Estranhos caminhos

"Hadewijch" é o primeiro filme de Bruno Dumont comercialmente estreado em Portugal. Alguns leitores lembrar-se-ão de que se falou muito dele por ocasião do "escândalo" de Cannes 1999, quando o júri presidido por David Cronenberg teve a bizarra ideia de premiar filmes que não caiam no goto de toda a gente - a Palma foi para a "Rosetta" dos Dardenne, Dumont levou o Grande Prémio do Júri por "L''Humanité".


Francês flamengo, Dumont trabalha com motivos culturais oriundos da sua região (tem até um filme chamado "Flandres"), e neste caso convoca a recordação da misteriosa Hadewijch, escritora religiosa medieval. Não é uma biografia nem um filme de época, contudo, antes uma história contemporânea (que nalguns passos rimará a história da verdadeira Hadewijch) que segue o fervor religioso de uma miúda parisiense de boas famílias. O fervor levou-a ao convento onde o filme principia, o excesso de fervor potencialmente danoso (a rapariga leva o jejum e a abstinência demasiado a peito) pôe-a cá fora, quando as madres decidem que ela deve encontrar o seu caminho para Cristo no mundo exterior. É esse percurso, tão obstinado quanto propício a equívocos e a crises de fé, que o filme segue.

Dumont filma com austeridade e pudor, e digamos que segue o princípio certo quando se trata de filmar a religião dos outros - filma-a como um facto, que não é matéria de julgamento nem de comentário. Interessa-lhe filmar a ansiedade fundamental da sua personagem, que espera ardentemente pela confirmação da sua fé, por uma manifestação de que a sua fé é, digamos, correspondida (e correspondida, justamente, como Amor). Há momentos muito calmos, muito pacíficos (as cenas com música: Bach, que como se diz noutro filme, veio "interromper o silêncio de Deus"), mas o frenesim interior da personagem vai-se intensificando (rebeldia com ou sem causa, "Hadewijch" também é uma história, "clássica" no seu esqueleto, de afirmação adolescente) até ficar madura para o radicalismo (é toda a história do seu encontro com os terroristas islâmicos, que não tem valor "político", antes funciona como expressão de um excesso - de devoção, de ansiedade - que transborda como violência e em violência).

Qualquer coisa parecida com a graça surgirá no fim, inesperadamente, quando tudo parece perdido. Não é bem um "milagre", ou consoante o ponto de vista, é um milagre. No plano da "escrita" não há muita coisa que realmente aproxime Dumont de Robert Bresson, mas de facto "Hadewijch" é a história de um "drôle de chemin", onde se circula por alguns elementos caros ao cineasta de "Pickpocket" (o crime, a prisão, os "párias") para chegar ao mesmo tipo de "elevação" final (e aqui, é realmente de uma "elevação", em todos os sentidos, que se trata). Dumont já fez filmes mais bizarros, mais intrincados, mais chocantes - nada há em "Hadewijch" de particularmente escabroso (nem "graficamente"). O despojamento, quase linear, de "Hadewijch", e a espécie de sinceridade muito simples que exala, fazem dele uma variação, no mínimo curiosa, sobre temas e formas que não estão propriamente na moda entre o mais badalado cinema contemporâneo.

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