Mitos e tramas com pés de barro

Por instantes supus que fosse brincadeira, mas era verdade: o grupo de jornalistas europeus estava disposto a contornar a agenda oficial dos respectivos chefes de Estado e de Governo para ir a La Higuera. Bom, na verdade eu também preparava uma pequena fuga para ir entrevistar um tal Evo Morales. [Já vamos ao "Método Prático da Guerrilha", de Marcelo Ferroni, acabado de editar pela D. Quixote, o pretexto destas linhas.]

Por fazer demasiado calor ou por o lugarejo ficar a 150 quilómetros, a verdade é que a viagem dos colegas não aconteceu, enquanto eu tive mais sorte e pude retomar a breve passagem de Jorge Sampaio por Santa Cruz de la Sierra. Isto foi em Novembro de 2003, quando alguns jornalistas portugueses quiseram dar um saltinho ao lugar onde Che foi morto no dia 9 de Outubro de 1967. Foi então que La Higuera ficou no mapa das peregrinações da esquerda, como o Santo Sepulcro o é para muitos companheiros latino-americanos, colombianos à frente, tão fervorosamente católicos como assanhados apanhadores de histórias - eu vi. Esperar que um europeu, uma vez na Bolívia, não vá ao lugar do suplício do mítico guerrilheiros argentino é como esperar que Ingrid Betancourt venha a Portugal e não vá a Fátima (agora já posso dizer, contra o que lhe prometi na altura, que isso aconteceu).

Foi ali que Che Guevara foi executado, depois da desilusão do Congo e do desastre boliviano, histórias ainda mal conhecidas. Ainda há pouco o dissidente cubano Norberto Fuentes confirmava numa entrevista aqui ao Ípsilon que Fidel Castro esfregara as mãos por o ver longe de Havana, para se desembaraçar da sua sombra ou mesmo para o ver morto ("Autobiografia de Fidel Castro"). Verdade? Veremos quando for o próprio Comandante a escrever a sua história - e mesmo assim sobrarão dúvidas.

A última e fatal etapa do percurso do guerrilheiro argentino foi uma tragédia. Isso aparece em várias obras, como "A Ditadura Envergonhada", de Elio Gaspari, e até em argumentos proselitistas como o do filme de Steven Soderbergh, "Che". Chegou disfarçado a La Paz, de cabeça rapada, fato e gravata, onde já se encontrava Tania, a misteriosa agente cubana de ascendência alemã a preparar-lhe o terreno. Teve dificuldades em tornar os candidatos locais em combatentes pelo menos melhores do que os de Kabila, no Congo, e em discipliná-los. E mais ainda em convencer Mario Monge, o chefe do PC boliviano, a alinhar na rebelião, foco de uma ansiada sublevação continental.

Tudo isto no entanto num misto de sonho e morte, com pouco para rir e é aqui que passamos ao "Método Prático de Guerrilha", de Marcelo Ferroni, editor da Alfaguara, uma casa com responsabilidades. O autor estudou durante anos o percurso do combatente, hesitando entre a biografia e o romance histórico, acabando, na sequência da leitura entretanto de "Che Guevara: A Biography", de Daniel James, por optar por um thriller, explorando à exaustão, com propósitos humorísticos, as dificuldades e as contradições do autor de "A Guerra de Guerrilha", que morrerá às mãos do soldado Mario Terán.

De repente o mito de uma geração, que Korda retratou com os olhos postos num mundo que mais ninguém vê, cai a pique, na boca de um narrador baseado no mais do que suspeito diário de Benigno, braço-direito do combatente, para o nível do líder de um bando de desordeiros, que nem pensamentos têm quanto mais sonhos. O herói é um gajo que se agordalhou depois de umas feriazinhas na Checoslováquia, que passa a vida estendido numa rede, a fumar cachimbo e a reler "A Cartuxa de Parma", que não se sabe orientar na selva, que se borra quando entra em stress e tresanda tanto que qualquer cão de René Barrientos dá com ele. Os seus homens são uma mescla de ex-ministros cubanos, como Alejandro, incompetentes, garotos imberbes como Benjamim, alcoólicos como Loro, ladrões de galinhas ou índios que não distinguem a mão direita da esquerda - uns comemierdas. Tania deixa o estatuto histórico de misteriosa para o de uma mulher provocadora, que troca de roupa à frente dos guerrilheiros e passa a vida a choramingar e a fazer listas de queixinhas - a fazê-las ao Che, que, depois de fazer amor com ela, lhe vira as costas.

"Método Prático de Guerrilha", de Marcelo Ferroni, nascido em 1974, assente em documentos e muito estudo, não anseia ser nem um livro de história nem uma reportagem. É um romance, onde ninguém deverá procurar verdades. É uma narrativa de factos descontextualizados e sobre o excesso de auto-estima, a sobrevalorização dos sonhos e os erros fatais que espreitam todos os ideais. Neste sentido poderá ser um excelente livro, até porque atrai pela escrita, cuidada, fluente, directa. Pior só para quem não tem o mesmo sentido de humor.

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