano nacionalista, antes de perceber o sentido da palavra. "Estava no mais profundo de mim. Desde tenra idade que não aceitava a sociedade colonial. Era um sentimento sem ideologia. Fui vendo coisas, apercebi-me que vivia numa sociedade injusta. Os colonos menosprezavam o negro."
Os pais de Rui Ramos eram pobres. O pai tinha dois empregos, um como porteiro no Cinema Colonial, o que permitiu ao jovem perceber a Luanda do apartheid. "As comunidades não se tocavam. Em frente ao ecrã havia bancos de cimento sem costas, para os "indígenas". Depois um muro separava um outro espaço, para os "assimilados" negros e mestiços. Aí, já havia bancos de madeira corridos, com costas. Mais acima, também separados, ficavam os brancos em cadeiras individuais." No Cinema Colonial o pai Clementino fez uma sessão privada para a família ver o documentário sobre a prisão do líder congolês Patrice Lumumba (1925-1961). "Ainda tenho o filme na cabeça. A PIDE tinha proibido a exibição, mas o meu pai mostrou-nos."
Em Fevereiro de 1961 tinha 15 anos. Como habitualmente, foi para o Liceu Salvador Correia, onde era conhecido pelos professores por dizer que não era português, mas sim angolano. De noite tinha havido os assaltos. "Estavam todos agitados. Uns brancos diziam que o melhor era Angola separar-se da metrópole, porque não os defendia. Sentiam-se abandonados. Outros diziam que uns "pretos" vestidos de preto tinham atacado e morto uns polícias. A partir daí qualquer negro com roupa preta era morto. Fui com o meu pai ao funeral das vítimas portuguesas. Junto ao cemitério havia uma fábrica de mármores onde trabalhavam uns negros que, entretanto, vieram espreitar. Houve um momento que não agradou e os negros foram mortos ali mesmo. Eu vi. Aquilo era irracional. Havia brancos pobres que faziam "caça" aos negros. Até negros com óculos ou que andassem com livros podiam ser mortos. Tinham de ser "terroristas", se parecessem intelectuais."
Nesta altura o adolescente decidiu fazer um bilhete de identidade falso, para uso privado. "Pus a minha foto, nome, tudo, e em cima "República de Angola". Os meus colegas brancos chamavam-me "terrorista"." Chegaram ecos da matança da UPA no Norte de Angola. "Os massacres levaram muitos portugueses a regressar. Luanda branca ficou despovoada de mulheres e crianças. Os colonos sentiam-se impotentes e abandonados. Já havia consciência de que as coisas deviam mudar. Crescia uma dinâmica anticolonial, cultural."
A luta dava um livro
Rui Ramos teve um caminho solitário na busca pela justiça social, mas ajudado por vários autores. "Frantz Fanon, Camus, Sartre, Albert Memmi... fiz uma pequena biblioteca no quarto, onde juntava os amigos negros e dois brancos. Encomendava livros contra reembolso. Assim li Agostinho Neto e Luandino Vieira." Tudo isto foi determinante quando teve a oportunidade de passar à acção, como director do jornal O Estudante, do Liceu Salvador Correia. Retirou-o da influência da Mocidade Portuguesa, fez sair uma edição anticolonial. "Escrevemos textos ateus, a defender aulas de Música em vez de Religião e Moral e até o poema Viva a Revolução. O jornal foi proibido e nós criticados no púlpito da Sé de Luanda."Viu partirem colegas e vizinhos do bairro para se juntarem ao MPLA. Em 1965, era a sua vez de ser recrutado. Militou clandestinamente no Grupo Kimangua, do MPLA, com o nome de guerra "Lulendo". "Já não convivia com colonos, só com negros e mestiços. O Kimangua tinha muita actividade. Fizemos reuniões em minha casa e no único carro do meu pai, um Volkswagen. De brancos, era eu e o Ferreira Neto. O José Ferreira Fernandes também seguia o grupo. A minha mãe fazia-nos grandes lanches."
Aos 23 anos "Lulendo" era preso. O Kimangua tinha escrito nas paredes de Luanda, sobre as eleições de 1969 para a Assembleia Nacional: "Não votamos porque não somos portugueses." "A PIDE libertou-nos passado algum tempo, mas estávamos proibidos de fazer qualquer contacto." A segunda prisão foi no ano seguinte. Regressava a Luanda proveniente da metrópole, onde frequentava o curso de Direito. "Viajava num semicargueiro da CUF, com um PIDE no camarote. Fui preso quando chegámos a Luanda, nem me deixaram desembarcar. Levava uma policopiadora para a nossa actividade." Voou prisioneiro num avião da TAP para Lisboa. Passou por Caxias e por Peniche. Três anos e meio. "Os negros do grupo tiveram pior sorte. Foram para São Nicolau e Tarrafal, com penas de 11 anos sem julgamento."
A PIDE apreendeu em casa de Rui Ramos um manual de guerrilha urbana que vinha dactilografando para distribuir aos militantes de um centro de instrução revolucionária urbana que queriam organizar. "Visava treinar militantes clandestinos na luta anticolonial. Claro que era uma utopia lançar a guerrilha urbana em Angola, pois as cidades eram muito controladas pela PIDE e serviços de informações militares." Uma outra vez foi apanhado com instruções para fabricar explosivos destinados a rebentar carros de grandes colonos. Tudo explicadinho. "A PIDE pediu para mim 24 anos de prisão e medidas de segurança a seguir à pena."
A luta de Rui Ramos daria um livro. Foi professor, membro do Governo de Transição pelo MPLA, em 1975, chefiou e dirigiu revistas e jornais. Quinze dias antes da independência de Angola defendeu a pluralidade de opiniões pacíficas. Quinze dias depois, em finais de Novembro de 1975, era novamente preso pela DISA. Saiu definitivamente em liberdade em 1980, sem julgamento, quando José Eduardo dos Santos, que admira, assumiu a presidência. Em Portugal foi editor no Expresso, director do África Confidencial e colaborador da TSF, BBC e Rádio France. "Sempre com o coração no MPLA."